quinta-feira, 30 de junho de 2022

Ao Gato Barbieri

 Por Ronaldo Faria


Estrada longa à frente. “Xongas”, diria um qualquer. “Milongas”, outro ninguém. O sax se solta ao entardecer. No escuro, um urro. Desejo incrédulo da mesa de bar e figura transfigurada do homem ao gole derradeiro. Espantalho num campo sem centeio. Na rua a mulher emudece diante dos faróis que rebrilham no asfalto enegrecido da fumaça que volatiza dos escapamentos. À espera do nada, filigranas de paixão se espalham no espelho que a tudo reluz. Desnudo, o dia se embriaga de beijos e trejeitos, carícias mil. Vozes roucas e rubras se desvanecem na penumbra tardia da vida. Entre um gole e outro, o abraço solto do louco que se entrega à orgia da solidão. Em sofreguidão. Afinal, na estrada longa à frente há um percurso, o transcurso entre o tátil e o taciturno. O limite entre o homem e o semideus. A incerta realidade entre a chegada e o adeus. A brincadeira sem eira e nem beira às margens do mar. No barco distante, o pescador enche a rede de incertezas e senões. Um peixe aqui e outro acolá se atiram para a morte. Uma sereia dança aos cânticos das conchas que brincam nos ouvidos dos menos precavidos. Na ponta do cais, a mulher chora seus derradeiros ais. Perto, o bonde se bandeia para qualquer lugar. O menino sobe no estribo a gargalhar. Da calçada, o moço vê os joelhos da moça na saia que o vento faz rodar. Ao som do sax, o tempo parece parar. Acima, uma pipa parece papear com a noite que chega por chegar...

quarta-feira, 29 de junho de 2022

A raiz da MBP num show de 1968

Por Edmilson Siqueira 

Cyro Monteiro, Nora Ney, Clementina de Jesus, Conjunto Rosa de Ouro (Elton Medeiros, Jair do Cavaquinho, Mauro Duarte, Anescarzinho do Salgueiro e Nelson Sargento), Dino Sete Cordas, Arlindo e Índio: todos esses bambas estavam no palco do Teatro Santa Rosa, no Rio de Janeiro, em março de 1968 para mostrar a um entusiasmado público o show "Mudando de Conversa". A música do mesmo nome já era sucesso no rádio e o autor dos versos, Hermínio Bello de Carvalho (a música é de Maurício Tapajós) foi quem escreveu e dirigiu o show.  


A reunião de tanta gente boa num show criado por HBC, como Hermínio também era conhecido, só podia resultar num espetáculo memorável, com sambas e canções que marcaram época e estão até hoje soltos por aí, frequentando repertórios de bons cantores.  


O sucesso do show levou a Odeon a produzir um LP gravado ao vivo. Pena que ainda não existia o CD, pois grande parte do espetáculo de duas horas teve de ser cortada para caber nos pouco mais de 40 minutos de gravação que cabem num disco de vinil. Segundo o texto na contracapa do LP, ficaram de fora as piadas de Cyro Monteiro, as histórias sobre Geraldo Pereira e alguns lindos sambas contados por Nora Ney e Clementina de Jesus. 

Mas o que se selecionou é ouro puro da nossa MPB. O LP ainda se encontra em sites especializados ou no Mercado Livre, mas o menor preço que encontrei foi de R$ 150,00, com gente pedindo até mais de R$ 800,00. 


O disco acabou se configurando com 9 faixas, mas quatro delas são pot pourri, juntado 20 sambas e perfazendo 25 músicas no total. Os vários aplausos em cena aberta, no meio dos pot porris, dão uma ideia bastante precisa da recepção do show. No encarte do disco, que não está assinado, ficamos sabendo que a fina flor da MPB esteve na plateia: Vinicius de Moraes, Maria Bethânia, Ataulfo Alves, Chico Buarque, Elizete Cardoso, Pedro Bloch, Toquinho, Zimbo Trio etc. Numa das noites, os artistas da plateia invadiram o palco e fizeram o encerramento junto com o elenco oficial.   


"Lamento", "Formosa", "Sacode Carola", "Divina Dama", "Mudando de Conversa", "Eu e a Brisa", "Falsa Baiana", "Não Quero Mais Amar a Ninguém", "Leva Meu Samba" são algumas das músicas que compõem o disco. 

E ele pode ser ouvido na íntegra no YouTube: https://www.youtube.com/watch?v=XaIrTZurxLg . 

terça-feira, 28 de junho de 2022

Ao Francis Hime

 Por Ronaldo Faria


Muito a falar, a tentar dizer, conversar. A lembrar cenas já sem palco, plebeia ou plateia. Mas logo vem o silêncio ausente, cru, desprovido da nudez que só tempo traz e faz. A fatídica e morta saudade que não parece dizer uma sílaba sequer. Na incerteza de um parêntese que faz a interface do nada, a voz da amada que recrudesce a luz da lua que brilha teimosa ao acalanto sem pranto da flor desfolhada e formosa.

Muito a clamar no clarear que se perdeu infante no adeus primeiro da aurora. Na casa de saibro, o menino queima de febre em catapora. Na árvore que repousa quieta no alto do morro, cheiro de amora. Na igreja, gorjeio de corujas sonâmbulas a acordarem do sono sombrio. Lá fora uma raposa espera quieta a chegada das galinhas que foram ciscar e contar grãos de milho. Na venda, a voz perdida de Seu Virgílio.

Muito a fazer poemas, tenham eles ou não extintas e flutuantes tremas. Nas tramas da vida, tramoias de amantes apaixonados e surdos aos carros que teimam em passar sibilares bem abaixo do quarto do apartamento que se esconde sobre um jardim. Entre o talvez e a próxima vez, o voltar de mãos trêmulas a afagar cabelos molhados e torneados no corpo que virou copo para a sede e o coito do amor.

Pouco a descrer na descrença fatídica que se faz fátua e fábula de uma sessão de cinema nunca assistida. Na bilheteria, a vendedora, que se chama Dora, adora quando o senhor de bengala e chapéu chega para assistir pela décima quinta vez a mesma cena, que teima em terminar com The End. No projetor, entre fotogramas colados e miligramas de tinta retinta, passam vidas e destinos marcados e desatinos.

Pouco a dedilhar entre teclas que nada mais são do que asseclas de uma poesia de amor.  Dessa que recobre de panos e letras um sentimento de dor. Talvez, noutra certa vez, a alegoria se confunda com a orgia e vire somente rara alegria. Senão, entre um sim e outro não, ambos saiam a dançar pelas ruas que margeiam a cama forrada de sons e se faz altaneira na cidade. À morte plena, nasceu a frágil realidade.

Pouco, por fim, a profetizar aquilo que nunca será. Nas ondas que arrebentam frias na areia e arrebatam o olhar da musa primeira, a certeza de que sentimentos urgem e brotam feito pássaros que voam sem saber chegar. Ao final, afinal qualquer lugar é lugar de derrear, um porto sem navios, naufrágios, belas morenas no cais, bebidas jorradas em canecas e adeuses que se prostram em lágrimas tais. Muito e pouco, pouco e muito, palavras fatais.

segunda-feira, 27 de junho de 2022

AVISO

Excepcionalmente a coluna do Edmilson Siqueira não sairá hoje. Volta ao normal na quarta-feira.

sábado, 25 de junho de 2022

Coleman Hawkins fazendo bossa nova e jazz samba

Por Edmilson Siqueira

O último artigo foi sobre um disco gravado logo após a bossa nova estourar nos EUA, o que fez muitos músicos de jazz - vários deles presentes no famoso concerto do Carnegie Hall em novembro de 1962 - correrem para os estúdios e tentar entender o que era aquela música e fazer um disco com as pérolas que vinham de um estranho e desconhecido país chamado Brasil.  

Juntar um grupo de músicos brasileiros mais um jazzista famoso foi uma das fórmulas encontradas, como vimos no artigo anterior: o saxofonista Cannonbal Adderley se junta a vários e grandes músicos brasileiros e produz um disco que, se não é dos melhores que os gringos produziram com a bossa nova, não pode ser ignorado, já que tem muitas qualidades.  


Outros músicos, talvez já mais enturmados com a bossa nova, arriscaram mais e foram ensaiar só com músicos norte-americanos. Foi assim que Colemann Hawkins e seu sax, se juntou a Barry Hawkins e Howard Collin nos violões, a Major Holley no baixo e a Eddie Locke, Tommy Flanagan e Willie Rodrigues na percussão para gravar "Desafinado", entre os dias 12 e 17 de setembro de 1962, ou seja, dois meses antes do famoso concerto.  

O texto do CD, que manteve os originais, afirma que a bossa nova "é uma mistura do samba afro-brasileiro com o jazz afro-americano. No que parece um tempo surpreendentemente curto, a bossa nova tornou-se uma tendência dominante no jazz - ou assim parece pela quantidade de atividade da bossa nova predominante no outono de 1962." 


Pois é, em curto espaço de tempo, a bossa nova começou a influenciar o jazz e se tornou uma espécie de novidade a que muita gente aquiesceu. Havia, a partir de 1962, escolas de dança abertas com o chamariz de ensinar a dançar bossa nova. Para quem conhece um pouco da história dos EUA, sabe que raramente aquele povo adere a algo cultural vindo de fora.  


O disco, para não deixar dúvida do que viria, começa com "Desafinado" que Dan Mopngernstern, comentando as músicas do CD classifica como "provavelmente o mais popular e certamente o mais bonito dos standards de bossa nova, é interpretado com um apropriado toque de romantismo por Hawkins e Co." Evidentemente Dan não sabia que a música, composta por Jobim e Newton Mendonça (música e letra dos dois), era uma gozação aos cantores desafinados que amigos tinham de acompanhar nas noites do Rio.  


A segunda música, "I'm Looking Over a Four Leaf Clover" (Dixon Woods) poderia parecer fora do foco do disco à época, mas Dan explica: "À primeira vista uma escolha improvável para este álbum, é um marco no repertório de João Gilberto, cantor-guitarrista que é um dos maiores expoentes da bossa nova no Brasil". Trata-se, pra quem não sabe, de "Trevo de 4 Folhas" na tradução para o português de Nilo Santos Pinto.  


"Samba para Bean" foi uma homenagem de Many Albam a Hawkins, que era conhecido por "Bean" no meio musical. É realmente um "sambinha" bossa nova, resultado já da influência no jazz norte-americano.  


A música seguinte, "I Remember You" (Johnny Mercer e Victor Schertzinger), também segue no mesmo tom: feita por americanos tentando fazer bossa nova. E, claro, se saem bem: a levada no violão e na bateria lembra muito criações brasileiras escritas ao pôr do sol em Copacabana. 

"One Note Samba", o nosso Samba de Uma Nota Só", é saudado por Dan como o vice-campeão em preferências da bossa nova nos EUA, logo após Desafinado. Diga-se que em 1962, "Garota de Ipanema" não tinha estourado no EUA, o que só foi acontecer dois anos depois, na gravação de Astrud Gilberto, com o marido João Gilberto, no disco de Stan Getz. Ela seria a obra bossanovista mais gravada do planeta, com mais de 500 gravações pelo mundo, só perdendo, dizem, para Yesterday, de Paul McCartney.  


"O Pato" (Jayme Silva e Neiva Teixeira) vem a seguir e o sóbrio sax de Hawkins poderia até tirar um pouco do brilho da música, que é divertida nas versões brasileiras. Mas o tom de sobriedade acaba sendo motivo para um ótimo improviso mais à vontade, tanto do sax quando do violão.  


A música seguinte é de João Gilberto, um tributo que ele prestou ao compositor e amigo Luiz Bonfá, uma música com uma estrutura complexa que a turma de gringos toca muito bem.  


Encerrando o álbum, uma música de autoria do próprio Coleman, "Stumpy Bossa Nova". "Stumpy" quer dizer "Atarracado" e talvez Hawkins, ao se aventurar pela bossa nova, julgou o resultado meio preso aos seus concentos musicais e botou esse nome com já a se desculpar. Mas, se foi isso mesmo, nem precisava. É muito gostosa de ouvir essa bossa nova "atarracada".  


Há algumas músicas do disco no YouTube, mas não encontrei o disco inteiro. Ele pode ser comprado ainda nos bons sites do ramo. 

sexta-feira, 24 de junho de 2022

Ao Flavio Venturini

 Por Ronaldo Faria


Coisa de dedilhar e ficar no pandemônio que existe entre o início e o fim. Talvez um tempo extemporâneo ou coisa volátil qualquer. Segundos de ver alguém a fumar e depois vê-la morrer. E tudo segue normal como se nada fosse frigir. No ribeirão da iniquidade de ser, a premente canção do porvir. O descrer de uma chaminé que já não há. Volúpias de voltar a ser. Parcimônias de um ser franzino onde a paisagem parece não crer. Brincadeira de acalantos e prantos tão demasiados que o mundo parece não lhes dar cânticos. Nos cantos de um escuro qualquer haverá um Papai Noel a tentar, sem conseguir, descer. E fuligens cairão da chaminé como fossem um grão de pó. Narizes irão cheirar féculas brancas de loucura. Ares de maresia irão margear impróprios falsetes que tornearão o tempo que ainda se vai viver. No calor de cada corpo, o trocar de paixões em tudo. Ao clímax de algo, o ultrajante querer daquilo que se sonhou.   

quinta-feira, 23 de junho de 2022

Um jazzista e uma turma da bossa nova em 1962

 Por Edmilson Siqueira 

O disco foi gravado em 1962, na esteira do sucesso da bossa nova nos Estados Unidos, ou seja, é um dos primeiros trabalhos a unir um grande jazzista norte-americano com músicos brasileiros. O grande jazzista é ninguém menos que o saxofonista Cannonbal Adderley e se o nome não é tão conhecido assim por essas plagas, basta dizer que, quando gravou esse disco, em 1962, ele já havia tocado com grandes nomes do jazz como Miles Davis, John Coltrane, Art Blakey. Sua biografia na Wikipedia diz que ele era conhecido pelo seu suingue e pelas improvisações de sax-alto e foi uma figura central do jazz moderno, seja participando dos históricos combos de Miles Davis, seja nos grupos que ele coliderou com seu irmão, o trompetista Nat Adderley.  


Pois para realizar esse "Bossa Nova" ele se juntou a um "Bossa Rio Sextet of Rio". Claro que o nome do grupo brasileiro foi só para o disco, pois dele faziam parte grandes músicos brasileiros que tiveram carreiras solos de sucesso, por aqui ou no exterior. Ao saxofone alto de Cannonbal se juntaram Sergio Mendes ao piano, Durval Ferreira no violão, Dom Um Romano na bateria, Octavio Bailly no contrabaixo, além de participações em algumas faixas de Pedro Paulo no trompete e Paulo Moura no saxofone alto. 


Como se vê trata-se de um time dos mais respeitáveis. E o resultado que, aliás, não agradou muito à crítica norte-americana da época, foi ótimo. Ficou parecendo mais um disco brasileiro do que um trabalho de um jazzista dos EUA e, talvez por isso, críticos da terra do Tio Sam tenham entortado o nariz. Deve-se ainda levar em conta que, em 1962, a assimilação da bossa nova pelos instrumentistas norte-americanos estava engatinhando e era normal que o caminho ainda não estivesse completamente conhecido.  

Mas o disco é bom, tão bom que, lançado no ano seguinte ao da gravação, pela Riverside, ele foi relançado pela Capitol Records diversas vezes com diferentes capas e títulos. Uma gravadora norte-americana do porte da Capital Records não lançaria um disco de jazz se não soubesse de sua qualidade e possibilidades de venda. 


Enfim, a reunião do gringo com o time brasileiro resultou num disco suave, com a batida certa tanto da própria bateria quanto do violão e por intervenções criativas dos sopros e do piano de um jovem Sergio Mendes que, anos depois, conquistaria a América, chegando ao topo das paradas de sucesso com sua fórmula de misturar jazz e bossa nova. Tanto que ficou por lá até hoje, onde é um artista famoso e respeitadíssimo. 


Das dez faixas que compõem o disco, cinco são parcerias do violonista Durval Ferreira e do gaitista Maurício Einhorn:  "Cloud", "Batida Diferente", "Joyce's Samba", "Sambop" e uma versão single de "Cloud". As outras são "Minha Saudade", de João Donato, "Corcovado", de Jobim, "Groovy Samba" de Sérgio Mendes, "O Amor em Paz", de Jobim e Vinicius e um take alternativo de "Corcovado". 

O CD que tenho é importado, foi editado em 1999 e manteve, no encarte, o texto original do LP, escrito por Orrin Keepnews. Nele, Keepnews assinala que o disco “que combina unicamente o talento de uma excepcional estrela do jazz com um excitante grupo de jovens brasileiros, não é apenas a mais fascinante apresentação desta irresistível música latina conhecida como bossa nova, é também algo verdadeiramente incomum". É isso aí! 

O disco pode ser ouvido na íntegra no YouTube Music: https://music.youtube.com/playlist?list=OLAK5uy_nQDQCCKc_xcLbN3uD9nlg1RrVjRUd9qH0 e também há LPs ainda à venda nos bons sites do ramo. 

Zé Geraldo

 Por Ronaldo Faria A viola viola o sonho do sonhador como se fosse certo invadir os dias da dádiva que devia alegria para a orgia primeira...