Por Ronaldo Faria
O recado é dado e o silêncio é
real, definitivo, longe do afetivo gestual, não abstrato. Substrato do
sentimento chamado amor, talvez esteja perplexo em si mesmo, mortificado por um
mal maior até o fim. Na dó daqueles que esperam reciprocidade, a cidade caminha
entre passos dos casais involuntários e o piscar de faróis incandescentes. Às mentes,
milimétricas danças egocêntricas e tântricas, jusantes findas em um mar que
disseca a seca da paixão, Celidônio está idôneo no frigir de ovos. No caixão fechado,
feito achado final e senão, o corpo de Gerusa descansa a saber que não haverá
nova dança. Na rua, a contradança se entrega nos salões que ainda brilham em
luzes acesas, copos bêbados e cigarros a queimar.
-- Não deu certo por quê?
A pergunta do alter ego de
Celidônio fica sem resposta.
-- Sei lá... Acho que não era
para ser. Foi o que deu. Depois, cada um no seu mundo e destino.
Aos poucos o velório se enche
de pessoas com suas almas penadas cheias de pena de estarem lá. Um ou outro
comenta que preferia estar velando a própria solidão numa mesa de bar. Mas eram
Celidônio e Gerusa. Algo como peritônio queimado por uma medusa. Não tinha como
deixar de dar um abraço no amigo, ver sua musa desnuda do brilho do olhar, quem
sabe a vagar noutro mundo etéreo, prestes a se recolher à eternidade do
cemitério. No seu canto, a relembrar os momentos de ir e chegar, juntar os
corpos e beijar, saudar o fim do dia, comemorar o sol na janela, juntar
sentimentos, receitas e panelas, Celidônio, atônito, espera apenas o ataúde
fechar.
-- Em nome do Pai, do Filho e
do Espírito Santo...
Quando o padre acaba a oração
e benze de água benta o choro que não mais arrebenta ou arrebata dos olhos de Gerusa,
o féretro segue pelas alamedas do cemitério até a sepultura, lugar onde a
saudade e a ternura se juntam como o único destino. Ao fechar da pedra de
mármore com cimento fácil de romper ao próximo corpo que chegar, Celidônio por
fim vê que é hora de recriar caminhos, desalinhos de cabelo quando as mãos da
amada os tocam, pérfidas cenas de afagos quando um fado emerge da vitrola que
pede para se aposentar.
-- Quer carona, Celidônio?
-- Não, obrigado. Vou andar...
Pela praia, cercado de morenas
a mostrarem seus corpos e um ou outro vendedor de chá mate e biscoito de
polvilho, como um novilho longe da boiada, ele pisa na areia fofa e branca.
Lembra das ancas de Gerusa, ri de si, se pergunta para que existe a vida: “Que
besteira vir aqui para não se achar e ser perder.” Olha o casal que se beija em
línguas e acaricia o corpo que está à toa, ouve a toada primaveril de pássaros
que fazem a revoada do amor. Na sua dor tão normal e vulgar, se embrenha no mar
contra as ondas que devagar o cobrem de espumas. É encontrado semanas depois,
em decomposição, marés e correntes marítimas muito longe do local em que se enveredou.
No pasquim das raras bancas de jornal e que escorre sangue nas letras negras, a
manchete é “Cadáver bate na areia por não saber nadar”. No quarto e sala de
Celidônio, medalhas de competições aquáticas esperam para serem jogadas no
lixo.
(Ao som do grande Johnny Alf)