segunda-feira, 25 de julho de 2022

A boa trilha do Trem Misterioso

Por Edmilson Siqueira 

Um filme de 1989 reuniu, na sua trilha sonora, um respeitável time de roqueiros, baladeiros e blues-men que até hoje ainda são ouvidos por aí. O filme se chama Mystery Train e é uma antologia de comédia-drama escrita e dirigida por Jim Jarmusch e ambientada em Memphis, Tennessee. O filme é composto de três histórias envolvendo protagonistas estrangeiros, que se desenrolam ao longo da mesma noite. 


Mas o que nos interessa aqui é a trilha que abre com um sucesso de Elvis Presley de 1955, e que deu nome ao filme. Elvis gravou "Mystery Train" em 1955 e a canção voltou anos depois com algumas mudanças e acabou abrindo a trilha do filme e lhe dando o nome. 


A segunda faixa do disco também é Mystery Train, só que na versão de Júnior Parker, que é seu autor e a gravou em 1953. A versão de Elvis melhor, mas essa se apega mais às raízes da country music. 


O clássico "Blue Moon" (Rodgers e Hart), uma música gravada por roqueiros e jazzistas, aparece na terceira faixa, na versão de Elvis Presley, que colocou nela todo romantismo possível.


O grande Otis Redding dá um brilho especial à trilha, comparecendo com "Pain in My Heart" (Naomi Neville), com ótima interpretação desse que foi um de seus maiores sucessos em sua curta carreira, que acabou aos 29 anos um acidente de avião.  


Outro grande, Roy Orbison, aparece com "Domino" (Samuel Phillips). Trata-se de rock e dos bons. "The Memphis Train" (Mike Rice, Rufus Thomas e Willie Sparks) vem a seguir na voz de Rufus. Outro rock no melhor estilo americano, aliás, uma das melhores gravações do disco. 


"Get Your Money Where You Spend Your Time" (Tommy Tate e James Palmer) é a sétima faixa, na interpretação da Bobby Blue Band, uma soul music da pesada, onde os metais se sobressaem.  O clima continua na faixa seguinte, "Soul Finger", uma música com nada menos que seis autores. É a primeira só instrumental do disco. 


A "segunda parte" do disco (as aspas são porque da nona música em diante deve ser o lado B do disco de vinil) é toda composta por John Lurie e tocada por ele próprio na guitarra e na gaita, por Marc Ribot na guitarra e no banjo), por Tony Garnier no baixo e por Douglas Bowne na bateria. Trata-se da chamada música incidental que deve acompanhar os personagens nas diferentes cenas do filme. São oito trilhas instrumentais que podem ser ouvidas com atenção ou não, O grande filé do disco são as oito primeiras faixas com grandes intérpretes e ótimas músicas. 

O disco pode ser ouvido na íntegra no YouTube em https://www.youtube.com/watch?v=E971qc92J1I&list=PLXdA5lMqFnPEOTRKxSLCL7XaOQivGAAkG . E ainda pode ser comprado por aí nos bons sites do ramo. 

sábado, 23 de julho de 2022

Ellis Marsalis e seu coração de ouro

Por Edmilson Siqueira 

A gravação que vou comentar hoje foi feita entre os meses de fevereiro e junho de 1991 e foi dedicada a uma porção de gente, filhos amigos e parentes do artista e também a todos do presente, do passado e do futuro na América que tocarem a mais profunda e original música: jazz.  


Essa dedicatória é de Ellis Marsalis (1934 - 2000) que não só foi um excelente pianista de jazz, como teve filhos que se tão grandes como o pai na arte que o velho endeusava. Wynton, Bradford, Ellis Marsalis III são alguns deles. 


O disco, que se chama "Heart of Gold" é dessas pérolas do jazz mais que tradicional, com piano, bateria e contrabaixo. Na maioria das faixas, o baixo é de Ray Brown e a bateria está com Billy Higgins, mas Reginald Veal (baixo), Herlin Riley (bateria) e Jason Marsalis (bateria- e mais um da família) tocam em algumas faixas.  

O CD que tenho é muito bem produzido, com um encarte com um longo texto de Lolis Eric Elie contando um pouco da trajetória do músico e também comentando as excelentes gravações que nos trazem alguns clássicos do jazz norte-americano.  


A primeira faixa é "Have You Mett Miss Jones?" (R. Rodgers e L. Hart), que já demonstra o domínio total do instrumento e do gênero tanto do piano de Ellis quanto da bateria de Billy Higgins e do baixo de Ray Brown, com ótimas participações. A segunda é "Never Let Me Go" (J. Livington e R. Evans), uma balada lenta que pode aquecer qualquer encontro a dois. A terceira faixa é a primeira de autoria do próprio Marsallis - "Chapter 2" - e segue a linha da anterior. Ela antecede o primeiro clássico do disco: "This Can't Be Love", também da dupla L. Hart e R. Rodgers.  


"Spring Can Really Hang You Up the Most" (F. Landersman e T. Wolf) a quinta faixa é um solo de piano. A seguir, o swing toma conta do disco novamente com "Swingin At The Haven" de Marsallis. "Dr. Jazz" deve ter dado orgulho ao pai ao tocar, pois é de seus filhos W. Marsallis e de J. Oliver.  


A nona faixa volta aos clássicos do jazz: "Do You Know What It Means To Miss New Orleans" (L. Alter e E. Delange), seguida de mais um dos standards: "I Can't Give You Anything But Love" (D. Fields e J. McHugh). Em seguida vem outra música com um balanço de fazer inveja à bossa nova:  "Surrey With The Fring On Top" (R. Rodgers e O. Hammerstein II)   


Num disco com tantas coisas boas, não poderia faltar Cole Porte. E a obra do grande compositor é representada com "Love For Sale", numa interpretação correta e inspirada. 

O jazz com raízes mais profundas comparece na décima faixa: "Sweet Georgia Brown", a música gravada por dez entre dez grandes intérpretes do jazz. Composta em 1925 por B. Bernie, K, Casey e M. Pinkard, a música atravessou o século passado como referência de qualidade. Ellis Marsallis mantém a tradição com uma gravação que não fica devendo nada às melhores.  

"El Ray Blues" (E. Marsallis e R. Brown) e "A Nightingale Sang In Berkeley Square fecham esse ótimo disco do pai de, talvez, a mais famosa família jazzística dos Estados Unidos. 


O CD pode ser ouvido na íntegra em https://www.youtube.com/watch?v=hEk6OC_yQiU&list=OLAK5uy_nGelIk1A6Cgxt8jxnmX_IDPEy_8kQAv1M e ainda pode ser comprado nos bons sites do ramo.

sexta-feira, 22 de julho de 2022

Valse-Serenade

 Por Ronaldo Faria

Carta amarelada pelo tempo, ausência de vento e luar. Na esquina, um violão dedilha a urdida poesia que sai pela noite a voar. Há canção e unção para fazer a criança ninar. Na varanda que se debruça na rua, um casal troca olhares e tece juras para quando o tempo não mais tardar. De malas prontas, a saudade se prepara para viajar. Há um pedaço de beijo jogado ao lado dos lábios, um abraço largado feito fado e um passo perdido no chão ensanguentado da dor. A tudo isso chama-se amor. Uma receita de condimentos e ervas que suam à panela gelada para no olfato exalar lembranças das crianças que nunca fomos. No forno, queimando entre chama e carvão, uma receita de volta escrita feito oração.

Coloque uma pitada de segredo sobre o degredo que a partida do amor faz e fará.

Encha de canções que marcaram, lugares que ficaram e madrugadas que se achegaram.

Cozinhe tudo em fogo brando, sem a panela fechar. A inexata tristeza far-se-á queimar.

Polvilhe a massa do passado com recordações felizes. Deixe descansar num canto do coração.

Não esqueça de mexer sempre com grãos de fotos, cartas, frases, cheiros e sentidos.

Frite qualquer pedaço de rancor no óleo quente. Deixe queimar de propósito e se desfaça de todo ele. Lave a frigideira.

Corte bem pequeno o desejo de voltar. Ponha tudo num pote separado e rotule para, no futuro, saber se ainda quer utilizar.

Descasque com faca afiada o que não foi bom. Em tiras curtinhas. Mas, cuidado para nessa tarefa não se cortar.

Pegue um pouco de pimenta, daquelas que aquecem os sonhos, e jogue dentro da panela que agora estará em ebulição.

Tampe e espere o tempo que for. Quando, lá fora, a primeira chuva chegar, vá ao jardim e colha lírios, rosas e jasmim.

Decore o prato com exatidão e destreza. Ponha uma toalha florida à mesa. Não esqueça o vinho e a sobremesa.

Vire tudo o que está na panela numa tigela branca e reluzente. Daí, saiba, há de voltar tudo o que estava ausente.

Depois, ao ouvir a amada (ou o amado de fato), abra a porta devagar, respire fundo, erga os olhos, estique os braços para um abraço apertado e deixe a vida entrar.

E, claro, bom apetite ao que vier e restar...

quinta-feira, 21 de julho de 2022

Um trio brasileiro e universal

Por Edmilson Siqueira 

“Produzir, sem medo de ousar, a boa música instrumental brasileira”. Assim o Aquarela Sonora encara seu trabalho. Com piano, bateria e contrabaixo, o trio tem uma formação clássica que nos remete, logo de cara, a um trio de jazz ou aos trios que desvendaram inúmeros caminhos da moderna MPB nos fins dos anos 50 e início dos 60 no bojo da bossa-nova. E a relação com o jazz e a bossa-nova, influência mesmo dessas manifestações gêmeas, são visíveis em todo o CD "Estação Suburbana", que o trio lançou em 2003 e que vai continuar sempre atual. Ike Siqueira (não é parente meu, infelizmente) é o baterista do conjunto, Paulo Miotta (piano) e Paulo Signori (baixo acústico) completam essa turminha que nos brinda com um disco prenhe de excelentes composições. O trio é daqui de Campinas, onde vivo, mas poderia ser do Rio, de São Paulo ou de Nova York.   


Com exceção de "Caminho de Minas", escrita pelo produtor do CD, Marco Ferrari, todas as outras 12 músicas são de Paulo Miotta, que já pode ser considerado uma das mais gratas revelações da música instrumental brasileira dos últimos tempos.  

O CD é suave e forte ao mesmo tempo, equilibrando muito bem a brasilidade das composições com elementos que a internacionalizam. Remete, em alguns momentos, a Egberto Gismonti e suas aventuras ao piano; outras ao lendário Zimbo Trio, que encantou toda uma geração. Mas, qualquer que seja a lembrança, a música do trio tem uma criatividade difícil de se encontrar por aí. 


Um dos aspectos mais interessantes do trabalho é que, a partir de uma formação tradicional, o Aquarela consegue buscar caminhos que dão a ele uma aparência moderna, mercê as excelentes performances de Paulo Miotta ao piano. Bateria e contrabaixo aparecem na medida exata da contribuição que podem dar à música, sem exageros ou exibicionismos, coerentes com a proposta de fazer música pelo prazer e pela beleza, sem abrir mão da ousadia. No caso, ousar é saber. 

É saber, por exemplo, que a riqueza da música brasileira reside na simplicidade dos temas que a sensibilidade pesca por aí, que a miscigenação ocorrida por aqui, com os elementos africano e índio se misturando ao europeu, resultou num povo de extrema musicalidade. E que essa musicalidade atravessa fronteiras derrubando barreiras pelo mundo afora e colocando o músico brasileiro numa posição de destaque em qualquer país. 


O CD do Aquarela Sonora é um trabalho que pode ser classificado de excepcional, mas que, infelizmente, pouco toca nas rádios brasileiras. Se encontrar o CD por aí, não titubeie: você estará comprando 47 minutos e 49 segundos da melhor música instrumental brasileira.  


Ainda há alguns exemplares do Estação Suburbana por aí, nos bons sites do ramo. E ele pode ser ouvido na íntegra no Spotfy em https://open.spotify.com/album/0fSDslNADuHqpbPcGP0dGQ . 

quarta-feira, 20 de julho de 2022

Ao Belchior

 Por Ronaldo Faria

Recomeço ao avesso. Corpo vestido de vida. Entre unguentos e feridas. Emoções urdidas e salivas ardidas. Beijos a se perderem no tempo. Nas esquinas sobrevive o vento. Um veleiro talvez a singrar o rio. Na ponta das águas há um mar. Um poeta a cantar. Um trovador a amar. No fim do todo, a certeza despudorada de que existe saudade tragada de tudo. E tem corações largados. Tem casais em orações perpétuas e finais. No caminho, pequenas cruzes que levaram anjos para o céu. Homens enlouquecidos à porta do bordel. Mulheres a deitarem os corpos no colo do desterro que está aquém do chão. Meu pedaço de universo que se atira além do ar.

Avesso do recomeço. Vida vestida de corpo e copo. Feridas que são unguentos. Ardidas emoções e urdidas salivas em sálvia. Tempo a se perder nos beijos. Vento que às esquinas vive. Rio que se deixa ao veleiro singrar. Um mar, sem ponta, às águas. Cantoria de poeta. Amar de trovador. A saudade despudorada do fim que se traga de tudo para o todo ser. Largados corações. Finais casais em perpétuas orações e porções. Anjos, do céu, caminham entre as pequenas cruzes que levaram. Na porta dos enlouquecidos, um homem e o bordel. Aquém do chão, desterro de mulheres em seus corpos deitados. No universo que se atira, um pedaço meu vai além do ar.

Cavaleiro solitário

 Por Ronaldo Faria O bar está fechado. Parece há tempo. Mas Hermínio não se dá por vencido. Enquanto houver uma sede por beber, beber-se-á. ...