terça-feira, 15 de março de 2022

1968: um ano bom... pro rock

Por Edmilson Siqueira 

Dois dias antes da ditadura militar fechar de vez a carranca e enquadrar todo mundo com o AI-5, na Inglaterra os Rolling Stones entravam em cena, com um punhado de outros roqueiros tão ou menos famosos quanto eles para gravar um especial para a BBC. 


O cantor e compositor Irapuan Peixoto, que mantém ótima página na internet chamada HQRock, escreveu sobre o show: "Os Stones tinham acabado de lançar o álbum Beggars Banquet, no qual retornavam à sonoridade blues e R&B após dois anos imersos na psicodelia. E tiveram a ideia de promovê-lo com um filme para a BBC, a ser exibido na época do Natal. Dirigido por Michael Lindsay-Hogg (que fizera vários clipes para os Beatles e dirigiria em seguida o Let it Be), o The Rolling Stones’ Rock and Roll Circus foi gravado em 11 de dezembro de 1968, numa explosiva reunião de artistas, como Jethro Tull, Taj Mahal, Marianne Faithfull, The Who e o supergrupo The Dirty Mac, que consistia em John Lennon e Eric Clapton nas guitarras, Keith Richards no baixo e Mitch Mitchell (do The Jimi Hendrix Experience) na bateria. Ah, e também Yoko Ono. E, claro, dos próprios Rolling Stones. 


Mas problemas na produção (e a insana decisão de gravar tudo em um dia só, seguindo a ordem das apresentações de verdade) fizeram os Stones se apresentarem já de madrugada, depois de um dia inteiro acompanhando as filmagens, e a banda tocou cansada e desanimada. Avaliando o material, o grupo achou que estava aquém do que queriam e cancelaram o projeto, que não foi exibido. 


Esquecido nos arquivos, o filme foi se tornando lendário com o tempo e vazou para a pirataria. A seção do The Who, por outro lado, foi lançada oficialmente no documentário biográfico The Kids Are All Right, em 1979. Mas no fim das contas, os Stones terminaram lançado o programa em vídeo e disco em 1996." 


Rock And Roll Circus, gravado em 11 e 12 de dezembro de 1968 (o AI-5 mostrou suas garras no dia 13), se transformou num mini festival de rock e numa festa para os ouvidos da moçada. 


E traz um livreto de 40 páginas que contém muitas fotos, ilustrações circenses e dois longos textos de David Dalton, um escrito em 1970 e outro em 1995, ano em que o disco foi lançado. O filme apareceu no ano seguinte. 


A última frase do segundo texto de Dalton diz o seguinte: "Por um breve momento parecia que o rock and roll herdaria a terra." E parecia mesmo, já que a performance dos vários grupos, alguns formados ali mesmo, outros enxertados com artistas de outros grupos, foi de arrasar. Bem como as apresentações do Stones que, embora cansados, não deixaram a peteca cair. 


São treze músicas, sendo as últimas seis dos Rolling Stones, ainda na antiga formação com os cinco que iniciaram o grupo: Mick Jagger, Keith Richards, Brian Jones, Bill Wyman e Charlie Watts, além da presença de Nick Hopkins nos teclados e Rock Dijon na percussão.  

O show começa com um apresentador dando boas-vindas ao distinto público, uma banda tocando música circense para logo em seguida ser anunciada a primeira banda: Jethro Tull, com a música Song for Jeffrey. 


Em seguida o apresentador anuncia The Who que entra com A Quick One While He's Away, escrita por Pete Townshend. 


Over the Waves, a música circense, serve de introdução para o Taj Mahal detonar Ain't That a Lot of Love, elevando definitivamente a temperatura do circo. 

Apresentada por Charlie Watts, que a chama de "beautiful", entra em cena Marianne Faithfull para cantar Something Better. 


Aí é a vez da grande banda formada ali mesmo: Mick Jagger e John Lennon anunciam o grupo Dirty Mac, com Lennon, Eric Clapton, Keith Richards tocando baixo e Mitch Mitchell na bateria. A música escolhida para esta única apresentação desse grupo foi Yer Blues (Lennon/McCartney) que havia sido lançada há pouco no Álbum Branco dos Beatles. 

Depois desse que foi um dos pontos altos, vem uma faixa que dá pra passar batido. Nada contra Yoko Ono, mas Whole Lotta Yoko, que o próprio Dirty Mac ajuda a tocar, até que começa bem, um rock lascado, mas depois que Yoko, ou sei lá quem, começa a soltar gritos descoordenados e até desafinados como se tentasse cantar alguma coisa, é hora de apertar o botão do aparelho de som que faz pular para a próxima música.  


A partir da décima-quarta faixa assumem os Stones com música do Banquete dos Mendigos. E logo de cara atacam de Jump Jack Flash, iniciando uma sequência de sucessos da banda que até hoje tocam por aí. Parachute Woman; No Expectation; You Can't Always Get What You Want; Sympathy for the Devil e, para encerrar Salt of the Earth. 


Um disco que marca uma época que, para nós brasileiros, foi de cinzas, mas para o mundo do rock que estava mudando os costumes e influenciando a vida de milhões de jovens, foi mesmo como David Dalton intitulou seu segundo texto no encarte: "1968... um ano muito bom". 

segunda-feira, 14 de março de 2022

A ficar no tom do Tom

Por Ronaldo Faria

“As águas desse rio, para onde vão? Eu não sei.” (Tom Jobim)

No barco que rema contra a maré, o homem vai na fé. Rema a rima, remador. Seja na sequência do nada ou na finitude da dor. Lá no fim da estrada, do lado do porto, tanto faz a felicidade ou a finitude do estupor. Tudo é excrecência no fim.

Na mulher que espera seu amado na noite diuturna de cada dia, um samba-canção. Um desejo intrínseco e lânguido e manso – um canto calado à vida a florescer em flor. Minueto intocável no mais fundo desejo esquecido no ultimato do clímax da solidão.

Na escolha da escola, a Estação Primeira que, por sinal, se chama Mangueira. Que faz versos e paródias, prosódias de ilusão num caminho que separa a vida da canção. Em versos de Cartola, Nelson Sargento, Carlos Cachaça, desce o morro para a história chegar. 

No sentimento do pranto que desce entre lágrimas, verte o coração em finita chama. Mas faz-se criança e errante. Alcoólatra e garoto dos anos 50, semente de um ser errante, desconexo do mundo futuro, a brigar na paródia de sê-lo enfim.

No poeta do adeus, sem respostas, canções, sem Deus. Sem crer em nada, a rir dos idiotas que profetizam mundos novos, ideias novas, óvulos em fecundação. A simplesmente, de forma uniforme, passar minutos unos e únicos a sorver seu eu – ou você e eu.

No milimétrico teclar entre o ritmo do dedo e o ar, há o que já foi bater nas teclas de uma máquina mecânica em barulho enlouquecedor, como o arrancar de acordes em sustenidos perdidos numa partitura qualquer. No fim, tudo é pouco ou,  senão, o mais ínfimo ponto na eternidade de ser.

“Meu tempo é quando” (Vinicius de Moraes)

sábado, 12 de março de 2022

À Cida Moreira

Por Ronaldo Faria

Calçada vazia e fria à frente, defronte da fronte que gela no rio que corre infante. Frágeis corpos a copularem em lugar nenhum. Na voz que ecoa e voa, ânsia e amor. Um pouco de vestes travestidas de farrapos e trapos, outro tanto de canto e acalanto. Um embriagado a deitar no chão para o sono insone, carente de bocas e beijos, a vomitar na esquina cretina que teima em virar de ponta a cabeça. 

Lua carente acima de todos, a virar pequena e se transformar em cheia. O que irá querer essa lua? Irá parar no céu, nas notas de Orfeu? Far-se-á donzela para se entregar ao sol cheio de calor e tesão? Ou será que, calada e performática, somente irá virar semente num alto que todos não conseguimos enxergar? Ninguém saberá o que falar. No fim, há pouco a dizer naquilo que o destino fez e desfez. 

Asfalto tátil e negro, abandonado ao seu relento e intento. A dar um bom dia à multidão insensata que passa vadia a correr de uma esquina a outra – trupe louca. Diante do espelho, os sonhos tornam-se cabelos a voarem sem destino. No palco, o palhaço vomita de asco pela mulher barbada que vira fada ao tocar do mágico, ser trágico com coelhos esbranquiçados e cartolas inertes num lago.

No espaço frágil e ínfimo do infundado quadrado que enterra sonhos e solilóquios, o toque do dedilhar silencioso. O piano vibra harmonioso. Cioso, o mentor põe a fita métrica para mediar e medir a própria dor. Desesperada, a mãe chama o doutor. A febre alta parece o fim ou um torpor. Lá fora, no aforismo de um cantor, carros são dirigidos por generais. Há um tempo, há gente nas gerais, há qualquer coisa, se nada diante de nós ainda houver...


sexta-feira, 11 de março de 2022

Um sax perfeito para a bossa nova

Por Edmilson Siqueira 

Sabe aquele sax meio estridente e num volume exagerado tocado por Stan Getz num contraste gigantesco com a voz suave de Astrud Gilberto ou, pior, de João Gilberto, nos primeiros discos de bossa nova gravados nos Estados Unidos? Pois é possível, se não apagá-los das gravações, pelo menos ouvir vários clássicos de Jobim e outros com um saxofone muito mais compatível com a delicadeza da melodia, tocado suavemente, sem exageros ou trinados. 


E tudo isso é possível num disco de outro saxofonista que, veja só, conheceu a bossa nova (e por ela se apaixonou) justamente quando comprou o LP Getz/Gilberto, o pioneiro lá na terra de Tio Sam, que vendeu mais que pipoca na porta do cinema e ganhou o Grammy de melhor disco do ano de 1965. E que é fã de Stan Getz. 

Trata-se de Jim Tomlinson, a quem eu já me referi aqui em primeiro de fevereiro, quando comentei sobre um disco da fabulosa Stacey Kent. Pois Jim é o marido dela e, como disse naquele artigo, deve ter sido o responsável por Stacey também amar a bossa nova. 


Jim nasceu na Inglaterra, onde há muito também se cultua um bom jazz e sua introdução à bossa nova é contada por ele mesmo no encarte: "Como um saxofonista de 14 anos, vivendo no norte da Inglaterra, ansioso para se expor ao mundo do jazz, eu tinha poucas opções para comprar discos. Então seguia uma regra de ouro, 'se há um saxofone na capa, compre'. Foi assim que eu comprei o disco Getz/Gilberto. Nenhum dos nomes significava alguma coisa para mim, mas eu estava intrigado com o fato de o saxofonista, na foto da contracapa, ter um lenço enfiado na boca do saxofone (e ainda estou!) e eu comprei o disco. E posso dizer que vinte anos depois, a música de Stan Getz é uma fonte contínua de inspiração para mim e minha paixão pela bossa nova é inabalável. Então, quando meu produtor, Alan Bates, sugeriu que eu fizesse um álbum de música brasileira, imediatamente me pareceu uma boa ideia e uma oportunidade para eu usar um pouco do entusiasmo que tenho guardado na manga." 


O disco foi gravado em abril de 2001, em Ardingly, no sul da Inglaterra. E o lenço enfiado na boca do sax de Getz deve ter intrigado Jim exatamente porque a suavidade com que ele executa seu instrumento jamais necessitaria de algo para abafá-lo. E mesmo sendo fã de Getz que o inspira até hoje, os estilos são diferentes. 


O disco se chama Brazilian Sketches e a maioria das músicas que dele constam é, como não poderia deixar de ser, de Tom Jobim. As três primeiras, aliás, Dreamer (Vivo Sonhando), Caminhos Cruzados e Ligia, são só de Jobim. Samba de Verão (So Nice) de Marcos Valle e seu irmão Paulo Sérgio Valle; Só Danço Samba (Jobim e Vinicius); Onde I Loved (O Amor em Paz) de Jobim e Vinicius; I Concentrate On You (Cole Porte, a única que não é brasileira); Portrait in Black And White (Retrato em Preto e Branco, de Jobim e Chico Buarque); She's a Carioca (Ela é Carioca, de Jobim e Vinicius); The Gentle Rain (Luiz Bonfá e Matt Dubey) e No More Blues (Chega de Saudade, de Jobim e Vinicius). 

Há que se dizer também que Jim convidou sua mulher, Stacey Kent para algumas faixas, dando o tom de delicadeza e suavidade que o disco todo merece. Stacey, que viria a gravar muitas músicas brasileiras depois, inclusive aqui no Brasil, faz um scat na primeira faixa (Vivo Sonhando) e canta Samba de Verão (em inglês), I Concentrate On You e The Gentle Rain. 

Para fazer a "cozinha" do disco, Jim diz em seu texto no encarte, que teve sorte de poder convidar músicos que não são apenas seus favoritos nos instrumentos que escolheram, mas são também alguns dos melhores do mundo. Exageros à parte, o time é muito bom e cumpre com talento tudo que a sofisticada música brasileira exige. São eles: Colin Oxley (violões); John Pearce revezando o piano com David Newton; Simon Thorpe (contrabaixo) e Chris Wells na bateria e percussão. 

O exemplar que tenho é importado, mas ele está totalmente disponível no Youtube para se ouvir (https://www.youtube.com/watch?v=qFmYwwtdSBI) e em alguns sites de vendas. 

quinta-feira, 10 de março de 2022

À Baby Consuelo, do Brasil

Por Ronaldo Faria

Doidos, doidivanas, dramáticos e lúgubres à vida a se largarem naquilo que ainda se pode ter. No sonho depravado e calado, destravado e cavado em cada centímetro de unicidade e separação. Entre um tempo bom e o bom que já foi atemporal. Nas ladeiras de Salvador e do Rio, de Olinda, ou seja lá onde for. A subir e descer, vociferar gritos de lucidez maluca e inverdade impoluta. Feito um baby, na voz da Baby, que é do Brasil e o sempre foi e será a se desgarrar da realidade inexata cheia de acordes e alforjes que um cavalo trôpego e trêbado carrega sem nunca chegar. 

Sempre viva, a mudar sua vida, vai a caminhar entre nuvens e estrelas ou estradas a brilhar. Lá vai Baby a caminhar e descaminhar, flutuar. Canções mil, milímetros retintos de notas e prosas, prosaicas falácias de saudade. Extintos prazeres e afazeres que o cheiro de creolina e o drama inexato da rima saudaram. Nas esquinas desatinadas de um Leblon qualquer crescem notas e rimas feito doses dadas em colher. E seja o que o destino quiser. Como uma ladeira brasileira e altaneira. Transversa, inversa, misteriosa e a cantar a música derradeira.

Cavaleiro solitário

 Por Ronaldo Faria O bar está fechado. Parece há tempo. Mas Hermínio não se dá por vencido. Enquanto houver uma sede por beber, beber-se-á. ...