Por Ronaldo Faria
Disco da Nação Zumbi com Chico Science a tocar. Pescoço doendo depois de uma cabeçada na piscina. Espero que não tenha afundado uma vértebra ou detonado um disco. Músculo da perna a vibrar. Cerveja Xingu com a Tia Surica no copo. Corpo relaxado depois da sauna. Um sábado até agora tranquilo...
“Cadê Rogê?”
Olho para longe e vejo os canais do Recife. Redescubro a mistura do Capibaribe e
Beberibe num só. Tudo como um mangue solitário, solidário de dar dó. Afinal, a
miséria aqui, como lá, é o que não falta. Como uma boca e a afta: uma à espera da
outra. Indivisíveis, invisíveis aos olhos e risíveis à natureza amarga da vida.
Lá estava ele: vaqueiro de quadrúpedes e insone senhor de cavalgadas e congadas a vestir-se de couros dourados curtidos do suor desbragado. Homem já quase velho, barbas quase brancas, mãos quase cortadas do chicote que vai e vem sobre o lombo do cavalo e ilimitados sonhos de chegada. Entre um gole e outro na cabaça curtida da vida, suor escorre pelo rosto e a poeira se impregna pelo corpo, lavado numa ou noutra poça que ainda sobra no sertão. E lá está ele: parado diante do crucifixo cravado na casa de farinha, perto de onde tantos anjinhos já viajaram a descobrir outro caminho. A rezar e chorar. Ao largo, ensurdecedor silêncio surge como maracatu atônito.
Entre ambos, a ambiguidade do sexo, a
desigualdade da idade, a improvável saudade. Incerteza quase certa que tem o
asceta. Insensata palavra que divide mundos e fundos, infinitos e surdos. O
mundo real e o fundo do poço cavado a trazer água e lama. No meio, o devaneio
de embriagar-se de arte e sentimento, alento ao vento parado, desafio de andar
sobre o fio da navalha, sob aquilo que valha. Entre os dois, a dor dilacerada e desbragada que só os trôpegos
na madrugada sabem a razão de ser. Como embriaguez sem razão. Quando os dois se
encontrarão? Quando farão de mundos tão díspares a diáspora única e espiral?
Far-se-ão homem e mulher? Terão a cama como mundo único e uniforme, disforme e
lúdico, algoz e súbito? O que faz as pessoas cruzarem caminhos e ninhos? Como
juntar, numa única história, dois mundos tão distantes e largados, quase
afogados em si mesmos? Lá longe, um ensurdecedor lamento bovino surge como maracatu
lacônico.
II
- Senhor, o senhor quer um pano para se limpar?
A mulher olha para o homem pingando gotas vermelhas de sangue bovino sob a enxurrada da noite, quase madrugada, e vê nele o príncipe das lendas sem princípio, à beira de um precipício. Que une sangues exangues e retintos na união tresloucada sobre paralelepípedos que são púlpitos do amor. No céu, uma grande chuva desagua temporais e aguaceiros. Como milagre, a dor se esvai. Agora, um ou outro que passa ao largo, sem nada entender da cena de morte, corta o derradeiro pedaço da novilha que, ainda quente do medo da morte, descansa sobre a ladeira do desterro. Na casa, o vaqueiro conclui sua viagem.
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