quinta-feira, 5 de maio de 2022

A foto, o feto

 Por Ronaldo Faria

"Morrer é foda. Viver é difícil!"

(Renato Russo)

 

Um homem mais feliz que a felicidade. Um garoto a brincar de bola entre uma foto e um instantâneo piscar de olhos. Um menino contra o outro. Ambos afoitos, fetos do futuro que não cabe a nós traduzir, ver ou medir. E quantos abraços não terão acontecido nesta disputa louca e irreal, marcada em fotograma e química, unindo vidas que se foram e se fundiram em risos e rezas pelo dia de amanhã. Coisa de paixão e sonho de vazio real, feito a última gota que cai no copo translúcido como o riso da infância sem saber o que será a vida para frente: se vai acabar de repente ou vai seguir em rompantes do haver. É, será ou há de ser?

Um homem mais feliz que a saudade. Um menino a driblar cárceres e sinas de fugas e fétidas celas encravadas no simulacro de eras para milhares de feras. E quantas brincadeiras não terão se refeito de unir e vaticinar dias melhores, cheios de torcidas e cismas ensimesmadas de um toque a mais, um drible refeito, um gozo fértil de olhar para o céu, ver o sol e dizer: este momento, finito, não há de morrer.

Coisa de criança, anciã na saudade que arde e infantil no simulacro que existe entre o estar feliz e ser triste. Ou, senão, simplesmente, ser. A ilusão vai vencer o que há de limite entre o céu e a terra. E o gol sairá e a volúpia da embriagada jogada em verdade far-se-á. Ela sempre há de se fazer e verter. Até a derradeira dividida do que é e daquilo que não foi. Até o último tocar em um passado que voltou.

A água que cai tosca molha a terra e espera o líquido da eternidade. E se a chuva é fria, molhada e louca é dela que a vida a vida trará a perfídia. Tratante ou tátil, insone ou louca.

Ps.: Acabaram dúzias de cerveja. A verve ainda há de se comprar do arremate entre o que se vê agora e aquilo que se quer que o outro veja no porvir do virá!

quarta-feira, 4 de maio de 2022

Toda a ternura de Al Jarreau

Por Edmilson Siqueira 

Quando eu espeto o pendrive no carro, a primeira música que aparece é "Mas que Nada", o grande sucesso mundial de Jorge Ben Jor. Só que o arranjo é diferente, começa com um bom batuque de samba, evolui para uns metais e entra um coro com a introdução famosa para, logo em seguida, surgir um cantor norte-americano cantando em português, num honesto esforço de dizer as palavras como elas soam pra nós.  


Pois esse cantor é ninguém menos que Al Jarreau, que nos deixou em fevereiro de 2017, às vésperas de completar 77 anos. Só para situar o leitor no tamanho de Al Jarreau, ele foi o único cantor a ganhar três Grammys em três categorias vocais diferentes. Suas qualidades de transformar qualquer música em algo diferente e, muitas vezes, melhor, talvez seja única.  


O disco que abre com o nosso Jorge Ben Jor, cuja música talvez tenha sido a mais "respeitada" em sua forma original de todas as outras onze, se chama "Tenderness", referência à segunda música, "Try a Little Tenderness", outro sucesso mundial. Foi gravado em 1993, onze músicas em Los Angeles e uma em Nova York.  

O disco todo, aliás, é feito de clássicos de alguns gêneros, como diz o texto da contracapa. Al decidiu, depois de ganhar os três Grammys em categorias vocais diferentes - R&B, pop e jazz, fazer um disco recheado dessas três categorias. 

"Mas que Nada", não se encaixa em nenhuma delas, mas tudo bem, ficou ótima a versão.  


Depois de cantar Try a Little Tenderness, numa interpretação de tirar o fôlego, é a vez do pop ser representado pelo primeiro sucesso de Elton John, "Your Song", no qual Al Jarreau passeia com toda a categoria que sua voz lhe representa.  


O jazz vem em seguida, num clássico que, se não era jazz na sua origem, vários grandes instrumentistas puxaram "My Favorite Things" para o gênero. Aqui, a música é apresentada na companhia da soprano lírica Kathleen Battle, o que dá mais brilho ainda ao trabalho. 


Como o disco é recheado de clássicos de três gêneros, os Beatles não poderiam ficar de fora. Do vasto repertório da banda, Al Jarreau pescou uma pérola de Paul McCartney - "She's Leaving Home". à já melodiosa música, Jarreau empresta todo seu talento vocal e perpetra novo arranjo, tornando tudo mais tenso e, difícil missão, nada fica a dever à gravação original. Eu diria que ficou até melhor.  


Outra que não poderia faltar é "Summertime", uma das músicas mais regravadas do mundo e, por isso mesmo, difícil de nela colocar novos elementos que diferenciem de tudo que já foi feito em torno da melodia do espetáculo "Porgy and Bess". Mas Jarreau, talvez influenciado pelo "Mas que Nada" de Jorge Ben, tasca um acentuado ritmo de samba, o que lhe proporciona vários malabarismos vocais. E, claro, ficou ótimo.  


O lado compositor de Al Jarreau aparece em três faixas: "We Got By", "You Don't See Me" e "Dinosaur", essa última em parceria com Marcus Miller e Robby Scharf. As três são ótimas. 

Pra encerrar, "Wait for the Magic" e "Go Away Little Girl" completam esse disco que eu recomendo a quem quer ouvir música muito boa. 


O CD está à venda nos bons sites do ramo e pode ser ouvido na íntegra no YouTube em https://www.youtube.com/watch?v=tCbwd7tcm6g&list=PL7gp579CMkT8kvW9agRTRRO3BeBEIOtml . 

terça-feira, 3 de maio de 2022

Para Eduardo Gudin

Por Ronaldo Faria

 
Boa noite trágica e desmedida vida, cheia de incrédulos amantes, vazios inacabados, sonhos cheios de histórias malucas e sabe-se lá de onde e tantas vindas em quais e tais idas.
Boa noite passado quase asmático, desmesurado, largado entre atabaques e batuques indistintos e retintos nas ladeiras de uma terra linda, ladeiras mil para se enroscar.
Boa noite inaudita manhã onde passos tresloucados se acham felicidade a voar entre igrejas mil e pernas entrelaçadas num quarto de pedras onde escravos viram o velho porvir.
Boa noite desgarrada da visão da felicidade largada e ensimesmada, travada em desejos tardios e vadios que valeram camas a correr o quarto, madrugadas de samba e suores mil.
Boa noite último trago, derradeira tragada, cara lavada ao amanhecer, vaticínios perpétuos e inócuos no ponto perdido entre um rio e o mar que quebram juntos e barulhentos.
Boa noite escuridão cheia de estrelas a brilhar e uma lua quiçá a crescer ou diminuir num céu que se enche de cores e amores, dores travadas à eternidade dos poetas e profetas.
Boa noite mágica canção feita de versos e rimas, trovas e quadras, notas e ilusórias incertezas de que a certeza flutua numa tênue linha entre o momento que foi e aquele que virá.
Boa noite surdo, violão, cuíca e tamborim. Tragam um samba novo, uma poesia arrancada sabe-se lá de onde e um pedaço morto de esperança da tardia última hora de cada ser.
Boa noite qualquer coisa, fragmento de lamento e desilusão, fragrância e compaixão que reverbera inaudível aos ouvidos distantes e equidistantes do coração que bate claudicante.
Boa noite sincera desilusão que chega quieta a se arrastar nos cantos das veias abertas da ferida que nunca fecha e acha que pode ser verdadeira na esteira entrelaçada do fim.
Boa noite acalanto de um pranto que desce irrestrito e inacabado, arfado de um sobe e desce que faz os corpos se entrelaçarem ilusórios e inodoros diante da podridão do se largar.
Boa noite santos que chegaram da África para um novo mundo que se esvaiu em chagas, feridas, sangue e acreditar. Quiçá, serão vocês o caminho revisto do outrora derrear.
Boa noite dança que vence qualquer relembrar em fotogramas e dramas, ondas e luares, areias que foram pisadas e reprisadas para ajuntar e separar desejos e ensejos críveis.
Boa noite silêncio crivado de sons que ficam e petrificam em neurônios e junções imaginárias a sintonia perpétua que nasceu de parteiras e se viram parceiras e fugitivas furtivas almas.
Boa noite algozes de vozes e alforjes que levam pesados fardos a levitarem em estradas cheias de poeiras e esquinas que se esgueiram num universo transverso e que não chegarão.
Boa noite correntes que transformam o mar em escuro da areia do rio e verde e azul das turmalinas que sereias trazem de longe, do fundo do mar, onde tudo pode ser e estar.
Boa noite avenidas, ruas, ruelas, vilas, cidades, povoados, becos, continentes intermitentes, todos entregues ao escuro de cheiros, odores, dores, luzes, faróis e atóis a dormirem enfim.

segunda-feira, 2 de maio de 2022

Tim e Os Cariocas: as vozes perfeitas

Por Edmilson Siqueira 

Sobre Tim Maia é meio chover no molhado falar de suas qualidades vocais e de compositor. Artista único na nos história musical, se perdeu em drogas e bebidas, mas enquanto viveu produtivo, fez coisas sensacionais. Rebelde das causas erradas, podia ter feito carreira inigualável, mas nem sempre os artistas são do jeito que a gente gostaria que fossem para que pudéssemos desfrutar deles o melhor que poderiam produzir. São seres humanos e têm falhas como todos. C'est la vie. 


Mas Tim Maia teve tanta qualidade que seus erros desaparecem quando ouvimos seus discos. Um deles é surpreendente: Tim Maia e Os Cariocas - Amigo do Rei, produzido por ele mesmo para o selo Vitória Régia, que também era dele. 

O CD tem um encarte com todas as letras (são dez músicas), e a devida ficha técnica de cada faixa. "Ter Você É Ter Razão" (Dominguinhos e Climério) abre, de modo até surpreendente, o disco. Pois trata-se de um misto de guarânia e xote, ritmos estranhos tanto a Tim quanto aos Cariocas. Mas eles se esbaldam com a alegre música e a interpretam muito bem. 

A segunda faixa já é uma música do próprio Tim - "Essa Tal Felicidade" - intimista, onde Os Cariocas fazem um back vocal muito bom.  


Já na terceira, o conjunto carioca está em casa: "Ela é Carioca" de Jobim e Vinicius. O vozeirão de Tim que, a princípio não se encaixaria na delicadeza da bossa nova, entra na última estrofe, cantando dois versos apenas e depois volta solando desde o princípio, provando que não há incompatibilidade alguma entre as delicadas composições de Jobim e o estilo de Tim. Basta ter respeito pela música, o que fica evidente na faixa. 


"Lindeza" de Caetano Veloso é outra composição delicada que ambos, Os Cariocas e Tim interpretam com o máximo respeito e o resultado só poder ser agradável ao extremo.  


"Amigo do Rei", de Lenine e Bráulio Tavares é um gostoso samba do qual todo mundo se incumbe de manter o clima pra cima. 


O megassucesso de Tim Maia, "Não Quero Dinheiro, Só quero Amar" é a faixa seguinte, que começa do mesmo modo que a gravação original. A diferença começa na segunda parte, com Os Cariocas estreando no pop-rock com muita galhardia. 


Depois do pop-rock, o grupo volta aos seus domínios com o "Telefone", um clássico da bossa nova, de Roberto Menescal e Ronaldo Bôscoli. Tim Maia aproveita para fazer uma brincadeira no final com a situação do rapaz que tenta ligar para a moça. 


Outro sucesso de Jobim vem na sequência - "Samba do Avião" - e o próprio encantamento que o autor sente na primeira frase ao avistar seu querido Rio, é transportada para a voz de Tim e os Cariocas, não deixando que a pérola do maestro soberano, quase um hino à sua cidade, se perca.  

"Azul da Cor do Mar" uma dessas melodias inesquecíveis de Tim Maia é a penúltima do disco. Na biografia de Tim - Vale Tudo, escrita por Nelson Motta - ficamos sabendo que essa música foi feita em cerca de duas horas. Tim estava na casa de um amigo, perto da praia, quando os amigos saíram pra dar um mergulho. Convidaram Tim, mas ele se recusou, talvez envergonhado do seu corpo, já muitos quilos acima. Ficou sozinho e quando voltou ele cantou a música para os amigos que não acreditaram que ele tinha feito aquela obra prima ali, em tão pouco tempo. Mas tinha.  


O disco se encerra com "Valsa de Uma Cidade" de Ismael Neto e Antonio Maria. É um hino em forma de valsa para a cidade que todos amavam e, ouvindo um disco como esse, apresentado por cariocas da gema, fica difícil não amar de novo.  


O CD está à venda nos bons sites do ramo a preços bem diferenciados, e pode ser ouvindo na íntegra no YouTube: https://www.youtube.com/watch?v=WH40QePfPV0 

sábado, 30 de abril de 2022

Mestre Marsalis

Por Edmilson Siqueira 

Wynton Marsalis há muito deixou de ser apenas um excelente instrumentista de jazz e de clássico dos EUA. Ele já é uma entidade que, do alto dos seus mais de cem discos gravados, esbanja talento, inteligência e preocupação em formar novas gerações de jazzistas. Tenho alguns discos dele e já assisti várias vezes, ao vivo, pela página no YouTube, a seus concertos de jazz no Lincoln Center de Nova York, onde é diretor do Jazz at Lincoln Center, organização fundada em 1987 e inaugurada no Time Warner Center em outubro de 2004. Além de diretor, Marsalis é o líder da Orquestra de Jazz do Lincoln Center.   


Um dos CDs dele que tenho é o duplo The Wynton Marsalis Quartet Live at Blues Alley. Gravado nos dias 19 e 20 de dezembro de 1986, foi lançado dois anos depois. Foi seu décimo-primeiro disco e, sobre ele, o Marsalis escreveu em seu blog: “Nos anos 80, eu adorava tocar Blues Alley em Washington DC. Sempre me lembrei de qualquer clube que teve a coragem de me contratar quando comecei. Blues Alley nos deu um de nossos primeiros shows em 82. Todo mês de dezembro, tocávamos e o clube ficava lotado com uma grande diversidade de pessoas de todas as gerações. Eu estava tão feliz por estar tocando com Marcus Roberts e Bob Hurst e Tain Watts, estávamos tentando todos os tipos de coisas diferentes e o clube foi tão solidário quanto o público. Foi um momento lindo musicalmente e socialmente.” 

E essa felicidade de tocar num clube muito especial para ele e seu grupo está traduzida em todas as 16 faixas dos dois CDs. Nelas, Marsalis passeia por vários clássicos do jazz, destilando improvisos que remetem a todas as referências possíveis dos gênios do trompete, de Louis Armstrong a Chet Baker. Marsalis é, sem dúvida, um dos gênios do jazz, só que seu talento não cabe apenas nesse ritmo. Já ganhou até prêmio Grammy pelo melhor disco clássico no mesmo dia em que ganhou pelo melhor disco de jazz. 

 

Há quem o critique pelo excesso de técnica, o que poderia deixar um pouco “fria” as interpretações que exigem um pouco mais de feeling. Ledo engano: sua refinada técnica adquirida em estudos que começaram muito cedo, permite que ele entre e saia com a mesma competência em todos os caminhos que o improviso jazzístico pode levar.  

 

Esse CD ao vivo é uma prova cabal dessa genialidade. Pode-se pensar que se trata de Coltrane ou Bird quando o be-bop impera. Ou de Chet Baker quando o som melodioso envereda por entre as nuances de uma balada. É apenas Wynton Marsalis, elevado à categoria de mestre há muitos anos e que continua preocupado com a história da música que seus ascendentes criaram nos EUA. Prova disso é série Jazz, onde ele aparece em vários momentos comentando e louvando a história e a música que alguns de seus ídolos criaram e que hoje ele tão bem representa. 

 

O CD ao vivo gravado no Blues Alley passeia por clássicos como Cherokee, Just Friends, Autum Leaves ou Do You Know What It Means To Miss New Orleans. E tem todo um clima que só pode ser fornecido por uma casa como essa, que existe desde 1965 e pela qual já passaram muitos dos gigantes do jazz, como Dizzy Gillespie, Sarah Vaughan, Nancy Wilson, Grover Washington Jr., Ramsey Lewis, Charlie Byrd, Maynard Ferguson, Eva Cassidy etc... 


O disco pode ser ouvido na íntegra no YouTube neste endereço: https://youtu.be/A-h1l5of82g?list=OLAK5uy_mK5ErGLGbTYemMxEJsNEYnROP41dfK2_I  

E também pode ser encontrado em alguns bons sites do ramo. Preste atenção aos preços, pois há diferenças exorbitantes entre eles.  

Cavaleiro solitário

 Por Ronaldo Faria O bar está fechado. Parece há tempo. Mas Hermínio não se dá por vencido. Enquanto houver uma sede por beber, beber-se-á. ...