quarta-feira, 2 de novembro de 2022

Um cantinho, um violão e um violino

Por Edmilson Siqueira 

Um violinista e um violonista se juntaram para gravar um disco lá nos longínquos anos de 1974 e de 1977. Como ambos eram geniais, o disco se chamou "A Grande Reunião". Em 1974, tocaram os dois juntos, com bateria e contrabaixo e, em 1977, foram acompanhados, em uma das músicas, por uma grande orquestra.  


O violinista era ninguém menos que o francês Stèphane Grappelli e o violonista era o nosso internacional Baden Powell, o que, claramente justifica o nome do disco. E ambos foram sobejamente famosos no mundo do jazz e da bossa nova nos anos em que viveram de suas artes. Grappelli morreu em 1997 e Baden em 2000. A obra de ambos é eterna e, tenho certeza, continuará sendo apreciada e ouvida no mundo inteiro enquanto houver ouvido sensíveis à boa música. 


Foram acompanhados no contrabaixo por Guio Pedersen, na bateria por Pierre-Alain Dahan e na percussão por Clément De Waleyne e Jorge Rezende.


Não sei quando foi lançado o CD que tenho há muitos anos, mas, pesquisando informações sobre o disco, descobri que há um segundo volume, sinal que a gravadora francesa que produziu o trabalho, gostou do resultado.  

A primeira faixa traz música do baiano Gilberto Gil, "Eu Vim da Bahia", um dos seus primeiros sambas. Aliás, sobre ele, tenho uma historinha interessante: Gil trabalhou na Gessy Lever em Valinhos, nos anos 1960, pouco antes de se destacar no Fino da Bossa e desistir da carreira de administrador de empresas para se dedicar (ainda bem!) totalmente à música.  Minha irmã mais velha trabalhava lá, acho que na mesma seção, tanto que ela contava que ele sempre cantava umas músicas no intervalo do almoço para a moçada. Um dia ela apareceu com uma letra de música em casa e disse: "É do Gilberto Gil, um colega lá da Gessy".  Pois era justamente "Eu Vim da Bahia", datilografada pelo próprio. Infelizmente nem ela nem eu guardamos a folha, mas da história me lembro muito bem.  


A segunda música inaugura uma seleção de clássicos da MPB: "Meditação", de Jobim e Newton Mendonça, ainda só como violão, bateria e contrabaixo acompanhando o solo do violino de Grappelli.  


A única música de Baden no disco vem a seguir. Trata-se de "Berimbau", parceria com Vinicius de Moraes, o mais famoso afrosamba da dupla. É a única que tem um acompanhamento orquestral. 


A seguir, "Desafinado", também de Jobim e Newton Mendonça, é aberta com uma introdução ao violino que não lembra a melodia, própria de um jazzista como Grappelli.  

"Samba de Uma Nota Só", de Jobim, abre o "lado B" do disco original. A melodia simples de Jobim ganha ótimo improviso de Baden e também de Grappelli, e acaba tendo 5 minutos e 42 segundos, a terceira maior do disco. 


O sucesso de João Gilberto, "Isaura", de Herivelto Martins e Roberto Roberti, também entrou na "Grande Reunião" na forma de um sambinha lascado, que diverte quem ouve. 


"Amor em Paz", de Jobim é a penúltima faixa do disco. A belíssima melodia do nosso maestro soberano desliza pelo violino de Grapelli e pelo acompanhamento inicial de Baden com a nobreza que lhe é peculiar. O disco todo é ótimo, mas essa faixa acaba ganhando ares de especial pela qualidade da interpretação dos dois instrumentistas. 


Por fim, quase uma homenagem à terra dos autores de todas as músicas do disco, Grapelli e Baden interpretam "Brazil" que foi o nome que "Aquarela do Brasil" recebeu ao iniciar sua turnê internacional ao fazer parte da trilha de um desenho animado da Disney, onde estreava o "personagem" Zé Carioca, criação baseada no que Disney entendeu ser o o malandro da cidade do Rio de Janeiro. Mas é um dos maiores sucessos de todos os tempos da nossa MPB.


Tanto do CD quanto o LP ainda são vendidos por aí, nos bons sites do ramo. No YouTube dá pra ouvir não só o volume 1 como o 2 também, mas o segundo tem apenas duas músicas brasileiras. O link do YouTube: https://www.youtube.com/watch?v=SxRo_R9bz-8 . 

terça-feira, 1 de novembro de 2022

Zé Renato e Renato Braz

 Por Ronaldo Faria

Passa passarinho perneta de perna e asa quebradas. Vai avoar para lá. Seguir seu céu cheio de nuvens anuviadas e cheias de chuva sem cair. No meio da estrada, cheia de poeira e de pó, o barro se enlameia de lágrimas secas e olhos vermelhos de tramas e tranças entrelaçados no corpo magro que definha largo à beira da única e uníssona vida.

Passa feito padre com suas rezas escritas ao léu e surdas feito o sabor do fel. Vai rezar para longe, com suas cantigas e cânticos que não transpassam dos pórticos. Na lonjura do desterro, de onde nem o olhar mais perto pode ver, há querência e ser. Catatônico, afônico, histriônico na imensidão do copo vazio de tanto se entornar de solidão.

Passa silencioso cantador da dor eterna e leva sua ternura à candura das brumas que não encontram barco sequer para balançar. Na saudade leviana e mundana, jogada às capistranas de capitanias há muito hereditárias entre as razões e o sonhar, volta à sua terra de carne e osso, de onde saístes criança e agora volta feito moço.

Passa à parcimônia antagônica da mulher que gira feito pomba e regira no mundo afora. A desgarrar de um sertão como veia aviltada de sangue que se larga ao coração. No limite entre o amanhecer e entardecer que não se vê. Feito alma desalmada que ama a eternidade e dorme quieta e discreta num canto qualquer sem ser.

Passa passarinho, caolha e sem bico, sem pena e voar, no alto da mansidão que anuvia a poesia do cantar. Fica calado no fio de arame a balançar sem eternidade ou lugar. No descalabro sincero que existe entre o novo e o velho. Pare nos moinhos de vento, suba e desça de acordo com o desejo da brisa que de tanto bater ainda há de furar.
 
(Ao som de Zé Renato e Renato Braz)

segunda-feira, 31 de outubro de 2022

Presente de Natal de Diana Krall

Por Edmilson Siqueira 

Já escrevi aqui que tenho quase todos os discos de Diana Krall. E hoje vou escrever sobre mais um deles. Um dos melhores, por sinal. É o trabalho que ela fez sobre as músicas de Natal. Tradicional entre grandes artistas da música nos Estados Unidos, o "disco de Natal" está presente no catálogo de Frank Sinatra, Nat King Cole, Elvis Presley e muitos outros.  


Diana, jazzista das melhores, abre seu disco, lançado em 2005, com a mais que tradicional "Jingle Bells", de James Pierpont, mas a seu modo. Uma interpretação bem rápida, com muito swing e com acentuada participação dos metais da Clayton/Hamilton Jazz Orchestra que, aliás, está presente em quase todas as faixas do disco. Ficou ótimo. 

"Let It Snow" de Julie Styne e Sammy Cahn, é outra das mais tradicionais e presentes em quase todos os discos natalinos. Aqui Diana também força no swing fazendo um espetacular duo com a orquestra. 


A terceira faixa é "The Christmas Song", de Mel Tormé e Robert Wells. Suave, ela serve para aliviar o clima acentuado das duas faixas anteriores. É mais uma ótima interpretação intimista de Diana, com seu piano discreto e correto. 


"Winter Wonderland", de Felix Bernard e Richard Smith, vem a seguir, retomando a marcação mais forte, desta vez feita, inicialmente, pelo contrabaixo, mas que se completa com a sessão de metais da orquestra.  


Outra tradicional dessa época: "I'll Be Home For Christmas" de Kim Gordon, Walter Kent e Buck Ram, volta às baladas românticas que Diana domina tão bem.  

O clima romântico prossegue com "Christmas Time Is Here", de Vince Guaraldi e Lee Mendelson, para ser quebrado logo em seguida com "Santa Claus Is Coming To Town", de Fred Coots e Haven Gillespie, que foi gravada como rock por Bruce Springteen, mas aqui ganha ares mais jazzísticos e calmos, sem perder o balanço, com outra grande participação dos metais da orquestra. 


"Have Yourself A Merry Little Christmas", de Ralph Blane e Hugh Martin, volta o aconchego da balada romântica, preparando o espírito do ouvinte para a, talvez, mais gravada música de Natal de todos os tempos: "White Christmas", de Irving Berlin, num arranjo especial, apenas com piano, guitarra, contrabaixo e bateria. Outra gravação intimista, fugindo um pouco à regra de outras gravações dessa música, mas que destaca a belíssima melodia do grande Irving Berlin.  


A décima música do álbum é "What Are You Doing New Year's Eve", de Frank Loesser, que começa com um belo solo de guitarra, preparando o clima meio tenso da música, que tem Tamir Hendelman a bordo de um piano Fender Rhodes, dando um toque especial à faixa.

"Sleigh Ride", de Leroy Anderson e Michael Parish, vem a seguir, numa interpretação alegre e bem marcante de Diana, com alguns bons solos de trompete e trombone. 

Encerrando a seleção, temos "Count Yours Blessings Instead Of Sheep", quase uma oração sussurrada por Diana no início, para depois ganhar os ares de balada natalina escrita por Irving Berlin. 


Taí uma boa sugestão de presente natalino, já que estamos quase entrando nesse clima.  


O CD está à venda ainda nos bons sites do ramo e pode ser ouvido no YouTube em https://music.youtube.com/playlist?list=OLAK5uy_kATE-Vs06L3ewWiOC-atMIlgkm9JbyoSs . 

sábado, 29 de outubro de 2022

A "Bahia" de John Coltrane

Por Edmilson Siqueira 

"Bahia", com John Coltrane. É o que estou ouvindo agora. Sim, "Bahia" de Ary Barroso, gravada em julho de 1958. Tá bom, você conhece por "Na Baixa do Sapateiro"? Ok.  


Pois essa música abre o disco do mesmo nome e, no encarte, Robert Levin explica que, "durante os meses finais de seu trabalho e parceria com Miles Davis, John Coltrane participou de várias sessões de gravação para o selo Prestige e New Jazz, sem Miles e, às vezes, usando um ou mais integrante do grupo na sessão rítmica. Esse disco, "Bahia", é uma continuação da grande série de gravações daquele período, que teve um significado muito grande na obra de Coltrane." 


Em "Bahia", que tem 6 minutos e 15 segundos, Coltrane, entra de sola na bela melodia de Ary Barroso por cerca de 40 segundos. Depois, a música vai saindo de sua cabeça e seu sax se torna o condutor de uma sequência de sons que apenas seguem o ritmo da bateria de Art Taylor, até parar para dar vez ao piano de Red Garland que também viaja no improviso. Do mesmo modo, Paul Chambers no contrabaixo, faz com o arco sua participação solo na faixa. Só aos 5 minutos e 23 segundos, Coltrane volta com a melodia que os inspirou a todo esse improviso.  


A segunda faixa é "Goldsboro Express", do próprio Coltrane, e serve para ele mostrar suas qualidades de instrumentista, num som rápido com uma bateria meio insana, por 4 minutos e 41 segundos. É a menor das cinco faixas do disco. 

Depois vem "My Ideal", de Richardson Whiting. Trata-se de uma balada, que lembra outras fantásticas que ele gravou em "Coltrane For Lovers", um disco clássico de jazz, inclusive com a participação do cantor Johnny Hartman. Só que essa é mais longa, com seus 7 minutos e 30 segundo.  


A quarta faixa é  I'm a Dreamer (Aren't We All?)", de Sylva, Brown e Henderson, e ela serve para Wilbur Harden mostrar todo seu talento ao trompete. E Coltrane volta a frequentar o jazz mais contido, mais próprio de orquestras, mas sem perder a velha e grande categoria. 


Por fim, "Something I Dreamed Last Night", de Yellen, Magidson e Fain, também é uma belíssima balada, que cai muito bem no estilo de Coltrane. Por 10 minutos e 48 segundos, ela nos leva, ao som do sax, do contrabaixo e do piano a pensar num bom uísque ou num bom vinho para acompnhar seus lenmtos compassos.  


Apesar da música título do disco ser brasileira, o disco é importado. E está à venda em alguns sites, como Mercado Livre, por um preço um tanto quanto salgado. Não encontrei o disco inteiro no Youtube, mas todas as músicas estão lá, separadas. 

sexta-feira, 28 de outubro de 2022

Ao Gato Barbieri

 Por Ronaldo Faria

Estrada longa à frente. “Xongas”, diria um qualquer. “Milongas”, outro ninguém. O sax se solta ao entardecer. No escuro, um urro. Desejo incrédulo da mesa de bar e figura transfigurada do homem ao gole derradeiro. Espantalho num campo sem centeio. Na rua a mulher emudece diante dos faróis que rebrilham no asfalto enegrecido da fumaça que volatiza dos escapamentos. À espera do nada, filigranas de paixão se espalham no espelho que a tudo reluz. Desnudo, o dia se embriaga de beijos e trejeitos, carícias mil. Vozes roucas e rubras se desvanecem na penumbra tardia da vida. Entre um gole e outro, o abraço solto do louco que se entrega à orgia da solidão. Em sofreguidão. Afinal, na estrada longa à frente há um percurso, o transcurso entre o tátil e o taciturno. O limite entre o homem e o semideus. A incerta realidade entre a chegada e o adeus. A brincadeira sem eira e nem beira às margens do mar. No barco distante, o pescador enche a rede de incertezas e senões. Um peixe aqui e outro acolá se atiram para a morte. Uma sereia dança aos cânticos das conchas que brincam nos ouvidos dos menos precavidos. Na ponta do cais, a mulher chora seus derradeiros ais. Perto, o bonde se bandeia para qualquer lugar. O menino sobe no estribo a gargalhar. Da calçada, o moço vê os joelhos da moça na saia que o vento faz rodar. Ao som do sax, o tempo parece parar. Acima, uma pipa parece papear com a noite que chega por chegar...

Cavaleiro solitário

 Por Ronaldo Faria O bar está fechado. Parece há tempo. Mas Hermínio não se dá por vencido. Enquanto houver uma sede por beber, beber-se-á. ...