Por Ronaldo Faria
-- E aí, a escola desce ou não desce?
-- Pra descer ela primeiro tem que subir!
O papo de maluco beleza entre Pafúncio e Honório parecia um solilóquio à porta do único mictório da avenida.
-- Como assim?
-- Meu cacete, você perguntou se desce e eu respondi que só desce se subir.
-- Isso eu já sei. Então mudo a pergunta. Sobe?
-- Aí depende do jurado.
O papo estava difícil. Pafúncio, preocupado com o legado do seu pai, que era o mestre de bateria no passado, pensava em seus batuqueiros que não podiam atravessar o samba-enredo. Já Honório, sambista de destaque com seu pandeiro, tinha prometido o título à Adalgisa, a porta-bandeira que dormia com ele todas as noites na cama que rangia volta e meia em Madureira.
-- Tudo bem, então vamos pra cima!
Na avenida que não era a principal como palco da festança, na verdade um espaço para se sonhar um dia estar sob os holofotes de emissoras e cliques de gringos que nunca viram uma passista gingar, o importante era desfilar com fé.
-- Barnabé, segura a onda da ala das baianas. Faz elas rodarem como se o amanhã nunca existisse. Se tiver de morrer do coração, que seja aqui! Nada de Samu e UPA!
-- Tá falado, seu Justiniano.
Justiniano, ainda não apresentado, é o patrono da escola.
-- Carlinhos da Carola, carnavalesco de purpurinas e paetês, quero ver agora se a tua ideia valeu os tantos milhões! Se a escola não subir, pode fugir da comunidade. Afinal, pra se morrer de bala perdida ou achada não tem idade!
Assim, quando a sirene dispara para iniciar o desfile, a escola põe o bloco na rua e mostra desde a comissão de frente, com céleres cavalos marinhos vestidos de plástico para mostrarem a derrocada dos mares (o enredo era “O fim da terra e dos mares na finitude dos deuses da África quando se encontraram com Orfeu”), a força do entredo estaria por vir. O primeiro carro alegórico – A apoteose de Netuno no boteco do Almir – foi um colosso. A sambar sobre a mesa principal, Alícia do Justiniano, mulher do patrono, rebolava sua última plástica a sorrir sem a boca sequer poder fechar. E seguiram alas, novos carros (“Polvo sem tentáculos na rede dos pescadores pecadores” e “Ressaca na seca do sertão”) e alegria que o povão fazia surgir a cantar no samba de Carlinhos Apontador e Gervásio Gago Beleza. No fim do desfile, em fila de agradecimento, integrantes da comunidade beijavam a mão de Justiniano garantindo a cesta básica de março próximo.
-- Agora é esperar o resultado. E Deus que se apiede do jurado que não der dez...
No dia do julgamento, não teve aquele que não visse na Acadêmicos Fabulosos do Ilê de Iaiá do Morro da Piedade Piedosa a campeã. Na quadra, Pafúncio estava preocupado agora era no próximo ano não cair; Honório caía de bêbado feliz porque garantia Adalgisa no barraco por mais um ano; Carlinhos da Carola esperava convite de outra agremiação com menos bala na agulha pra disparar; Carlinhos Apontador e Gervásio Gago Beleza esperavam o Zeca Pagodinho deles um dia poder lembrar da dupla. Barnabé amparava dona Cremilda, baiana mais antiga da escola e que estava estafada, quase em piripaque. Justiniano? Esse ninguém nem precisava falar. Apalpava, beijava e erguia a taça de campeão e via Alícia tentar fechar a boca esticada para a foto do jornal estadual não desfocar.
-- Porra, Alicia, tu não disse que o doutor era porreta? Chiquinho Dedo Trêmulo, meu segurança, amanhã tu vai levar um lero com o vagabundo... E pode passar o rodo.
Na quadra, a felicidade estava a rolar inconsequente e real. O importante era escancarar o fim da espera, terminar os barris de chope e saber que Carnaval é só um dia pra se viver.
(Em homenagem a Beth Carvalho e todos sambistas do País)