Amadeu, de quem o amor a Deus esqueceu,
vai entre as vielas a violar nos ouvidos o som de violão que dedilha numa
trilha qualquer que o morro dá. Assimétrico na métrica que a linha utópica e reta
dá para não cair, cambaleia e volta, volteia e se enlameia a cada queda. Mas,
logo lá em cima, ensimesmado, chegará na birosca do Zé, o português que, com o
lápis ágil, marcava duas cervejas para cada pedida com direito também a uma pinga.
Amadeu, a quem a vida nunca se
ateu, cantarola um samba desconexo onde o versículo acalanta a falta de verso.
E segue tomate e mamão. Sobremaneira, da maneira que um bebê sem dentes suga a
mamadeira, olha para o céu de bruços, no chão. Se levanta, lava-se na poça que
sobra na pocilga de um barraco em obras, e transpõe a pequena ponte que se equilibra
sobre um riacho que corre coberto de lixo, lombrigas e dejetos em amplexos.
Amadeu, senhor que sabe onde
ficam a felicidade e a dor, diz a si mesmo, a esmo, que é melhor estar vivo já
morto do que morrer e deixar de viver. “E o amigo que nem sequer quer mais
estar junto contigo? É amigo mesmo ou só mais um buraco de umbigo?” Cheio de
dúvidas, endividado no morro quase todo, vai pé pra frente depois de meio pé
para trás a ver que a lua se escondeu numa nuvem para dormir depois da Terra ter
que girar.
Mas Amadeu é isso: um homem a
mais. Um derradeiro ser disforme, desses que vira estatística em cada informe
de tevê. Que é apenas um número a mais, sequer um úmero a segurar braço
qualquer. Falta-lhe um abraço, um maço de cigarros, um amasso na mesa de bar. É
somente quem mente a si para crer que vale a pena viver. Amanhã, decerto, terá
uma ressaca que nem a maior das ondas do mar traz. Mas, sabe, valeu poder
sonhar.
Amadeu, ser andarilho à espera
que um trem o atropele, mesmo sabendo que no morro não há trilhos, chega enfim
ao fim de sua trilha. Mexe nos bolsos vazios na busca da chave que tranca a
porta sem tranca e lembra que é só empurrar a madeira para ver se no seu
interior ainda há alguma anca. Deitada na cama, Esmeraldina à luz da lua se descortina
no zinco rompido do teto, tem as tetas expostas como postas a se comer. Por
fim, vem o fim.