Por Edmilson Siqueira
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Era dezembro de 1968. Vinicius de Moraes, talvez procurando
ares mais respiráveis, viajou para Roma, onde iria passar o Natal. Porém, no
caminho resolveu dar uma passada em Lisboa, onde os ares também não eram muito
bons, para visitar sua amiga Amália Rodrigues. E, na casa dela, combinaram de
gravar um disco, ali mesmo, meio improvisado, entre amigos, com as canções de
Amália, a poesia de Vinicius e o que mais viesse dos amigos convidados. O disco
desse encontro só foi editado em 1970 e, claro, foi proibido pela censura da
ditadura portuguesa. Salazar, debilitado, já não governava, embora não soubesse
disso. Fora substituído por Marcelo Caetano, e a ditadura continuou.
No encontro na casa de Amália estiveram presentes também
outros poetas, como Ary dos Santos e Natália Correia. O encontro durou horas,
mas as gravações foram editadas para caberem numa só hora, o que resultou num
LP duplo. O resultado parece amador a princípio, mas os fados e as músicas
brasileiras são de alta qualidade e as poesias, principalmente de Vinicius, são
ótimas, tanto que há quem considere o disco como uma relíquia da música e
poesia em língua portuguesa.
A proibição fez o disco em vinil vender pouco e se tornar
raro. O CD que tenho é uma cópia do LP que nunca tive.
São 19 faixas, entremeadas de música e poesia e de um
narrador (Ary dos Santos) que se porta como um dos convidados, contando para o
ouvinte, em alguns momentos, o que está para acontecer. O clima é de
descontração e alegria, embora o ambiente político em Portugal - e no Brasil,
afinal 1968 foi o ano da edição do AI-5 que fechou de vez a ditadura por aqui -
fosse dos mais pesados.
Ary dos Santos inicia o disco como se estivesse subindo as
escadas da casa de Amália para chegar, um pouco atrasado, à sala ou salão onde
estavam todos reunidos. Informa a data (19 de dezembro de 1968 - 6 dias depois
do AI-5) e diz que a festa é de despedida de Vinicius, que partiria no dia
seguinte para Roma.
A primeira poesia é justamente "Retrato de
Amália", de Ary dos Santos, declamada pelo próprio. Em seguida, Natália
Correia declama seu belo poema "Defesa do Poeta".
A parte musical do disco começa na terceira faixa, com
Amália cantando o fado "Havemos de ir a Viena", de Pedro da Cunha e
Alain Robert, acompanhada pelos músicos Fontes Rocha, na guitarra (portuguesa,
claro) e Pedro Leal na viola. A qualidade dos dois músicos chama a atenção
durante todo o disco.
Após cantar o fado, Amália pede a Vinicius que declame o
"Poema de Orfeu". Vinicius corrige o nome ("você quer o Monólogo
de Orfeu, né?"), e declama o poema, com belo acompanhamento musical de
Fonte Rocha e Pontes Leal.
Ary dos Santos nos informa que agora Vinicius, depois de
declamar, vai cantar. E canta, com nítida emoção, "Poema dos Olhos da
Amada", de sua autoria com Paulo Soledade.
Na faixa seguinte, também anunciada por Ary, é Amália quem
canta "Abandono", de David Mourão-Ferreira e Alain Oulman. Um dos
momentos altos da interpretação da grande cantora portuguesa.
A poeta Natália Correia aparece a seguir declamando seu
poema "Formosinha de Elvas".
O momento quase humorístico do encontro fica a cargo de Ary
dos Santos, com "O Objeto", um curioso poema que protesta contra o
fato das coisas não receberem o nome correto de cada uma delas.
Um pequeno coro se forma a seguir, chamando Vinicius e
pedindo que ele declame seu famoso poema "O Dia da Criação", que
acabou ficando conhecido mais pelo refrão "Porque hoje é sábado".
Refrão que todos os presentes fazem questão de repetir junto com o poeta.
Davi Mourão-Ferreira declama a seguir "Fado para a Lua
de Lisboa", um pungente poema sobre a noite portuguesa.
Amália volta na faixa seguinte, cantando "Gaivota"
de Alexandre O'Neill e Alain Oulman. Mais uma vez a qualidade da interpretação
se sobressai, tanto de Amália quanto dos dois músicos na guitarra portuguesa e
na viola.
A faixa seguinte, "Saudades do Brasil em Portugal"
merece uma explicação de Vinicius. Ele diz que foi uma ousadia escrever um fado
para Amália, tal como a marcha-rancho que ele fez em "parceria" com
J. S. Bach. E ele canta emocionado seu poema com a música de Homem Cristo. Em
seguida, na faixa seguinte, é Amália quem empresta sua interpretação à mesma
música, que, claro, ficou muito melhor que Vinicius.
Vinicius volta, desta vez para cantar um samba, não sem
antes contar a história de como foram feitos os versos de "Pra que
Chorar", na música de Baden Powell, de madrugada, numa clínica de repouso
no Rio de Janeiro.
Amália volta pela última vez para cantar "Fado
Português", de José Régio e Alain Oulman. Mais uma interpretação digna da
cantante lusitana.
O disco termina com dois poemas. O primeiro é de Natália
Correia, um de seus mais famosos, "Autogênese", que ela declama com
bastante emoção.
Por fim, encerrando o disco, mas provavelmente não a noite,
que se estendeu até o amanhecer, Vinicius é solicitado a dizer as impressões
que leva de Portugal. E o poeta discorre sobre o povo português "tão
próximo do brasileiro" deixando nas entrelinhas o amargor que sente pelas
ditaduras vigentes nos dois países.
O "narrador" Ary dos Santos, após a fala de
Vinicius, diz que aquele é o resumo de um encontro muito maior, mas foi o que
coube em dois discos. Dois discos históricos que ainda estão à venda por aí,
tanto em CD como em LP. E podem ser ouvidos na íntegra no YouTube
(https://bit.ly/38klS1Q) e no Spotify (https://spoti.fi/3ioB3M3).