sexta-feira, 11 de março de 2022

Um sax perfeito para a bossa nova

Por Edmilson Siqueira 

Sabe aquele sax meio estridente e num volume exagerado tocado por Stan Getz num contraste gigantesco com a voz suave de Astrud Gilberto ou, pior, de João Gilberto, nos primeiros discos de bossa nova gravados nos Estados Unidos? Pois é possível, se não apagá-los das gravações, pelo menos ouvir vários clássicos de Jobim e outros com um saxofone muito mais compatível com a delicadeza da melodia, tocado suavemente, sem exageros ou trinados. 


E tudo isso é possível num disco de outro saxofonista que, veja só, conheceu a bossa nova (e por ela se apaixonou) justamente quando comprou o LP Getz/Gilberto, o pioneiro lá na terra de Tio Sam, que vendeu mais que pipoca na porta do cinema e ganhou o Grammy de melhor disco do ano de 1965. E que é fã de Stan Getz. 

Trata-se de Jim Tomlinson, a quem eu já me referi aqui em primeiro de fevereiro, quando comentei sobre um disco da fabulosa Stacey Kent. Pois Jim é o marido dela e, como disse naquele artigo, deve ter sido o responsável por Stacey também amar a bossa nova. 


Jim nasceu na Inglaterra, onde há muito também se cultua um bom jazz e sua introdução à bossa nova é contada por ele mesmo no encarte: "Como um saxofonista de 14 anos, vivendo no norte da Inglaterra, ansioso para se expor ao mundo do jazz, eu tinha poucas opções para comprar discos. Então seguia uma regra de ouro, 'se há um saxofone na capa, compre'. Foi assim que eu comprei o disco Getz/Gilberto. Nenhum dos nomes significava alguma coisa para mim, mas eu estava intrigado com o fato de o saxofonista, na foto da contracapa, ter um lenço enfiado na boca do saxofone (e ainda estou!) e eu comprei o disco. E posso dizer que vinte anos depois, a música de Stan Getz é uma fonte contínua de inspiração para mim e minha paixão pela bossa nova é inabalável. Então, quando meu produtor, Alan Bates, sugeriu que eu fizesse um álbum de música brasileira, imediatamente me pareceu uma boa ideia e uma oportunidade para eu usar um pouco do entusiasmo que tenho guardado na manga." 


O disco foi gravado em abril de 2001, em Ardingly, no sul da Inglaterra. E o lenço enfiado na boca do sax de Getz deve ter intrigado Jim exatamente porque a suavidade com que ele executa seu instrumento jamais necessitaria de algo para abafá-lo. E mesmo sendo fã de Getz que o inspira até hoje, os estilos são diferentes. 


O disco se chama Brazilian Sketches e a maioria das músicas que dele constam é, como não poderia deixar de ser, de Tom Jobim. As três primeiras, aliás, Dreamer (Vivo Sonhando), Caminhos Cruzados e Ligia, são só de Jobim. Samba de Verão (So Nice) de Marcos Valle e seu irmão Paulo Sérgio Valle; Só Danço Samba (Jobim e Vinicius); Onde I Loved (O Amor em Paz) de Jobim e Vinicius; I Concentrate On You (Cole Porte, a única que não é brasileira); Portrait in Black And White (Retrato em Preto e Branco, de Jobim e Chico Buarque); She's a Carioca (Ela é Carioca, de Jobim e Vinicius); The Gentle Rain (Luiz Bonfá e Matt Dubey) e No More Blues (Chega de Saudade, de Jobim e Vinicius). 

Há que se dizer também que Jim convidou sua mulher, Stacey Kent para algumas faixas, dando o tom de delicadeza e suavidade que o disco todo merece. Stacey, que viria a gravar muitas músicas brasileiras depois, inclusive aqui no Brasil, faz um scat na primeira faixa (Vivo Sonhando) e canta Samba de Verão (em inglês), I Concentrate On You e The Gentle Rain. 

Para fazer a "cozinha" do disco, Jim diz em seu texto no encarte, que teve sorte de poder convidar músicos que não são apenas seus favoritos nos instrumentos que escolheram, mas são também alguns dos melhores do mundo. Exageros à parte, o time é muito bom e cumpre com talento tudo que a sofisticada música brasileira exige. São eles: Colin Oxley (violões); John Pearce revezando o piano com David Newton; Simon Thorpe (contrabaixo) e Chris Wells na bateria e percussão. 

O exemplar que tenho é importado, mas ele está totalmente disponível no Youtube para se ouvir (https://www.youtube.com/watch?v=qFmYwwtdSBI) e em alguns sites de vendas. 

quinta-feira, 10 de março de 2022

À Baby Consuelo, do Brasil

Por Ronaldo Faria

Doidos, doidivanas, dramáticos e lúgubres à vida a se largarem naquilo que ainda se pode ter. No sonho depravado e calado, destravado e cavado em cada centímetro de unicidade e separação. Entre um tempo bom e o bom que já foi atemporal. Nas ladeiras de Salvador e do Rio, de Olinda, ou seja lá onde for. A subir e descer, vociferar gritos de lucidez maluca e inverdade impoluta. Feito um baby, na voz da Baby, que é do Brasil e o sempre foi e será a se desgarrar da realidade inexata cheia de acordes e alforjes que um cavalo trôpego e trêbado carrega sem nunca chegar. 

Sempre viva, a mudar sua vida, vai a caminhar entre nuvens e estrelas ou estradas a brilhar. Lá vai Baby a caminhar e descaminhar, flutuar. Canções mil, milímetros retintos de notas e prosas, prosaicas falácias de saudade. Extintos prazeres e afazeres que o cheiro de creolina e o drama inexato da rima saudaram. Nas esquinas desatinadas de um Leblon qualquer crescem notas e rimas feito doses dadas em colher. E seja o que o destino quiser. Como uma ladeira brasileira e altaneira. Transversa, inversa, misteriosa e a cantar a música derradeira.

quarta-feira, 9 de março de 2022

The foolish heart of Nara Leão

Por Edmilson Siqueira

O título em inglês vem do próprio disco gravado por Nara: My Foolish Heart. É o nome de uma música, aliás, um clássico do jazz, de autoria de Victor Young (música) e Ned Washington (letra). Para Nara cantar em português, Nelson Motta se incumbiu de fazer a letra em nossa língua, que recebeu o título de Descansa Coração e não ficou devendo nada ao original.

O disco todo é de clássicos do jazz e da canção norte-americana. E é a prova de que bom gosto musical não conhece fronteiras. Nara, ligada a movimentos bem brasileiros como a bossa nova (que teve, claro, influência do jazz e, depois, ela própria influenciou não só o jazz, como a música no mundo todo), o protesto do Teatro Opinião, o tropicalismo de Caetano e Gil e compositores dos morros cariocas, mostra, nesse disco, que não estava restrita ao que se produzia no Brasil, e que sempre esteve atenta a tudo que se fazia no mundo e que tinha qualidade.

My Foolish Heart foi o último disco de Nara, gravado em 1989, mesmo ano em que ela morreu, aos 47 anos, vítima de um tumor cerebral. Ele foi feito a pedido de uma produtora japonesa, e seria o show que Nara e Menescal fariam em outubro daquele ano, no Japão, mas não deu tempo, pois Nara morreu em julho. O disco foi gravado nos estúdios do próprio Menescal, no Rio e dele constava, inclusive, um jingle de uma cerveja japonesa, que patrocinaria os show no Japão.

O disco teve a participação dos músicos Luís Avelar (teclados), Jacaré (baixo), Rubinho (bateria), Barney (percussão) e o próprio Menescal no violão. Todas as versões são de Nara e de Nelson Motta. Com exceção para Alguém que olhe por mim (Someone to watch over me, de George & Ira Gershwin), que é assinada por Zé Rodrix e Miguel Paiva.

A produção e os arranjos de Menescal garantem a qualidade das 15 faixas (o LP original tem 14 e o CD tem uma faixa a mais que, provavelmente, não coube no vinil).


O jornalista e escritor Artur Xexéo é quem escreve na capa do LP, texto que não foi inserido no CD. Depois de dizer que Nara e Menescal transformam tudo em bossa nova, ele acrescenta: "O resultado é uma delícia. Mas, como sempre, não serve para ouvidos acomodados. My Foolish Heart dá continuidade ao LP anterior de Nara e Menescal, Meus Sonhos Dourados. Daquela vez, a dupla verteu para o português o repertório que ouvia nos cinemas nos tempos de adolescência. Tea For Two, Over The Rainbow... Agora, a escolha foi dos japoneses e a seleção é mais radical. Ouvidos menos abertos aos rumos sempre surpreendentes de Nara certamente vão rejeitar a transformação de My Funny Valentine, de Rodgers & Hart, em Adeus No Cais; ou de Night And Day, de Cole Porter, em Só Você, ou ainda de Smoke Gets In Your Eyes, de O. Harbach & Jerome Kern, em Fumaça Nos Olhos. É puro preconceito. Ou nesta altura do campeonato alguém ainda duvidaria do bom gosto de Nara Leão?"

O fato é que esse disco acabou sendo o encerramento de uma carreira musical que não encontra paralelos e que ficará para sempre na memória de todos os amantes da boa e sofisticada música popular brasileira. 


terça-feira, 8 de março de 2022

Elza e Mané, vá assistir!

Por Ronaldo Faria 

Ando "preguiçoso" para escrever. Por isso hoje eu vou indicar apenas para assistirem na Globoplay os quatro episódios de Elza & Mané — Amor em linhas tortas. Vale muito e demais a pena. Juro que chorei várias vezes ao vê-lo. Algo que une música, futebol e vida. E amo os três. Parabéns à diretora do documentário, Caroline Zilberman. Um filme onde o resgate de cenas e momentos, muitos inéditos, forja uma história em que o amor, a vida cotidiana e os preconceitos de uma sociedade hipócrita dão o tom.

Vi Mané jogar sua despedida da Seleção, no Maracanã, para arrecadar dinheiro para ele. Estava entre os 155 mil torcedores, em 19 de dezembro de 1973, a assistir a vitória do escrete canarinho contra um combinado de jogadores estrangeiros no Brasil. O Jogo da Gratidão, vencido por 2 a 1 pela seleção, rendeu cerca de 1,3 milhão de cruzeiros (hoje corresponderia a R$ 7 milhões). Garrincha comprou sete apartamentos (um para cada filha), uma casa na Barra da Tijuca, um carro (Mercedes-Benz usado) e um restaurante em Vila Isabel, na zona norte carioca, que era do filho do Nelson Rodrigues (Jofre), transformado depois em casa de shows para Elza (La Boca), além de pagar dívidas. Morreu pobre, nove anos depois, vítima do alcoolismo.

Elza, já sem ele, resistiu como diva da MPB. E ela conta no documentário os perrengues que passou com o alcoolismo crônico do Mané. Como sofreu, como lutou, como resistiu e como agiu sempre para defender o seu amor. Ela, sem dúvida, foi uma guerreira, uma mulher que brigou, muitas vezes literalmente, nas crises de Garrincha violento e embriagado, para manter sua dignidade e seus princípios. Alguém que foi acusada, à época, de ter destruído o casamento do craque da seleção, mas que nada mais foi do que um anteparo na vida dele. Se não fosse Elza, certamente ele teria ele teria afundado muito mais rápido e chafurdado na lama do esquecimento. Na verdade, até o Jogo da Gratidão foi ideia de Elza para ajudá-lo. Hoje, no Dia Internacional da Mulher, que todas as mulheres possam tê-la como exemplo vivo de garra e retidão.

segunda-feira, 7 de março de 2022

Um disco chamado Brazil

Por Edmilson Siqueira 

Sabe daqueles discos que você pega na estante da loja e sente um certo orgulho de ser brasileiro? Eu sei que sentir esse orgulho está meio difícil, já que o país só derrapa onde deveria andar seguro e pra frente, mas tem hora que a gente estufa o peito e dá aquele sorrisinho de superioridade que tanta falta nos faz.  


Pois foi o que senti quando, acho que na saudosa Hully Gully Discos, ali na Doutor Quirino, no Centro de Campinas, peguei um CD importado tendo na capa um cartão da baía da Guanabara com o nome dos dois artistas: Rosemary Clooney e, um pouco menor, John Pizzarelli. Dois grandes do jazz num disco chamado Brazil. 


Comprei na hora e em casa a expectativa se confirmou. Um disco com grande produção e só com música brasileira, cantada em inglês.  


A própria Rosemary escreve no encarte: "Numa manhã de verão de 1968, eu olhei pela janela do hotel e vi montanhas e o mar banhado numa luz de lavanda que eu nunca havia visto antes. O sentimento que eu tive naquela manhã só voltou de novo quando eu ouvi músicas do Brasil." E, em seguida, ela dedica o disco a Antonio Carlos Jobim, Frank Sinatra e Nelson Riddle, acrescentando John Pizzarelli, Diana Krall (que participa do disco numa das faixas), Oscar Castro Neves e Paulinho da Costa. 


Apaixonada pela boa música brasileira, essa cantora de dezenas e dezenas de LPs e CDs gravados, de 1952 até pouco antes de morrer em 2002, não fez por menos. Chamou John Pizzarelli para acompanhá-la com seu violão e voz em algumas faixas e também Diana Krall para fazer dueto com ela em Garota de Ipanema. 


Logo de cara, Aquarela do Brasil, de Ari Barroso, que nos EUA se chama apenas Brazil, na letra em inglês de Sidney Russel, cantada suavemente, num arranjo leve e delicioso. 


Corcovado (Jobim e Vinicius) que em inglês virou Quiet Nights, tem Paulinho da Costa na percussão, o que não deixa o ritmo brasileiro se perder. 


Garota de Ipanema, cantada por Rosemary e Diana Krall virou The Boy From Ipanema, mas não perdeu o balanço nem a sensualidade que Jobim e Vinicius propuseram. 


Wave (Jobim) é a primeira música em que Pizzarelli canta sozinho e não deixa a peteca cair. 


Amor em Paz (Jobim e Vinicius) que virou Once I Loved na letra em inglês de Ray Gilbert, tem belo solo instrumental de Chouncey Welsch no trombone. 


Desafinado, a próxima faixa, é a única do disco que soa meio estranha, talvez pela ausência de um percussionista brasileiro. Curiosamente, o encarte credita a música apenas a Newton Mendonça, deixando de lado o outro autor, Tom Jobim. Além disso, o nome em inglês (Out of Key) também não aparece.  


I Concentrate On You, de Cole Porte é a única música de um autor não brasileiro do disco, mas a presença de Oscar Castro Neves no violão e nos vocais e de Paulinho da Costa na percussão, tornam a música uma bossa nova quase genuína.  


O disco segue mantendo a linha mais que brasileira com Samba de Uma Nota Só (Jobim e  Newton Mendonça, creditada erroneamente a Vinicius no lugar de Newton); How Insensitive (Insensatez de Jobim e Vinicius), Let Go (a versão em inglês feita por Norman Gimbel de Canto de Ossanha, de Baden e Vinicius);  Dindi, o sucesso mundial de Aloysio de Oliveira e Jobim, com letra em inglês de Ray Gilbert) cantada - e muito bem - por John Pizzarelli; Águas de Março (Jobim) num belo dueto de Rosemary e Pizzarelli; Meditação (Jobim e Newton Mendonça); Sweet Happy Life (Samba de Orpheu, de Luiz Bonfá, Antonio Maria e André Salvet); A Day in the Life of a Fool que não é outra senão Manhã de Carnaval (Luiz Bonfá, Antonio Maria) na letra em inglês de Carl Sigman.    

E, pra encerrar, e pra não deixar dúvida algum de que se trata de uma grande homenagem à música brasileira, a Aquarela do Brasil de Ari Barroso é repetida, numa versão bem menor, fechando o disco. 


O CD é importado (não sei se foi editado no Brasil) e está à venda ainda em sites como Mercado Livre e Amazon. Muitas de suas faixas podem ser ouvidas no YouTube. 

Cavaleiro solitário

 Por Ronaldo Faria O bar está fechado. Parece há tempo. Mas Hermínio não se dá por vencido. Enquanto houver uma sede por beber, beber-se-á. ...