segunda-feira, 14 de fevereiro de 2022

Aquele que foi e depois acabou fondo...

Por Ronaldo Faria

Escrevo sobre este CD que você não encontrará em lugar nenhum onde ouvir ou comprar para relembrar um passado em que Campinas tinha vida cultural noturna. Na verdade, quanto ao disco, nem o astro dele tem um original. Ele ganhou uma cópia de mim. É o É a Lama Mess!, de Mário Lúcio & Los Lúcios – Pablo e Escobar, sua big banda principal. No endereço https://www.youtube.com/channel/UCiQGfpLJlRglM5ifm_gckHg você verá um pouco desse autodenominado “maior e melhor cantor pop-pornô-brega do universo”. Mas, se procurar pelo nome na internet terá acesso a outro artista, um homônimo cantor, compositor, escritor e pensador de Cabo Verde, na África. Mas o Rebelde Apaixonado tratado aqui ainda é um punhado de cacos na internet que você terá de juntar para ter noção exata daquilo que ele foi.

Mas, então, por que falar de um artista de um único CD que nem o próprio tem? Talvez porque ele faça parte do meu acervo particular e, mesmo perdido entre dezenas de milhares de discos, tenha um espaço no coração e no tempo. Senão, porque este blog seja dedicado à música e até aquilo que não pode ser registrado como música maior seja maior do que a razão de sê-lo. 

É a Lama Mess! é, como eu disse numa reportagem maior para o site Cantares e Esquinas (https://ronaldofaria57.blogspot.com/), um verdadeiro estupro sonoro, entre composições próprias de Los Lúcios e amigos e um hit da época. Todas inclusas no melhor brega musical que Campinas já viveu na década de 1980. Mas, como já escrevi, quem, em sã consciência da maior embriaguez ou do cigarro do capeta, não foi ao delírio a ouvir, por exemplo, Feiticeira, sucesso de Carlos Alexandre, com direitos comprados por trezentos reais para ser reproduzida em mil CDs e cantada de forma tão desafinada nos mesmos? Quem não sonhou em vestir terno de gosto duvidoso e malha cacharréu e subir no palco para pagar um mico que virou sucesso na terrinha?

Mário Lúcio é um fenômeno do acaso musical, que interrompeu há vários anos a carreira para a dor de suas fãs, mesmo que a maioria delas já esteja às portas da menopausa ou deixado essa há tempos. O nome no RG de Mário Lúcio é Marcelo José do Canto. Ele era um então estudante de Jornalismo e garçom no bairro boêmio de Campinas (Cambuí) no tempo em que lá existia música ao vivo para todos os bares e gostos. Foi num desses bares, o Ilustrada, na despedida da vida de garçom para assumir a vaga de repórter da editoria de Esportes no extinto e centenário Diário do Povo, que surgiu o mito das máriolucetes ou lucinetes.

“O show do Ilustrada eu acho que foi no dia 18 de dezembro de 87. Eu não lembro direito. Na época eu morava com Pablo e Escobar, também conhecidos como Márcio Denni Pontes, um baterista conceituado nacionalmente, e Ricardo Botter Maio, um tecladista também conceituado, até internacionalmente. Eu morava numa república com eles. E pensando essas baboseiras todas chego em casa e eles estavam ensaiando porque iam fazer um show com um grupo que o Ricardo tinha na época. Daí eu entrei e falei: ‘Gente, eu vou fazer um show de despedida no Ilustrada. Vocês topam fazer comigo?’ Mas eles disseram: ‘Pô, mas você nem canta’. Daí eu disse para eles ficarem frios que eu ia armar e inventar tudo direitinho. Só queria saber se eles estavam comigo. Eles aceitaram e daí matutei, matutei, matutei e decidi fazer um show brega. Não era ainda Mário Lúcio, não sabia nome e nem nada. Me remeteu também essa criação à minha irmã mais velha, Maria Vitória, que escutava coisas bregas como Ângelo Máximo e Rádio Tupi. Daí decidi: vou cantar Ângelo Máximo, Carlos Alexandre, Evaldo Braga e Wanderlei Cardoso.”

“De repente, começou a pintar tudo na cabeça e iria chamar o meu personagem de Adriano Roberto, que é o nome do Adriano Rosa, fotógrafo e amigo. Mas aí ele falou: ‘Vai por o meu nome como cantor brega?’ Daí teve a Vera Longuini, outra amiga, que estava com uma caderneta de chamada da faculdade que eu peguei e comecei a olhar. Olhei para antes do Marcelo, que era o meu nome, e vi que tinha alguém que se chamava Lúcio, mas não era da minha sala. E depois vi Mário. E ficou Mário Lúcio & Los Lúcios. Depois expliquei tudo para o Denni e o Ricardo. E eles gostaram da ideia. Arranjamos 20 músicas e já tinha tudo – repertório e nome. Só faltava eu aprender a cantar as músicas. Então fiz uma pastinha, copiei as letras e formatei o show.” 

“Depois do show, deu um prazo de 15 dias e começaram os convites de vários lugares para eu me apresentar. E olha que todos os bares do circuito campineiro tinham música ao vivo. Então eu decidi cobrar um cachê um pouquinho alto para a realidade da noite campineira, porque eu sabia quanto era cobrado na noite e os músicos ganhavam. E o mais incrível: o pessoal começou a pagar. A gente estranhava porque o Denni e o Ricardo faziam shows na noite. O Denni era do Soma, um dos melhores grupos que eu já ouvi em Campinas, junto com A Bandida. O Ricardo fazia shows. A família dele é de músicos, com gente até na Suíça e nos Estados Unidos. Mas aí começou a rolar a grana e cada vez mais nos apresentávamos. Nisso entra 1988 e a moçada que viu o show marioluciano aqui já indicava para festa brega na sua cidade. De repente, a gente estava fazendo show fora, dentro das possibilidades, porque eu já trabalhava no Diário, até sábado e domingo. A gente pegava essa Rodovia Anhanguera e fazia show para todo o lado. E eu na correria de conciliar a minha vida como jornalista esportivo e o personagem que começou a criar corpo.”

Se pararmos para pensar, porém, no inusitado e naquilo que é divertido, no que rompe as barreiras do normal e libera sonhos e grilhões, Mário Lúcio foi um torpedo a destruir a métrica e a rítmica. Num momento em que o Brasil mal acabara de sair da ditadura militar, onde os jovens ainda se embrenhavam numa estrada meio sem volta, talvez ele tenha sido o reflexo onde o anormal de monstros e monstrinhas, como ele chama os fãs, animais que viviam presos em cada um e soltos na noite, se libertavam junto ao cantor performático e carismático. “Em 2003 foi o último show que nós fizemos. Em 2004 íamos fazer um na Estação Cultura, mas no dia tive um problema de falecimento na família e não fiz. E nesse dia foi muita gente ver e até levaram faixa e tudo. Mas não teve.” 

Passado tanto tempo, restou, para quem se aventurou a comprar É a Lama Mess!, gravado e mixado em 1996, ter em mãos um exemplar da MPB esculachada, divertida e despretensiosa. Ao todo são 13 faixas. Cada uma com a certeza de ouvir algo entre o riso e a tosquice da boa. Tem desde Feiticeira até composições dos Los Lúcios. Do Mário mesmo, nada, além da voz desafinada e engraçada. Há desde o bolero El Tesón Del Cone Sul (um épico) a Douglas and Juraci, passando por Blackout no Rodízio, Discarada, Ébria Maria e Pastor Alemão. Junte Lover Man, O Penúltimo Rebelde, Hole of Lock (O Buraco na Fechadura), Foguete Indomável, Perfume Raro e Agora, o Último Rebelde. Ponha tudo num liquidificador sensorial e terá um misto de brega e besteirol. A "arte" de Mário Lúcio se encaixava entre Falcão (o Mário Lúcio que deu certo), Premeditando o Breque e Língua de Trapo. Mas, como diria o Chacrinha, tudo foi um programa que acaba quando termina. Quem viu, viu. Quem não viu, nunca mais verá. Pois, como cantava Cazuza, o tempo não para. Só que, para Mário Lúcio e tristeza dos fãs, ele parou...

sábado, 12 de fevereiro de 2022

Alceu Valença e suas oito pérolas

Por Ronaldo Faria

O disco é curto. São apenas 27 minutos e 49 segundos. E tem somente oito músicas. Entretanto, ele marcou a carreira de Alceu Valença, que já tinha sete discos em estúdio gravados anteriormente. Bateu a marca de 1 milhão de cópias na época e consagrou em definitivo esse pernambucano no cenário da MPB. Este ano Cavalo de Pau completa quatro décadas do seu lançamento e continua épico. Afinal, as canções nele contidas são até hoje hits valencianos. E quem, em 1982, que estivesse na faixa dos seus 20 e poucos anos, não curtiu paixões, noitadas, bebedeiras, amores ou loucuras do bem com essa raridade sonora... Afinal, esse era um tempo em que o Brasil tentava respirar liberdades, nos estertores da ditadura militar. A sensação de descobrir e redescobrir coisas novas explodia na juventude e na sociedade. Alceu foi um desses marcos de brasilidade renovada vinda do Nordeste, com seu maracatu e forró, misto de reggae e xaxado.  

O disco é autoral. Das oito composições, quatro Alceu conta com parceiros. Morena Tropicana e Pelas Ruas que Andei divide com Vicente Barreto. Já Maracatu tem parceria com Ascenso Ferreira e o grande e eterno Dominguinhos assina junto Lava Mágoas. Rima com Rima, Cavalo de Pau, Martelo Alagoano e Como Dois Animais são de autoria própria.

Alceu Valença, que está com 75 anos, é de São Bento do Una, no agreste de Pernambuco. Aliás, Pernambuco é um caso a ser estudado a fundo na MPB. É um estado onde a música brota do chão com a força do novo, do renovado, com expressões múltiplas e coletivas que arrancam desde a sonoridade do seu interior à urbanidade de Recife. Com grupos que mostram a potencialidade em notas e versos, há a vida que vai do caos das palafitas à revolta transformadora que junta genialidade e teatralidade.

Tentarei, no futuro, mostrar um pouco desse tanto que é Pernambuco, unidade da Federação que mais lança coisas boas à MPB. Tudo com traço local e universal. A música que vem de lá não pode ser rotulada como um gênero apenas. Quinteto Violado, Banda de Pau e Corda, Banda de Pífanos de Caruaru, Nação Zumbi, Cordel do Fogo Encantado, Cascabulho, Mestre Ambrósio, Mombojó, Mundo Livre S/A, Ave Sangria, SpokFrevo Orquestra, Quinteto Armorial e Comadre Fulozinha são apenas alguns exemplos de grupos.

Já compositores, músicos, cantores e cantoras formam um número sem ter fim. Além de Alceu Valença, há Accioly Neto, Bezerra da Silva, Anastácia, Dominguinhos, Jorge de Altinho, Chiquinha Gonzaga, Lenine, Lia de Itamaracá, Luiz Gonzaga, Lula Côrtes, Lula Queiroga, Luiz Vieira, Antônio Nóbrega, Nando Cordel, Otto, Paulo Diniz, Rildo Hora, Selma do Coco, Siba e Velho Faceta, entre tantos mais.

Mas, voltemos a esse grande Alceu Valença. Ex-advogado e jornalista (se formou no primeiro e foi correspondente do extinto JB em Recife), em 1971 foi cair no Rio de Janeiro para se aventurar na vida musical. Com o seu parceiro de vida Geraldo Azevedo lança em 1972 seu primeiro disco – Quadrafônico. Depois, mais 29 discos de estúdio, onze ao vivo e 12 coletâneas surgiriam. O último, do ano passado, é Senhora Estrada.

Mas Cavalo de Pau é, sem dúvida, um marco definitivo na sua obra. Com Morena Tropicana galgou todas as listas de audição nas rádios da época. Tornou-se hit nacional, mostrou que a sua música tinha se consolidado como irreversível às emoções e ouvidos de todos nós. Era impossível frequentar um bar de música ao vivo sem escutar algo de Alceu (e creiam que em Campinas já existiu um tempo onde a música nos bares era livre para deleite de todos). Era impossível frequentar uma festa em república sem rolar o disco na vitrola. Todas as oito faixas podiam afundar no vinil se alguém não se lembrasse de mudar. E para quê mudar? Para a noite e madrugada serem boas era só deixar Alceu rolar.

Esse é um disco histórico, que merece estar nos alfarrábios sonoros de todos que gostam de MPB. Sigo Alceu desde então. Para mim, a sua obra transcende o tempo, desde os idos de 1982, ano que desembarquei aqui em definitivo na profissão e fui viver. Além de Cavalo de Pau, tenho diversos discos da sua lavra que foram pérolas desse período de quatro décadas. Vou falar rapidamente de outro que um dia discorrerei com maior atenção e respeito musical: Valencianas, de 2014. Gravado junto com a Orquestra Ouro Preto, é um CD/DVD imprescindível também vital para ouvidos e corações. Mas isso fica para depois. Curtam agora os 40 anos de Cavalo de Pau. E voltemos no tempo na esperança que, com esse voltar, a tal de esperança chegue de volta também.

Cavalo de Pau pode ser ouvido na íntegra no Amazon Music, no Spotify, no YouTube Music e no Deezer.

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2022

Piazzolla/Mulligan: uma reunião de cúpula

Por Edmilson Siqueira

Um disco gravado em 1974 - lá se vai quase meio século - ainda hoje faz a cabeça de muita gente. É o registro do encontro entre o gênio do "nuevo tango" argentino, Astor Piazzolla (1921-1992), e o saxofonista de jazz norte-americano Gerry Mulligan (1927-1996). O disco recebeu o nome de Summit em inglês e Reunión de Cumbre, em espanhol. Ou também Tango Nuevo, como foi chamado em alguns países. Pra nós, Reunião de Cúpula fica de bom tamanho, afinal, são dois expoentes, cada qual com seu particular talento, juntando suas qualidades e nos brindando com quase 40 minutos (os LPs tinham uma limitação de tempo bem inferior aos CDs) de uma música que nos leva por distantes fronteiras de um mundo dividido, mas que poderia se juntar e produzir coisas belas. Acho que essa é uma das mensagens possíveis do disco: a Argentina que estava, até o ano anterior ao da gravação, sob uma feroz ditadura militar (como quase toda América Latina e no Brasil prosseguiria até 1985), e um dos seus mais inquietos artistas, vivendo na Europa, se junta a um norte-americano e, do encontro, sai um disco que, quase 50 anos depois, é exemplo de como a boa música transcende ideologias e agrega muitos valores ao ser humano. 

O disco, eu diria que é mais de Piazzolla que de Mulligan e isso talvez se deva à forte personalidade do argentino e também ao fato de que ele compunha sua obra, enquanto Mulligan, que também compôs, mas não muito, preferia ser um instrumentista. E era dos grandes. 

Assim, das oito faixas do disco, apenas uma é de Mulligan. Nas outras sete, Piazzolla desfila seu repertório "tanguista", porém cheio de referências universais, numa mistura que, feita com capricho e talento, o colocou no centro do cenário da música instrumental da segunda metade do século 20.  

O disco foi gravado em três dias de setembro e quatro dias de outubro em Milão, Itália, onde Piazzolla vivia à época. No estúdio, uma banda moderna, eletrificada, com piano Fender Rhodes, órgão Hammond, duas guitarras elétricas, bateria e percussão, acrescida de um trio com violino, viola e cello acústicos, formou a base para que Piazzolla e Mulligan desfilassem melodias, arranjos e improvisos na viagem musical que se propuseram. 

Piazzolla se encarregou dos arranjos todos, mas percebe-se que sua preocupação com o sax tenor de Mulligan é grande: em momento algum o jazzista fica sem parte importante do solo ou dos improvisos. A camaradagem entre os dois fica evidente e só melhora tudo. 

O clima sombrio da primeira faixa - Twenty Years Ago - dá o mote para o disco, embora haja nele momentos de complexa estrutura musical. A divisão dos trabalhos - o bandoneon e o sax às vezes solando, às vezes casando-se perfeitamente, aponta para uma sequência de prazeres auditivos. 

Close Your Eyes and Listen, a segunda faixa, assume, logo de cara, ares de uma balada romântica ao estilo Chet Baker, com o sax comandando a sessão no início e, depois, dividindo com o bandoneon a tarefa de completar a música, improvisar e torná-la, inclusive, mais alegre. 

A próxima faixa - Years of Solitude - é a mais famosa de Piazzolla no disco. Feita para o espetáculo musical Libertango (também gravado em disco), é a faixa de maior impacto, com marcante percussão que delineia a bela melodia, onde se juntam, no solo, sax e bandoneon, deixando sua massa sonora mais forte.  

Deus Xangô foi feita especialmente para o encontro entre os dois. Nela, Piazzolla expõe um clima misterioso, numa forte presença rítmica que cresce e dá a base para todo o resto, tanto para o bandoneon quanto para o sax, que dividem os solos.  

Twenty Years After não se trata de uma continuação da primeira faixa. É outro clima, muito mais para tango que para jazz, uma música ligeira, que vai para todos os lados possíveis, como a buscar um canto onde possa se instalar, o que parece acontecer na parte final, quando o ritmo alucinante é contido por alguns momentos, para depois voltar àquela urgência. 

A única faixa composta por Mulligan parece ser uma homenagem a Piazzolla: Aires de Buenos Aires. Obviamente, o espírito jazzista se sobrepõe, mas é o bandoneon que comanda toda primeira parte. A segunda parte, mais lenta, traz linda melodia.  

Reminiscense, a sétima e mais longa faixa do disco (6m30s), tem a estrutura clássica de Piazzolla: um começo vibrante, com bateria marcante, até uma espécie de ápice, quando a melodia se desmancha e alguns elementos psicodélicos antecipam a segunda parte, composta por longas frase do bandoneon e do sax para, claro, tudo voltar ao princípio, num ritmo quase frenético a caminho do fim. 

A música que dá título ao disco, encerra os trabalhos: Summit, com pouco mais de três minutos e meio, é uma síntese mesmo do encontro: vibrante do começo ao fim, tem elementos latinos e jazzísticos. Piazzola e Mulligan se despedem em alto estilo, proporcionando um grand finale a um disco excepcional, fruto do talento e da criatividade de dois grandes artistas.  

Esse disco está disponível para ouvir na íntegra no Youtube: https://www.youtube.com/watch?v=OLiJwjc6F1A 

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2022

Hendrix, o maior das cordas e do tempo

Por Ronaldo Faria

Hoje (terça-feira, dia 8), dia que voltei para casa pensando no quanto a vida é efêmera e que cada segundo nada mais é do que passado (o presente é abstrato e o futuro, incerto, não existe, já que sempre será um segundo presente que vira passado no próximo segundo), resolvi escrever sobre o disco Blues, de Jimi Hendrix. Para falar dessa obra, roubo um pedaço da Wikipédia: Blues, de 1994, contém onze canções anteriormente gravadas entre 1966 e 1970. São sete composições próprias junto com regravações de famosas canções de blues como Born Under a Bad Sign e Mannish Boy. E a ouvir a guitarra Fender desse gênio do rock, morto em 1970 prematuramente aos 27 anos, de overdose, me atenho àquilo que pode ser chamado de fama e de finitude. Ele teve a fama e “optou” pela finitude que o levou à eternidade como lenda do rock. 

Tenho toda a discografia oficial de Hendrix, em estúdio ou ao vivo, baixada e lançada entre 1964 e 2008, além de outros discos póstumos e de homenagem, como Blues. Assim como revejo muitas vezes a sua apresentação em Woodstock (também tenho o que foi gravado e reproduzido naquele que foi o ícone dos festivais, em três discos posteriores), além do DVD alusivo. Para mim, esse guitarrista representa muito do rock e da loucura dos Anos 60. Da liberdade que se lançou naquela década para o planeta: o romper de parâmetros e padrões, o movimento hippie, a luta contra a guerra do Vietnã, a ênfase na luta de libertação e igualdades das mulheres, a juventude em revolta nos continentes, a contracultura, o amor livre, as descobertas e fugas pelas drogas, o romper com a caretice vigente, o combate ao racismo explícito nos Estados Unidos, o rock se impondo, o embate declarado a tudo que era antiquado e opressor.

Nasci em 1957 e, portanto, dos Anos 60 guardo apenas um pouco da minha infância e pré-adolescência. Infelizmente, pouco. Na verdade, trago desse período mais as minhas raízes com o Nordeste, sua música e sua gente do que a febre que marcou a década. E, claro, trago um pouco de Tropicália, das canções que cantava. Nessas horas queria ter nascido no início dos Anos 50 para ter vivido a loucura transformadora que a década seguinte impôs ao planeta. Não quis o destino, porém, que assim fosse. E contra o destino e o encontro de espermas e óvulos não se tem como brigar.

Jimi Hendrix com certeza é um ícone dessa realidade nova, assim como Janis Joplin, Creedence Clearwater Revival, Joe Cocker, The Who, Jefferson Airplane, Santana, Joan Baez e tantos outros que estiveram em Woodstock em 1969. Após a sua morte não faltaram exclamações declaradas e textos sobre a sua genialidade como guitarrista, escritos e repetidos nos Estados Unidos, Inglaterra e no mundo. Votações e especialistas, publicações como a Rolling Stones, o colocaram como maior guitarrista que o planeta já viu. Da sua guitarra saíam sons estridentes e incríveis. Da sua voz, interpretações fantásticas. Em Blues, a certeza de que ele era realmente uma voz plural e envolvente, mágica e comovente, total, enlouquecida e sóbria em cada nota, em cada acorde, na sua plenitude. 

É difícil descrever cada música implícita no álbum pelo simples fato de escrever sob o seu som. E o som de Hendrix não é de se explicar e dizer algo técnico ou definitivo. É de se ouvir e sentir, se envolver. Algumas delas nem parecem blues. São verdadeiras orgias de rock declarado. Mas o rock não tem raízes no blues? Logo, tudo no liquidificador das emoções vira uma coisa só, embalada por Jimi Hendrix, bandas e o que vier. O que eu sei é que é um disco a se ouvir, assim como toda a discografia desse moço de Seattle encontrado morto em Londres. Assim como a execução do hino nacional dos Estados Unidos em Woodstock, em que a sua guitarra virou uma metralhadora, não pode ser desprezada pelos ouvidos de quem ama a música (https://www.facebook.com/watch/?v=1848692391934700). Sob a ação de LSD ou não, ali Hendrix mostrou que "loucura" e “sanidade emocional” convivem numa coisa só. E essa foi a essência de sua passagem rápida pela Terra: mostrar que ambos são objetos vivos dessa coisa incrível chamada música. Essa expressão que une musicoólatras por todo o planeta. A certeza de que amor e paixão haverão de prosperar na sua finitude planetária e sobreviver no inconsciente coletivo, mesmo que esse coletivo seja um grupo mirrado de ensandecidos, notívagos e sonhadores.  Sejamos, pois...

Esse álbum você encontra no Deezer e no Amazon Music.

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2022

Renato Braz, um senhor cantor da melhor MPB

Por Edmilson Siqueira

Renato Braz é um cantor. Toca bateria, percussão e violão, mas não compõe. Seu último disco, Canto Guerreiro, começa com uma faixa chamada Levantados do Chão, de Milton Nascimento e Chico Buarque. Da gravação participaram, além de Renato, os autores Chico e Milton. No disco, encontramos ainda as participações de Gilberto Gil, Dori Caymmi, Cristóvão Bastos, Alice Passos, Cezinha Oliveira, Eduardo Gudin, Guinga, Karine Telles, Miúcha, Proveta, Nelson Ayres, o saxofonista norte-americano Paul Winter, o português Roberto Leão e o baixista Rodolfo Stroeter. O que só prova que Renato Braz não é apenas mais um cantor afinado brasileiro e, sim, um dos maiores intérpretes da MBP que o Brasil tem atualmente. 

Eu tenho dois CDs do moço, que nasceu em São Paulo, há 53 anos. Sua biografia nas redes é singela. Diz que cresceu ouvindo música e aos quinze anos começou a se familiarizar com a percussão e logo assumiu o posto de baterista tocando nas noites. Como vocalista e baterista, Renato Braz cresceu cantando em festivais. O artista teve a chance de se apresentar ao lado de grandes nomes da música brasileira como Luiz Melodia, Antônio Nóbrega e Ney Matogrosso, ganhando reconhecimento e público. O resto é uma fieira de grandes discos e prêmios de melhor intérprete. E ele merece. 

Os dois CDs que tenho dele - o primeiro, chamado apenas Renato Braz, de 1997 e o terceiro, Quixote, de 2002 - foram suficientes para que eu percebesse que estava diante de um cantor diferenciado. Sua voz não se encaixa em padrões comuns, pois carrega um sentimento que se sobrepõe ao canto, afinadíssimo por sinal, e traz em seu bojo aquela calmaria que enleva e aquela força que permanece nos ouvidos muito tempo depois de terminada a audição. 

No primeiro disco, a surpresa - muito agradável - acontece logo na primeira faixa, Porto, de Dori Caymmi. Música sem letra, apenas com o vocal de Renato acompanhado de ninguém menos que Monica Salmaso, uma cantora que transforma em diamantes os minérios que garimpa e grava da nossa MPB.  

As surpresas - para um primeiro disco - continuam nas faixas seguintes, pois logo a seguir aparece um standard da música norte-americana, Smile (Charlie Chaplin, Geoffrey Parsons e John Turner), que virou Sorri, na famosa versão de João de Barro. A intepretação de Renato para a letra brasileira está entre as definitivas dessa música, acompanhado pelo seu violão, sempre muito bem tocado, mais o acordeom de Toninho Ferragutti e o contrabaixo de Sizão Machado.   

As faixas seguintes nos obrigam a parar de fazer o que estivermos fazendo para nos entregarmos ao prazer de ouvir um grande cantor. É assim com Anabela (Paulo Cesar Pinheiro e Mário Gil), como samba Meu Drama, também conhecida como Senhora Tentação (Silas de Oliveira e Joaquim Harindo) e com a perfeita Onde Está Você (de Oscar Castro Neves e Luvercy Fiorini), eternizada na voz de Alaíde Costa.  

Passarinheiro (Jean Garfunkel e Pratinha), Cantiga do Sapo (Jackson do Pandeiro e Pratinha), Pagão (Chico César), Bambayuque (Zeca Baleiro), Assum Preto (Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira), Retirantes (Dorival Caymmi), 7x7 (Guinga e Aldyr Blanc e Estrela da Terra (Dori Caymmi e Paulo César Pinheiro) completam  o disco e provam a excelência e variedade do repertório que Renato selecionou. Não há nenhuma música que não lhe traga aquele prazer de ouvir, tanto pelas interpretações quanto pelo refinado acompanhamento.  

O outro CD, Quixote, traz um Renato Braz melhor ainda. A presença constante de Dori Caymmi, tanto com suas canções como participando das gravações, mostra que Renato atrai sempre boa companhia. A faixa de abertura, de Dori e Paulo César Pinheiro é uma espécie de oração que se desenvolve por deliciosa melodia, tão prenhe de mineirices que muita gente pensa tratar-se de obra de Milton Nascimento. Ele assinaria, com certeza.  

Canteiro de Obra (Wilson Moreira e Sergio Fonseca) aproveita uma cantiga de roda para contar a realidade dos retirantes na cidade grande. O disco prossegue espalhando excelências musicais como Comunhão (Mario Gil), O Velho Francisco (Chico Buarque), Saudade Mata a Gente (João de Barro e Antonio de Almeida), Disparada (Theo de Barros e Geraldo Vandré), Tristeza do Jeca (Angelino de Oliveira) e Amiga (Edson Ribeiro e Cleonice). São músicas em que cada intepretação revela novas nuances de músicas já conhecidas que se tornam ainda mais atraentes ainda na voz de Renato.  

Uma espécie de segunda parte do CD se abre com Vida da Semana, uma autêntica moda de viola de Riachão que tem a participação vocal de Chico César. O samba-enredo de Mario Duarte e Paulo César Pinheiro - O Canto das Três Raças - que não ganhou o concurso da Portela, mas fez enorme sucesso na voz de Clara Nunes, ganha interpretação coerente de Renato Braz.  

E as ótimas interpretações prosseguem com Canção para Ninar um Neguim (Zeca Baleiro), Onde Está Você (Oscar Castro Neves e Luvercy Fiorini) que aqui ganha, quase como uma homenagem, a participação especialíssima de Alaíde Costa, num emocionante encontro, Todo Menino é um Rei, o gostoso samba de Nelson Rufino e Zé Luiz, encerrando com Não Vim para Ficar, de Wilson Dia e Paulo César Pinheiro.  

Toda a discografia desse grande cantor está disponível nas boas lojas virtuais do ramo e há muitas músicas dele disponíveis no Youtube, algumas inclusive mostrando trechos de shows ao vivo.  Tudo muito bom e que merece ser ouvido. 

terça-feira, 8 de fevereiro de 2022

Três mulheres incríveis do clã Adnet

Por Ronaldo Faria

Venho, através deste, homenagear três mulheres da família Adnet: Muiza, Maucha e Antonia. As duas primeiras, irmãs. Antonia, a sobrinha. As duas primeiras, irmãs de Mario e Chico Adnet. Antonia, filha de Mario, que foi tema do brilhante texto do último sábado escrito pelo Edmilson Siqueira. Logo, me senti na obrigação de falar das três, citadas no texto. E logo vem a pergunta: como uma família pode ser tão pródiga musicalmente? Certamente um gene fantástico caiu pelas bandas de lá. E frutificou de forma desbragada, para a alegria de nossos ouvidos e emoções sonoras. Acho que se fosse pai dessa prole e avô de Antonia (junte-se ainda Marcelo Adnet) levantaria todas as noites e dias as mãos para os céus e diria: “acertei na loteria da cultura e da arte”. E essa não há dinheiro que compre. Ou se tem ou não se tem. E os Adnet têm.

Da Muiza eu tenho uma obra-prima que homenageia um dos maiores compositores, arranjadores, músicos e maestros brasileiros - Moacir Santos (morto nos Estados Unidos em 2006). Um ícone que fez carreira reconhecida e reverenciada no Tio Sam e aqui foi quase esquecido. Como maestro, dominava “apenas”, com excelência, saxofone, o piano, a clarineta, o trompete, o banjo, o violão e a bateria. Alguém que foi mestre somente de Baden PowellPaulo MouraJoão DonatoNara LeãoRoberto MenescalSérgio Mendes, entre outros.  

Muiza conheceu o maestro graças a Mario que, junto com o saxofonista Zé Nogueira, preparava o CD Ouro Negro, para homenagear Moacir Santos (este é outro CD/DVD de que falarei um dia, por ser algo que nem o nome obra-prima define). Mas, enfim, a partir desse encontro inicial Muiza decidiu também fazer sua homenagem ao maestro. E surgiu As Canções de Moacir Santos. Ao todo são 12 composições que mostram um lado pequeno daquilo que o maestro criou. Sob direção musical e arranjos de Mario Adnet, o disco reúne, além do próprio Mario, o grande Moacir Santos, Milton Nascimento, Ivan Lins, Zé Nogueira e Ricardo Silveira, entre outros.

Há obras escritas no Tio Sam e cantadas em inglês e coisas do Brasil. Desde Nanã (uma de suas músicas mais conhecidas) às lúdicas A Santinha Lá da Serra e Ciranda, onde Muiza divide a voz com Moacir (em A Santinha, Milton se une aos dois). Mas todas as composições incluídas nessa produção merecem ser eternizadas. De 2007, o disco teve lançamento posterior à morte do maestro e perpetuou nele a sua voz e o seu talento. Com todo o carinho que lhe era peculiar, deixou uma frase marcada para a intérprete: “Se eu fosse o imperador, Muiza seria a minha cantora”.  Esse CD é, sem dúvida, algo que não pode passar despercebido pelos ouvidos de quem ama a música de excelência.

Já o CD da Maucha é o The Jobim Songbook. A conheci como cantora ainda no Rio de Janeiro, quando a via nos palcos como integrante de o Céu da Boca (tema de um texto anterior neste blog). Esse disco é de 2006. Consegui comprá-lo só via importação (ele não veio como lançamento para o Brasil). Gravado em julho de 2004 em Nova York, onde ela mora até hoje, traz 13 composições do Tom. E Maucha tem todo o direito de gravar as coisas do Antonio Carlos e fazer esta homenagem nos dez anos da morte do maestro soberano. Afinal ela fez parte da Banda Nova, que acompanhou Tom durante dez anos, entre 1984 e 1994, ou seja, até a morte daquele que marcou a MPB. 

Neste CD há a participação de Mario Adnet, do baterista Duduka da Fonseca (seu marido), Joe Lovano (sax), Romero Lubambo (guitarra acústica), Randy Brecker (flugelhorn), Claudio Roditi (flugelhorn), Jay Ashby (trombone), Nilson Matta (violão acústico) e Helio Alves (piano). Com esse elenco, vê-se o que Tom tinha de mais popular de volta; Garota de Ipanema, Águas de Março, Ela é Carioca, Insensatez, Samba do Avião, Chega de Saudade e Desafinado, entre outras. Na voz de Maucha, um leque de músicas de alguém com quem ela conviveu nos palcos e no dia-a-dia. Na contracapa do CD, um pouco daquilo que Tom pensava dela: “Maucha and i have travelled the world with the Banda Nova. She is a marvellous singer. Her voice is deep, rich and mysterious. It makes me long for the Brazilian Forest. She is a great artist (Maucha e eu viajamos pelo mundo com a Banda Nova. Ela é uma cantora maravilhosa. Sua voz é profunda, rica e misteriosa. Isso me faz ansiar pela Floresta Brasileira. Ela é uma grande artista).” E não precisa dizer mais nada.

Por fim, Antonia Adnet. Filha de Mario, ela é arranjadora, compositora, violonista e cantora. Dela eu tenho o CD Discreta, de 2010, produzido por ela e seu pai com a participação de Roberta Sá, Marcelo Adnet e João Cavalcanti. Ao todo são 12 composições. Dessas, sete são dela, sendo quatro próprias em letra e música, sem parcerias. Em várias músicas os arranjos são dela também. Ou seja, a garantia de que o clã Adnet não irá parar tão cedo. 

Na faixa que leva o nome do CD, divide a voz com Roberta Sá. Composta por ela em parceria com João Cavalcanti (ex-Casuarina e filho de Lenine), a música tem uma letra e melodia que valem nomear o disco. Mas Antonia mostra que não é só cantora no CD. Ela toca seu violão de sete cordas na faixa instrumental Vitrine, do eterno Moacir Santos. E volta ao violão em Primeiro Choro. Na verdade, todo o disco é um discorrer de novidade musical, com as incríveis Dois, Um Dia Quem Sabe e Vem e Vai. Em Pessoas Incríveis, divide a voz com o seu primo Marcelo. Afinal, como diz a letra, “fundamental é dividir um prazer”. Para Quero um Xamego, de Dominguinhos e Anastacia, a voz que a acompanha é de João Cavalcanti. E o ritmo nordestino vira um verdadeiro chamego para se ouvir. Por fim, vêm Bom Assim, Salineiras e Tema de Outono (outro instrumental com o violão de Antonia). E, para nossa tristeza auditiva, o disco acaba. Mas podia ficar rodando até gastar o laser.

Assim, há apenas uma verdade absoluta: que as Adnet se multipliquem para a eternidade. Nossa MPB só terá a agradecer.

Esses três álbuns você pode ouvir na Amazon Music, no Spotify e no Deezer.

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2022

Luiz Tatit, o intelectual da canção popular

 Por Edmilson Siqueira

Quem ouve Luiz Tatit cantar aquelas músicas singelas com letras cujas soluções nos surpreendem de tão óbvias e, ao mesmo tempo, tão criativas, e não sabe da carreira do artista, pode pensar que se trata de alguém que gosta de versejar, que sabe completar a rima difícil, uma espécie de repentista moderno com farto e preciso vocabulário. 

Pois Tatit é tudo isso e muito mais. Formado em Letras (Linguística) pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo, em 1978, e em Música (Composição), pela Escola de Comunicações e Artes (1979) da mesma universidade, obteve seu doutorado em 1986 na FFLCH da USP, com a tese Elementos Semióticos para uma Tipologia da Canção Popular Brasileira. É professor titular do Departamento de Linguística da Faculdade de Filosofia, Letras & Ciências Humanas da USP.  

É mole? A tal da MPB tem um legítimo intelectual a lhe cantar os versos e a lhe esmiuçar as entranhas semioticamente, o que, convenhamos, é motivo de orgulho para todos nós, musicoólatras que somos. 

Luiz Tati tem 70 anos e extensa bagagem que o coloca num panteão todo particular da MPB: não deve haver quem torça o nariz diante de sua produção musical. Sua música fala para todos e provoca repentina intimidade em que a ouve. 

Já seu lado intelectual, autor de inúmeros livros de semiótica, pode ser visto em ótima entrevista dada ao portal da Fapesp, a Marcio Ferrari, em 2016, onde ele fala também do início de sua carreira com o Grupo Rumo. Está nesse link: https://revistapesquisa.fapesp.br/luiz-tatit-a-forma-exata-da-cancao/

O começo com Grupo Rumo foi no início dos anos 80, fazendo o que, à época, considerou-se a vanguarda da música paulistana. Foram seis discos gravados, de 1981 a 1991. Em 2019 ainda participou de um disco - Universo - com o Rumo. 

Sua música, além de promover empatia imediata, traz, muitas vezes, uma deliciosa dose de humor, às vezes negro, às vezes meio inglês e outras, ainda, escrachado simplesmente.

Um dos melhores discos dele é Ouvidos Uni-vos, de 2005, sobre o qual vou falar um pouco mais aqui, mas toda sua discografia merece ser ouvida, pois é certo o prazer. 

Gravado pela Dabliú Discos, a obra começa com Baião do Tomás, parceria de Tatit com Chico Saraiva, uma surpreendente canção sobre o nascimento de um garoto que é orgulho da família toda (toda mesmo!) desde o berço.

Final Feliz, a segunda, apenas de Luiz Tatit, é mais introspectiva, na primeira pessoa, trata da fuga de casa, imaginária ou não, que todo e toda adolescente tenta realizar um dia. Quase um blue que termina onde começa e deixa no ar aquela enorme interrogação sobre o que faze no futuro que começa ali. E tudo isso numa linguagem simples e bonita.

A terceira faixa é um rock. Mas não um rock qualquer. É Rock de Breque, dedicada a seu amigo e parceiro Itamar Assunção (13/09/1949 - 12/06/2003), uma mistura deliciosa entre o ritmo norte-americano com o samba de breque estilizado, própria da difícil arte do “mestre Assunção, e cuja letra tem a frase que dá título ao disco”.

Depois da homenagem, Tatit mostra uma parceria com Assunção que retoma aquela linha do humor negro, onde todas suas dores são explicitadas e, de tão pungentes, acabam até por divertir quem ouve. Mas dói.

A grande cantora Ná Ozzetti tem sido uma constante na carreira de Tatit. E é ela que aparece na faixa seguinte, Minta, de Tatit e Ricardo Brein. Trata-se de uma canção de amor, acompanhada apenas pelo piano de Marcelo Jeneci, que Ná Ozzetti interpreta no tom certo, com aquele tom de amargura necessário. 

O tom irônico e divertido, constante obra de Tatit, volta em Perdido. A ajuda forçada que uma amiga quer dar ao personagem por considerá-lo necessitado, cria inusitada situação, numa longa letra que começa e termina do mesmo jeito, com a novidade de que a amiga se propõe a ficar com quem ela "curou". Hilária. 

Com Terceira Pessoa, Tati retoma uma espécie de realismo fantástico musical, misturando duas pessoas diferentes numa só, e preferindo sempre a outra ao invés daquela, embora ambas sejam a mesma. A letra é um achado, própria de quem domina a linguagem e suas entranhas.

Brincadeira, de Tom Ozzetti e Luiz Tati remete quase à bossa nova no início da letra, onde o otimismo do amor que começa parece caminhar para um final feliz, mas é confrontado com as agruras de um relacionamento que ama e odeia.

Um bom samba, Controlado, é o que vem a seguir. É a divertida (mais uma vez) confissão de um amor louco que tenta disfarçar a loucura, mas no fim não consegue, se entrega, mas diz que vai melhorar. Tudo num sambinha rasgado muito bem definido que tanto encanta quanto diverte. 

Tom de Quem Reclama descreve, numa canção singela, uma estranha relação entre o personagem e sua voz que, rebelde, fala muito mais do que seu dono pretende. Surrealista o resultado desse pequeno tratado de rebeldia de "uma voz que não controlo/e que sai da minha boca/eu só falo o necessário/ela é sempre tão barroca". 

A poluição e as enchentes do Tietê são tema da canção que leva o nome do rio. Tatit afirma, ironicamente, não entender por que um rio deixa o verde da serra (sua nascente) para vir pra capital, se sujar e causar enchentes no verão. A canção que dá suporte à reflexão é quase clássica, com acompanhamento de violinos, viola e celo. 

A Perigo, parceria com Edward Lopes, trata da desilusão amorosa que fere e faz sofrer, solucionada com uma letra confessional e muito bem resolvida.

O disco se encerra com um sucesso de Luiz Tatit e Zé Miguel Wisnik - Baião de Quatro Toques - música regravada por vários cantores e grupos, como Mônica Salmaso, Grupo Ordinarius, Grupo São Vicente a Cappela (que apresentou a música na Alemanha) e a dupla Luiz (Brasil) e Jussara (Silveira), entre outros. É uma ousada e criativa "versão" da Quinta Sinfonia de Beethoven "que decantou e ficou só a raiz", como diz a letra.  

O CD Ouvido Uni-vos se encontra à disposição no Youtube - https://www.youtube.com/watch?v=ckBiTyUL9hY&list=OLAK5uy_khffLwNP0GvfoHoE9TuQ7ocGZCiDOVfAA

Mas, como disse anteriormente, a obra de Luiz Tatit merece ser ouvida em sua plenitude. São nove CDs e três DVDs que se encontram à venda nas boas lojas virtuais do ramo.

sábado, 5 de fevereiro de 2022

Mario Adnet: um carioca de fina estirpe

Por Edmilson Siqueira

A voz dele lembra a de Tom Jobim. Mas Mario Adnet, além de amar o nosso maestro soberano, passeia tranquilo por várias influências. Nos 15 discos gravados, além de participação em outros, ele já andou por vários caminhos, todos bonitos e prazerosos.  Além de Jobim, ele se dedicou a esmiuçar Villa-Lobos, Moacir Santos, Luiz Eça, Baden Powell, entre outros. E ele mesmo, claro, já que é excelente compositor. 

Mario tem raízes musicais. É sobrinho da pianista Carmen Vitis Adnet e irmão do músico Chico Adnet e das cantoras Maúcha Adnet e Muiza Adnet. Além disso, é pai da também compositora Antonia Adnet, da musicista Joana Adnet. Já o famoso Marcelo Adnet, que tanto nos diverte com seu humor, é sobrinho de Mario. 

Aos 64 anos, Mario é dono de robusta carreira. Começou com um disco independente, junto com o parceiro Alberto Rosenblit, fez mais um disco independente e outro pela Biscoito Fino. Só 20 anos depois dessas primeiras aventuras - época em que se dedicou mais à produção - é que abraçou Villa-Lobos e partiu para outras aventuras, mostrando toda a influência que teve, com discos dedicados também a Jobim, a Vinicius e a Baden Powell. Embora considere Villa-Lobos como que um mestre a pairar sobre todos, o homem que deu a musicalidade ao brasileiro, é para Jobim que Mario Adnet dedicou mais estudos e discos. 

Tenho três discos dele e pretendo completar a coleção, já que ouvi-lo é um desses prazeres que se alongam pelo fim do dia, ganham a noite e, se deixar, varam a madrugada. Foi um dos mais tocados no CD player do nosso carro quando carros tinham  CD players. Agora, os três discos estão, com outras milhares de músicas, num pendrive. Como mando o programa escolher as músicas aleatoriamente, às vezes ele aparece para nos encantar. Mas ouço mais em casa mesmo. 

Coração Popular, gravado no ano 2000, com a música de Villa-Lobos tornada mais popular ainda, foi o primeiro disco dele que tive. Trabalho primoroso de arranjos e orquestração, com a obra do mestre tratada com todo respeito. Pelas músicas percebe-se ainda mais a grandiosidade do maestro que se refugiou nas salas de concerto por total impossibilidade de sair por aí tocando tudo que criava. Ao site Borandá, Mario Adnet falou sobre Villa-Lobos: "Posso dizer, com segurança, que ele lavou a alma de várias gerações que passaram a gostar de música por sua causa. Colocou todo o Brasil para cantar: pobres, ricos, em colégios e nos estádios de futebol. Mas, apesar de ser tão popular, de adorar a rua, Pixinguinha, Cartola, Donga, o compositor, naquela época, só teve como caminho as salas de concerto.”

Sobre o disco, Mario declarou que “Joana (Adnet) e eu escolhemos pelo ouvido e, depois, quando percebemos, tínhamos coberto fases de toda sua vida. Não mexi muito. Porque é genial. É genial! Não desconstruí. Não desmontei o que ele fez.” 

E não desmontou mesmo, só tornou melhor, mais bonito, em suas inspiradas intepretações.  

No mesmo ano gravou também Para Gershwin e Jobim e no próprio encarte ele explica o que motivou a união desses dois gênios da música: "Desde pequeno ouço e admiro a música e Antonio Carlos Jobim. Através dele e dos Chopins e Debussys do piano da minha mãe, descobri o universo erudito, os grandes compositores, principalmente os que o influenciaram - e aí se inclui, naturalmente, George Gershwin. Com o tempo fui descobrindo as semelhanças entre os dois, como, por exemplo, o fato de que cada um, à sua época e guardadas as devidas proporções, revolucionou a música popular de seus país e atravessou fronteiras." 

E o disco é o resultado da influência desses dois gênios, entre os quais o próprio Adnet se imiscui, humildemente, para fazer suas homenagens. São apenas duas músicas de Gershwin (I Got Rhythm e Love Is Here to Stay) e uma de Jobim (Desafinado). Nas outras dez, Mario Adnet mostra todo seu talento com lindas canções que, com certeza, Jobim e Gershwim aprovariam.

Em 2002, sai Rio Carioca, onde Mario Adnet já se sente à vontade para subir mais alguns degraus na carreira. No disco, além de dividir músicas com alguns parceiros como Bernardo Vilhema, Lisa Ono e Lysias Enio ele abre o disco com Cidade Mulher, de Noel Rosa, canta música de Claudio Nucci e acrescenta três números instrumentais da maior qualidade. 

Há muito o que se ouvir de Mario Adnet, que considero um dos melhores compositores brasileiros da atualidade. Os três discos citados aqui não os encontrei à disposição no YouTube. Estão à venda nas boas lojas virtuais do ramo.

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2022

O grande Nelson Gonçalves

Por Ronaldo Faria

Amo Nelson Gonçalves. De paixão inenarrável. Em MP3 tenho muita coisa dele (porque é impossível ter tudo de quem gravou 183 discos em 78 RPMs e 128 álbuns na carreira). Tenho 73 discos. Em CD físico tenho apenas dez discos. Aqui vou destacar Nelson Gonçalves & Raphael Rabello e Nelson Gonçalves & Arthur Moreira Lima. Acho que esses exemplos, de dois músicos virtuoses se dedicarem a acompanhá-lo, dizem tudo sobre a importância de estar numa mesma obra com “O Boêmio”. Para mostrar a sua importância na MPB, basta esclarecer que esse gaúcho de Sant’Ana do Livramento foi o segundo cantor a mais vender discos na história fonográfica brasileira. Ao todo foram mais de 78 milhões, ficando atrás apenas de Roberto Carlos. E logo ele, que tomou conta dos ouvidos de gerações nessas terras tupiniquins por décadas, sofreu bullying na infância por conta da sua gagueira e viveu em luta depois contra o álcool e a cocaína. Mas, nunca a ponto de perder a voz que ninguém mais e nem menos do que Frank Sinatra elogiou como uma das mais lindas que escutou em vida.

Em Nelson Gonçalves & Raphael Rabello, Ao Vivo, há 14 músicas. O disco, lançado em 2002, virou documental, já que nenhum dos dois estava mais entre nós nesta data. As duas primeiras são um solo daquele que foi um dos maiores violonistas do Brasil, morto precocemente aos 32 anos em 1995 (Nelson morreu em 1998, aos 77 anos). São elas: Samba do Avião e Luiza. Para variar, o violão de sete cordas de Raphael Rabello desenha nessas composições de Tom Jobim uma obra-prima a se ouvir uma, duas, vária vezes. Depois, começa o repertório a seguir aquele que, do alto dos seus 70 anos à época, mostrava uma sonoridade impecável.  

Começa com Quem há de Dizer, Súplica, As Rosas Não Falam, Nunca, Chão de Estelas e Fracasso. Em todas, a beleza que marcou cada uma de suas mais de duas mil canções. Um marco dos 50 anos de carreira que então comemorava. Depois chega Velho Realejo, onde Raphael Rabello volta com seus acordes em destaque. Daí, Número Um, Deusa da Minha Rua e Três Lágrimas. Na próxima música – Naquela Mesa – ele rege a plateia, uníssona, num clássico brasileiro que se eternizou na obra de Sérgio Bittencourt. Por fim, o disco termina com Pra Esquecer, lírica do “baixo astral e dor de cotovelo”. Ou, como está escrito no encarte do CD, são 39 minutos de “uma seresta moderna”. Se é que seresta pode ter modernidade que não seja o enlevo de viver entre uma voz e um violão a brindar o amor.

Já em Nelson Gonçalves & Arthur Moreira Lima – O Pianista e o Boêmio temos 16 composições. O disco é um projeto cultural dos extintos Banco Nacional e Transbrasil. O disco é de 1992. Ele começa com Chão de Estrelas e vai na voz de Nelson com Camisola do Dia, a eterna A Volta do Boêmio e Caminhemos. Na quinta faixa é a hora de Moreira Lima tocar em solo Tico-Tico no Fubá. Nem precisa dizer que nas músicas anteriores o piano de cauda do virtuose se desfaz pleno como parceiro quase univitelino de Nelson. Como se ambos, piano e voz, fossem um só. Camisola do Dia é um exemplo claro e total. E o piano entrou no disco após Nelson fazer as gravações de voz a capella. Foi tudo mixado depois e virou um CD que, se juntasse ambos em estúdio, ao vivo e a cores, não seria melhor do que saiu. Basta dizer que o pianista e o boêmio fizeram juntos cerca de 50 shows pelo País.

No CD caminhamos com a magistral Eu Sonhei Que Tu Estavas Tão Linda (de novo abrilhantada pelo piano), a incrível Dolores Sierra (com introdução quase flamenca) e a Mulher que Ficou na Taça. A nona faixa é com um solo indescritível de Moreira Lima – Lamento. Seguem o grande bolero El Dia Que Me Quieras e as fantásticas As Rosas Não Falam, Fica Comigo Esta Noite, Meu Dilema, Escultura e Pensando em Ti. Haja adjetivos e substantivos neste texto... Mas é impossível não tê-los para esse disco. As duas próximas faixas são solos de Moreira Lima: Fon Fon e Apanhei-te Cavaquinho. O disco termina com a voz de Nelson em Último Desejo e Dos Meus Braços Tu Não Sairás

Enfim, temos o juntar de um piano irretocável e uma voz irreparável. Do Nelson Gonçalves recomendo também os três CDs antológicos que marcam parte da carreira do cantor no 50 Anos de Boemia I, II e III, e o próprio 50 Anos de Boemia Ao Vivo no Olympia (SP). Assim como recomendo os discos A Volta do Boêmio e Bacharel do Samba. Mas, imagino por fim, se não fossem o álcool e as drogas, se a voz do “Metralha” poderia, no fim da sua carreira, continuar inigualável como sempre foi. O show no Olympia mostra, porém, que pouco se perdeu e minha tese cai por terra. E ele continuava um fumante inveterado (teria sido o cigarro, inclusive, o vilão da sua morte por infarto). Mas, se não fossem esses arroubos de quem vive a noite e é um boêmio batizado em prazeres e inebriantes loucuras, seria ele o Nelson Gonçalves que foi?

Enfim, é isso. Como disse antes, acho que ninguém vende mais de 78 milhões de discos à toa. Tem que ser diferente. Tem que ter algo a mais. Seja o que isso for. Só um último adendo: ele, junto com Elvis Presley (e apenas ambos), foi quem ganhou o prêmio Nipper da então gravadora RCA por mais tempo junto ao selo, além de faturar 38 discos de ouro e 20 de platina. Logo, tinha e tem que ser Nelson Gonçalves. E ele é só ele. E fim de papo. Um brinde à vida! Seja ela da forma que for ou tenha sido.

 Nelson Gonçalves & Arthur Moreira Lima – O Pianista e o Boêmio você encontra no Deezer e no Spotify.

Nelson Gonçalves & Raphael Rabello, Ao Vivo, você encontra no Deezer, no Amazon Music e no Spotify.

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2022

Bom de voz e de balanço: Miltinho

Por Edmilson Siqueira

No último 31 de janeiro, o senhor Milton Santos de Almeida teria feito 94 anos. Morreu aos 86, depois de uma enorme, vitoriosa e fantástica carreira que gerou unanimidade entre críticos: foi um dos maiores cantores que o Brasil já conheceu. E, pela sua qualidade vocal, pelo seu ritmo, pela sua facilidade de improvisar, teria feito sucesso em qualquer lugar do mundo. 

Estou falando de Miltinho, um pandeirista e integrante de grupos vocais que virou cantor solo para felicidade geral da nação. Anjos do Inferno, Namorados da Lua, Quatro Ases e Um Curinga, Milionários do Ritmo e Cancioneiros do Ar foram os grupos que tiveram Miltinho no elenco. Com o Anjos do Inferno chegou a ir para os Estados Unidos acompanhando Carmem Miranda. 

Mas ele explodiu mesmo quando lançou, no início dos anos 60 do século passado, o LP Um Novo Astro, gravado com Sexteto Sideral. O nome era premonitório, pois Miltinho se tornou um astro rapidamente: conquistou a todos com sua interpretação única, sólida e cheia de gingado. Nesse disco estava a música Mulher de Trinta (Luiz Antonio), que fez sucesso imediato e o próprio Miltinho gravou em outras ocasiões, sozinho ou, como em Miltinho Convida, gravado em 1997, em que ele divide essa música com João Nogueira, num dos melhores momentos do disco. 

E é nesse disco que vou basear esse artigo. Em 1997 Miltinho já estava com 71 anos e sua voz ainda tinha o brilho de sempre. A Globo/Columbia então resolveu fazer uma grande homenagem ao cantor e produziu um disco em que Miltinho canta ao lado de grandes astros da MPB, um repertório especial de seus sucessos, agora em novas e bonitas versões.

Logo de cara, é Luiz Melodia quem emenda a balançada trajetória de Menina Moça, do mesmo Luiz Antonio que fez Mulher de Trinta. Ambas as músicas estavam no LP de estreia de Miltinho e, regravadas mais de 30 aos depois, ainda comportam versões modernas que lhe caem muito bem. 

A segunda faixa traz Nana Caymmi, com sua voz diferenciada, participando de Canção da Manhã Feliz (Haroldo Barbosa e Luiz Reis) e o encaixe sonoro é perfeito. Mulher de Trinta vem a seguir e ambos, Miltinho e João Nogueira, dão um show de intepretação e entrosamento. 

Com Elza Soares, nossa rainha do samba que faleceu recentemente, Miltinho não gravou apenas Cara de Palhaço nesse disco-homenagem. Gravou nada menos que três LPs que receberam o nome Elza Miltinho e Samba, volumes 1, 2 e 3 e que hoje são antológicos. E todos em seguida, um fazendo mais sucesso que o outro, em 1967 e 1969. Depois, entre 1970 e 1973, gravou quatro com Dóris Monteiro, uma grande cantora que também entendia muito do balanço no qual Miltinho era mestre. São, por fim, sete LPs com aulas de interpretações e de como se faz a famosa ginga brasileira no samba. 

O grande João Bosco é o próximo convidado de Miltinho. Ambos cantam Lembranças (Raul Sampaio e Benil Santos), outro sucesso que tem uma poesia cativante. João Bosco, sempre chegado a um improviso vocal, deita e rola ao lado do mestre. 

O Poema das Mãos (Luiz Antonio) traz um grande sambista cantando um samba canção ao lado de Miltinho: Martinho da Vila, aqui com seu vozeirão grave fazendo um contraponto sensível às divisões diferenciadas que Miltinho faz com a melodia. Outra aula de interpretação.

O MPB 4 comparece com uma verdadeira festa musical. Os quatro cantores fazem com Miltinho um pot-pourri com Bolinha de Papel (Geraldo Pereira), Helena, Helena (Antonio Almeida e Constantino Silva) e Boneca de Pano (Assis Valente).  

O samba de Luiz Reis e Haroldo Barbosa - Notícia de Jornal - junta na mesma gravação Miltinho e Chico Buarque. Apesar da inibição que transparece na faixa, Chico se sai bem ao lado de Miltinho e conseguem passar o balanço amargurado da tragédia de Joana que erra na dose, erra no amor e erra de João.

O samba canção Meu Nome é Ninguém (Luiz Reis e Haroldo Barbos), que chegou até a ser ameaçado pela censura da época (antes da ditadura, diga-se) por sugerir uma noite da "ânsia louca incontida do amor" depois que a luz se apaga, é dividido com Fafá de Belém.

Outro grande cantor brasileiro, que também já se foi deixando importante obra, Emilio Santiago, divide a belíssima Eu e o Rio (Luiz Antonio) com Miltinho.  

Poema do Adeus, outro sucesso que Luiz Antonio compôs para Miltinho, traz a companhia suave e emocionada de Tito Madi.

A dupla Jair Amorim e Evaldo Gouveia não poderia ficar de fora nessa homenagem a Miltinho. É deles Poema do Olhar que Miltinho dividiu muito propriamente com Altemar Dutra Júnior, cuja voz faz lembrar o pai.

A penúltima música do disco tem ares jazzísticos. Miltinho canta Devaneio (Djalma Ferreira e Luiz Antonio) e o intermezzo da canção é feita pelo sax de Leo Gandelman, que invade a melodia em outras possibilidades e dá à faixa um tratamento de jazz que a completa muito bem.

A parceria que rendeu quatro LPs com Dóris Monteiro fecha o grande trabalho. E para tal comemoração nada menos que mais um pot-pourri: Recado, Lamento e Murmúrio, todas de Djalma Ferreira e Luiz Antonio, dão uma amostra do que foram aqueles discos que tanto sucesso fizeram no Brasil inteiro e em boa parte da América Latina.

Num outro disco-homenagem a Miltinho, nesse caso pelos seus 80 anos, feito pela Odeon e que mostra sua fase na gravadora, de 1966 a 1976, há um belo texto no encarte, escrito por Rodrigo Faour onde, entre muitas outras coisas, se lê: "Ele diz que aprendeu a ter tanto ritmo assim com Deus. Não teve professores. Desde menino tinha fixação em pandeiro. Todo Natal seu pai lhe perguntava o presente que queria ganhar, e ele: "Quero um pandeiro!" O pai resmungava: "Outro? Mas você já tem dez!" 

O disco Miltinho Convida pode ser ouvido inteiro no Youtube: https://www.youtube.com/watch?v=AB6DeAOYrNI 

Já a homenagem aos 80 anos, Miltinho Samba e Balanço está em https://immub.org/album/miltinho-samba-e-balanco

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2022

Wandi Doratiotto, genial e pronto

Por Ronaldo Faria

Ele surgiu com o Premeditando o Breque, em 1976, grupo criado quando estudantes da ECA-USP (Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo) resolveram divergir um pouco da histórica ligação da Música da ECA com a formação para o erudito – fato que ocorre até hoje. Depois virou Premê e os amigos tiveram novos integrantes, marcaram época e espaço no universo musical paulistano e nacional como um grupo onde as composições misturavam irreverência, humor e qualidade nas letras e arranjos. E foi a partir do Premê que Wandi Doratiotto surgiu genial e pronto. É desse paulistano de 68 anos, ator no teatro e TV, escritor, apresentador na TV Cultura (no marcante Bem Brasil), compositor e músico, além de garoto-propaganda, que vou discorrer hoje. Logo, pela apresentação, ele já é um cara completo. Com certeza pronto! Uma figura que mostra e escancara a arte naquilo que ela tem de mais incrível.  

Aqui eu vou falar do seu primeiro CD solo – Pronto!. Gravado entre 2001 e 2002, ele traz 14 músicas em 44 minutos fonográficos e um clima que remete ao do Premê, com arranjos que mostram o que o grupo sempre teve na sua marca: irreverência, qualidade e humor. No CD, todas letras e músicas são dele. Na verdade, divide apenas Sujeito Discreto com o genial Eduardo Gudin. Para definir a sua “paulistanidade”, Wandi nos traz o samba Nóis que, se fosse assinado como criação do lendário Adoniram Barbosa qualquer um aceitaria como realidade. Afinal, é só seguir a letra e ver que o santo do mestre baixou e ficou.
“Nóis só qué toma umas breja
E azarar algumas mina
Reforçar o movimento
Um maluco em cada esquina.
Nóis nunca tem muita pressa
E nóis fuma um cigarrinho
Reforçando o movimento
Quem qué tê paz no caminho.
Nóis não é violento, não
Mas nóis tem o pavio curtinho
Por isso, Zé Mané, oi oi oh
Não mexe com que está quietinho.”

Wandi, que teve contato com a música sertaneja através da sua mãe, que cantava em dupla com uma irmã, inclui no CD uma viola, na faixa Harmonia. Como o seu pai era violonista e cavaquinhista, seguiu a trilha.  Em A Benson, Baden, temos um solo de violão sensacional. Mas o disco tem de tudo um pouco. A maior parte é um som que remete ao samba de breque. Ou seja, uma alegria para os ouvidos. Em Fio da Navalha, Cocada, Wanda, Chapéu, na Boca da Mina e Dostoiévski, aquilo que de melhor há no que esse poeta do cotidiano pôs a mão desde que quis premeditar algum breque. Em Dostoiévski, a certeza de que o humor registra sua marca na plenitude.
“Se Dostoiévski viveu lá na Sibéria
E não se congelou
Entre facínoras, dementes, assassinos
E gigolôs.
Se Dostoiévski vivendo na cadeia
A tudo observou
Recordações da Casa dos Mortos
Ele ali gerou.
Por que que eu, vivendo livre em Ipanema,
Nada produzi, xii
Será que o Sol em demasia em minha testa
Foi queimando o meu QI, que é isso...
É muito chato, gente
Me sinto um empecilho
Eu não plantei uma árvore
Não escrevi um livro, não tive um filho.”  

Em Pat, Cão à Toa e Neném, a batida de quem mexe com a música com maestria absoluta. Mas é em A Tua Cara que Wandi homenageia mais uma vez a sua megalópole São Paulo tão mítica, divergente, convergente, plural e insana que é o retrato do Brasil.
“São Paulo, tu és bacana
Tens emprego, cultura e a Mãe Joana
Recebes o branco, o preto, o sacana
Mas és bem melhor pr’aquele que tem grana.
São Paulo, a tua cara
É Marilyn Monroe, Padim Ciço, Sargento O’Hara
Tens gnomos, gaúchos e paus-de-arara
São Paulo, take it easy, vê se para.
São Paulo, se algum te afaga
Te escondes, te fechas, apagas
No entanto, se algum te cospe
A boca fúria de dentes-prédio, súbito esmaga
São Paulo, tu és bacana.”

Enfim, este é um CD que vale escutar para saber que o Premê vive em alma e essência na voz e composições de um dos seus criadores; curtir um som de primeira qualidade e manter o plural Wandi Doratiotto no arquipélago da MPB a surfar entre notas, arranjos e letras. Afinal, precisamos manter nas marés perdidas em maremotos e tsunamis de agora um resto de calmaria em que valha a pena navegar.
 
Este disco pode ser ouvido no Spotify e no Deezer. Ele está também no https://www.letras.mus.br/wandi-doratiotto/discografia/

Cavaleiro solitário

 Por Ronaldo Faria O bar está fechado. Parece há tempo. Mas Hermínio não se dá por vencido. Enquanto houver uma sede por beber, beber-se-á. ...