terça-feira, 27 de maio de 2025

Na dor, minha dor primeiro e só

Por Ronaldo Faria


O recado é dado e o silêncio é real, definitivo, longe do afetivo gestual, não abstrato. Substrato do sentimento chamado amor, talvez esteja perplexo em si mesmo, mortificado por um mal maior até o fim. Na dó daqueles que esperam reciprocidade, a cidade caminha entre passos dos casais involuntários e o piscar de faróis incandescentes. Às mentes, milimétricas danças egocêntricas e tântricas, jusantes findas em um mar que disseca a seca da paixão, Celidônio está idôneo no frigir de ovos. No caixão fechado, feito achado final e senão, o corpo de Gerusa descansa a saber que não haverá nova dança. Na rua, a contradança se entrega nos salões que ainda brilham em luzes acesas, copos bêbados e cigarros a queimar.
-- Não deu certo por quê?
A pergunta do alter ego de Celidônio fica sem resposta.
-- Sei lá... Acho que não era para ser. Foi o que deu. Depois, cada um no seu mundo e destino.
Aos poucos o velório se enche de pessoas com suas almas penadas cheias de pena de estarem lá. Um ou outro comenta que preferia estar velando a própria solidão numa mesa de bar. Mas eram Celidônio e Gerusa. Algo como peritônio queimado por uma medusa. Não tinha como deixar de dar um abraço no amigo, ver sua musa desnuda do brilho do olhar, quem sabe a vagar noutro mundo etéreo, prestes a se recolher à eternidade do cemitério. No seu canto, a relembrar os momentos de ir e chegar, juntar os corpos e beijar, saudar o fim do dia, comemorar o sol na janela, juntar sentimentos, receitas e panelas, Celidônio, atônito, espera apenas o ataúde fechar.
-- Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo...
Quando o padre acaba a oração e benze de água benta o choro que não mais arrebenta ou arrebata dos olhos de Gerusa, o féretro segue pelas alamedas do cemitério até a sepultura, lugar onde a saudade e a ternura se juntam como o único destino. Ao fechar da pedra de mármore com cimento fácil de romper ao próximo corpo que chegar, Celidônio por fim vê que é hora de recriar caminhos, desalinhos de cabelo quando as mãos da amada os tocam, pérfidas cenas de afagos quando um fado emerge da vitrola que pede para se aposentar.
-- Quer carona, Celidônio?
-- Não, obrigado. Vou andar...
Pela praia, cercado de morenas a mostrarem seus corpos e um ou outro vendedor de chá mate e biscoito de polvilho, como um novilho longe da boiada, ele pisa na areia fofa e branca. Lembra das ancas de Gerusa, ri de si, se pergunta para que existe a vida: “Que besteira vir aqui para não se achar e ser perder.” Olha o casal que se beija em línguas e acaricia o corpo que está à toa, ouve a toada primaveril de pássaros que fazem a revoada do amor. Na sua dor tão normal e vulgar, se embrenha no mar contra as ondas que devagar o cobrem de espumas. É encontrado semanas depois, em decomposição, marés e correntes marítimas muito longe do local em que se enveredou. No pasquim das raras bancas de jornal e que escorre sangue nas letras negras, a manchete é “Cadáver bate na areia por não saber nadar”. No quarto e sala de Celidônio, medalhas de competições aquáticas esperam para serem jogadas no lixo.
 
(Ao som do grande Johnny Alf)


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