Por Ronaldo Faria
Barbatana de peixe carcomido, guelras
sem respirar monóxido de carbono, escamas caídas em dramas nas tramas da vida.
Era assim, peixe fora d’água, que Dorival se sabia e se sentia. Sem sentimento e
como infausto corpo jogado no asfalto quente. Resiliente na guerra da espera
utópica que a vida lhe expôs, sobrevivente da crença descrente no amanhã, ouve
o assobio da ave que busca o trinado perdido ao acaso. Do lado, colocado no
alto do púlpito que palpita vida, o padre profere palavras que ferem os ouvidos
de quem passa. “Que nós, pecadores, possamos pescar nossas dádivas nas dívidas
nunca pagas.” Nas pálpebras cansadas dos fiéis, tudo é só palavreado cantado.
Na procissão que se prepara para sair, matronas e meretrizes se juntam para
louvar o Senhor. Na dor, rezas e pregações viram unções às feridas em lamúrias
e torpor de luz de luar.
Asas depenadas como almas que
desanuviaram no céu sem cor, bicos sem minhocas espetadas na ponta do anzol,
olhos que não veem mais o azul que se mistura no branco das nuvens. Desse
jeito, pássaro que tem medo de alturas, Beatriz, mistura de senhora e
atriz, antevia as horas futuras. Nas ranhuras dos móveis imóveis há anos na
sala de cortina fechada e embolorada, transitava calada e performática. Seu gosto
sempre fora a gramática. Porém, dramática, se fechara feito a cortina de veludo
roxo em casa. Descasada e forçada ao autoexílio, personagem principal de uma
peça nunca levada aos palcos e coisa e tal, vivia sentada na cadeira de braços
longos a cerzir seu enxoval enxovalhado para o Natal. Morava num sobrado descascado
na esquina das ruas Boa Morte e Descalvado. Seu número da sorte e da casa fora
roubado.
No vilarejo, benfazejo no meio
do mapa e paradeiro de tropeiros trôpegos, pessoas passeiam sem saber de
Dorival e Beatriz. Nas efemérides próprias, muitas impróprias a se relatar, iam
e vinham a circular no coreto que o correto prefeito Deodomiro inaugurou com
banda de música, cantor da Capital e coral formado por meninos e meninas do
abrigo municipal. O lugar, meio esquecido do mundo, perfumado de flores de
laranjeiras, tinha joviais e brejeiras mulheres que sorriam aos garbosos e
sebosos rapazes. Nalgum momento, dois parariam de circular e se tocariam, falariam
feito matriarcas no jantar e se beijariam em loucura que só o amor dá. E o
lugar seguiria seu curso, sem rumo, bússola ou porto de chegar.
Acima, de onde nem a melhor
sonda espacial saberá existir, o Criador desliga a tevê e ri de tanta
insensatez. “Até hoje eu não sei por que criei esse mundinho. Preciso lembrar o
anjo Gabriel a não me deixar comer pimenta em excesso. A última caganeira foi
demais e deu nisso.” Com um simples piscar desliga o sol e se põe a ressonar. Seu
ronco faz tremer o lugar. Abaixo, tão abaixo que nem o milímetro saberia medir,
o calendário embrionário diz que num ovário outro ser está por vir...
(Ao som de bandas rítmicas nordestinas)