quarta-feira, 8 de janeiro de 2025

Lembrança na festança de Dominguinhos

 Por Ronaldo Faria


-- Será que alguém vai lembrar da gente lá na frente, Jesualdo?
-- Se ainda estiver vivo alguém que nos conheceu, talvez... Senão, com certeza não.
A resposta caiu como uma bomba em Sebastião. “Sabe que é verdade. Depois de um tempo surge, por fim, o fim. Se não tem quem tenha saudade, não tem mais a pessoa. Essa é a verdade que ressoa desde em sempre. Quem irá cavoucar o nome e a vida de quem sequer teve um segundo em sua vida?”
-- Mas será que algo de nós vai ficar, Jesualdo? Que nem semente, sementinha...
-- Olha, Bastião, acho que não. Mas se sobrar uns ossos, na hora de colocar outro na sepultura, ao menos os coveiros que tiverem de enterrar a gente vão ficar putos e lembrar das nossas mães.
-- É, você deve ter razão...
-- Então fica assim. Nos vemos amanhã para tocar a boiada do coronel até a invernada.
-- Com certeza, Mas vou ficar mais um pouco. Segue tua trilha.
Sebastião pede outra para o dono da venda e repensa a resenha. “Sabe que o Jesualdo não está errado de tudo. A gente vive até quando houver quem nos amou ou odiou, que chore ou ria o nosso fim. Depois, num mundão que já enterrou gente que nem dá pra contar, não tem como pedir bis.”
-- Posso sentar na mesa?
A voz, feminina, bem mais do que poderia se chamar de linda, bateu como um bumbo no seu ouvido.
-- Claro. A mesa está livre, além de mim.
O nome dela era Berenice. Seu cheiro tinha o mesmo que a dama da noite, essa florzinha pequenina e branca que exala um perfume da moléstia de bom. Seus olhos, verdes e marrons, cobriam a lua cheia com uma claridade que nem se o sol ainda estivesse acordado teria. Seus cabelos, cor de milho bom de colher e girassol, escorriam sobre o decote que mostrava os seios que nem os maiores devaneios fariam brotar. Seu rosto nem um tal de Michelangelo poderia esculpir. Na verdade, Sebastião preferiu não olhar além do umbigo. Afinal, Berenice era o amanhecer de luz na caatinga, o nascer de um bezerro a mais na cria, a flor mais bonita que o mandacaru pode dar. Vestida no vestido vermelho e branco, acima do joelho, ela fazia o coração bater além do peito. “Segura na boca, coração”, implorava o boiadeiro que antes queria saber se valia a pena viver.
-- De que fazenda você é?
-- Da Nova Esperança. Toco o gado lá.
-- Já ouvi falar dela. Corre o Rio Real defronte?
-- Sim. Na verdade ele é divisa. Coisa maluca, não é. Um rio que seca na seca ser a divisão de dois estados.
-- Concordo. Mas o que não é loucura nesse mundo?
A conversa continuou mesmo com o pio da coruja que queria colocar as corujinhas recém-saídas dos ovos para dormir.
-- Você gosta de pamonha e milho?
-- Gosto, claro.
-- Então está convocado pra debulhar um monte comigo na semana que vem.
-- É sério, Berenice? Além de aboiar o gado e cuidar das burregas tenho que debulhar os sabugos?
-- É. Isso se quiser saber aquilo que eu posso te dar além de prosear...
-- Se é assim, que os dedos sangrem no milharal.
Não deu meio tempo e o clarear chegou. Os dois estavam agora na praça da igreja, sentados no banco, a lembrar avós e o tanto que o lampejo do lampião que cheirava gostoso vive até hoje na imensidão. Talvez, quem sabe, Jesualdo estivesse errado. Que a vida pode se eternizar num descampado, fole de sanfona, lembrança atávica, lamber de pele e línguas, lábios sedentos de amor. Senão, que seja apenas a flor que dura um dia, uma semana, um mês para a abelha tentar se achegar. Agora, na verdade, pouco importava. Sentado no seu tordilho, no dia seguinte e pedinte, Bastião se bastava. A dormir em cetins, Berenice bebia outra conquista. Ela, com certeza, será lembrada e relembrada nas vidas presentes, passadas e, fortuitamente, futuramente. A nós, nos nossos nós inconsequentes, sem trema e com tramas mil, só nos resta sonhar.

Com os Paralamas do Sucesso e a porra de uns óculos que não dão pra ver a tela direito

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