Por Ronaldo Faria
O papagaio, pragmático e
dependurado no seu poleiro, só ouvia a música que saía da vitrola na voz de
Maysa. O ano, perdido entre os 50 e 60 do século passado, passava entre Fords antigos
que ostentavam bigodes, homens de chapéus e mulheres que pouco deixavam seus
joelhos aparecerem na subida dos bondes. Mas, para o papagaio de penugens quiçá
já chinesas, tudo era um relicário a se viver. Nas efemérides da vida,
passageiras feito a própria vida, ele sequer sabia separar os rostos dos meros
mortais que passavam pelo corredor do casario. Postado e prostrado no teto, ao menos
conseguia enxergar as tetas de Abigail, matrona que se exibia nas noites de
amor e luar. O papagaio, sem nome e que não conseguia repetir coisas ouvidas
pela casa e a vida, por sequer ter cordas vocais, apenas ficava ali, a balançar
num ou noutro vento que se fizesse bater. E quanto e tanto poderia falar...
Silencioso e cioso de seu lugar na decoração, porém, ficava lá, nas blasfêmias,
infâmias e mentiras de uma oração.
Papagaio vindo de algum lugar
que nem aqueles que catam seus restos no passado sabem crer, ele apenas ostenta
as cores de um paraíso bucólico e melancólico onde a paz se ostenta e se sustenta
na imensidão de olhares, entrelaços e acasos no ocaso da vida. Certamente ele
não verá árvores e seus galhos partidos de folhas, flores e frutos. Fortuito, talvez
um dia seja jogado no lixo e termine num local cercado de outros tantos itens
descartáveis dos seus donos, rotundos e redondos corpos a se espreguiçarem em
cadeiras ou sofás. Lá, se bater a luz do sol e der sorte de ser descartado no
final do caminhão de coleta, por fim verá o céu azul, um ou outro urubu a voar
e aquilo que o mundo fora das paredes esconde no semear. E se mais sorte der,
quem sabe uma papagaia que fale mandarim não caia ao seu lado. Sem poder bater
as asas, ambos, entretanto, num tanto que é morrer, poderão ciscar pedaços de
sensações mil. Talvez, quem sabe e quiçá, ouvirão as vozes de seus antigos
donos e, enfim, saberão que o dono de cada um de nós é a mera quimera da
ilusão.
(Ao som da eterna e terna Maysa)