quarta-feira, 13 de novembro de 2024

Na inconstância de Constância

 Por Ronaldo Faria


Peripécias de peças sem palco e passos sem som. Périplos à busca da perfeição e palavras vagas e vãs. E talvez o fim esteja a poucas horas. Com a hóstia na boca, Constância contrasta com o tempo que ferve do lado de fora. O padre, na verve, prega para os poucos fiéis que ainda decidem se a decisão de ter ido à missa foi boa ou ruim. “Na avenida ao menos tinha um tamborim”, pensa Serafim. Do seu lado, Constância espera que o barulho do samba não mate o arrulho dos pombos na capela de Nossa Senhora do Fervor.
-- Constância, queria ter ido o “Farofa e pó é tudo farinha”. Porra, Carnaval é só uma vez por ano! Missa tem todos os dias.
-- Quer falar baixo. Ou melhor, calar a boca. Está na hora da consagração.
-- Consagração é na Praça da Apoteose! Isso aqui é como se os componentes da bateria tivessem desistido de sair.
-- Irmãos, o sangue de Cristo! Amém – diz o padre contrito na sua fé e profissão.
-- Deu. Constância, estou indo. Te vejo em casa amanhã de manhã ou na quarta-feira.
-- Se você sair, não precisa nem ir pra casa!
-- Fui!
Serafim levanta do banco e sai resoluto pelo portal de madeiras entalhadas e pintadas de verniz. Abre os braços para o sol que queima o mundo sem piedade e grita: “Valeu, vida, eu estou aqui!”
Entra no carro, liga o motor, passa a primeira e acelera na rua vazia. O povo não está no Largo do Rosário e da Reza. Está todo mundo no bloco a fazer do tempo um pouco de vento nas ventas, a aspirar carreiras e seguir na esteira da música que sai do trio-elétrico.
-- Obrigado, vida, por me dar a chance de revoar feito pomba vagabunda de praça a comer restos esquecidos entre um pacote de migalhas de bolachas ou biscoitos.
Enquanto isso Constância beija a mão do padre que dá o seu anel de pedra preciosa para ser enxaguado de saliva e cuspe pelas ovelhas agarradas. As desgarradas há muito não comparecem no altar.
-- Como Serafim pode ter me trocado por um desfile de bloco? E tudo aquilo que vivemos? Que trocamos nas noites de açoites de corpos e nos risos de descobrir que o amanhecer depois surgiria para mais?
Na bunda da foliã a banda passa e abunda o cenário ao derredor com olhos de desejo e uma certeza onde o não é sempre não (nas graças daquilo que deve ser). A dor não faz parte do compasso. No passo das pessoas ressoa o tempo, imensidão de tristezas represadas, vastidão de carências castigadas, encontro de loucuras que dão razão ao maior desejo de ser feliz na cidade que fervilha de tesão e solidão do depois. Mas o que é o depois?
Serafim já passou há muito de Bagdá. Está perto da Faixa de Gaza. Falta só acreditar que nesta madrugada terá uma gozada. Senão, no cadafalso que se abre quando o mestre de bateria apita o final de tudo, o desejo será atropelado pela realidade. Na forja que cria e molda os próximos dias até daqui a um ano próximo de folia, será preciso crer que vale a pena persistir. Cambaleante, Serafim entra no carro, escapa de barreiras alcoólicas de policiais de saco cheio de terem que resguardar a sociedade que se encheu de saciedade e chega em casa. Estaciona o carro na garagem, desce e vai no controle remoto que seu corpo dá encontrar o quarto onde está Constância. A porta, porém, está fechada.
-- Constância, abre a porra da porta! Cheguei! Me perdoa!
O silêncio inclemente que vem detrás da porta é a certeza de que o máximo hoje será o sofá de dois lugares, ralo e velho, que tem na sala. Serafim, no espaço que sobra ao chegar vê que a sua mala está no chão, pronta para com ele zarpar. Devagar, relembra da igreja e da ameaça velada. Tudo bem: o combinado não é caro. “Mas quem sabe amanhã, aliás logo mais, o coração de Constância não mude de ideia?” Serafim deita no sofá, boceja e cai no sono profundo. Na rua o caminhão de lixo passa a catar os restos que cada um acha ser resto. Ainda no clima, um dos lixeiros canta o samba da Mangueira. Logo mais os jurados decidirão se a Verde e Rosa fará jus a mais um título.
Ps.: o título de eleitor do Serafim não estava na mala. Numa madrugada em que festejava a vitória do partido ele foi roubado junto com a carteira em vinte e quatro reais.
 
(Ao som de Cazas de Cazuza)

Acabou...

 Por Ronaldo Faria Acabou! Acabou o Carnaval, o sal da areia colado no corpo, o suor que escorreu entre perfumes falsos e tresloucados beijo...