segunda-feira, 4 de abril de 2022

Dois gênios juntos

Por Edmilson Siqueira 

Foi um desses encontros em que dois gênios se entendem. Um nasceu em 15 de agosto de 1925. O outro, mais velho, veio ao mundo em 4 de agosto de 1901. O mais velho morreu em 1971 e o mais novo morreu em 2007. O que ambos representam para a música em geral e para o jazz em particular não cabe numa enciclopédia. Mas eles se encontraram em julho e outubro de 1957 e gravaram um disco. Ou seja: além de tudo que fizeram com e para quase todos os outros músicos do mundo, deixaram um exemplo de harmonia, sofisticação e puro entendimento musical.  


Do LP gravado pela Verve, saiu um CD, quarenta anos depois, com quatro faixas a mais, inclusive uma em que o início é refeito várias vezes por erros cometidos. Mas eles podiam errar: estamos falando de Louis Armstrong e Oscar Peterson, dois gênios da música. O primeiro é simplesmente considerado como o mais importante jazzista de todos os tempos. Para quem conhece o velho "Satchmo" apenas de What a Wonderfull World – uma baladinha açucarada que ele gravou já no fim da vida - nem imagina o que esse negro de sorriso fácil e voz rouca fez com seu trompete para a música do mundo.  

Já Oscar Peterson só mereceu, em sua longa carreira até aqui, elogios os mais variados. Uma unanimidade ao piano, um clássico do jazz que, com seu talento e elegância, já se inscreveu definitivamente na galeria dos gênios musicais.


As 16 faixas do CD (no LP eram 12) nos dão 70 minutos e 21 segundos do mais puro prazer musical. À voz rouca e deliciosa de Armstrong se junta o piano exato, preciso, econômico de Peterson e a gente ainda ganha, de lambuja, vários solos de trompete, daquele modo de passear pelas notas das melodias como se elas fossem suas íntimas conhecidas (e eram mesmo), explorando todas as possibilidades de cada música, inventando caminhos e voltando ao rumo na hora exata.  


That Old Feeling, Let’s Fall in Love, What’s New, Sweet Lorraine, Let’s Do It, I’ll Never Be the Same e outros clássicos do jazz são visitados pelos dois, mais Herb Ellis na guitarra, Ray Brown no baixo e Louie Bellson na bateria. Uma aula cheia de prazer é o sentimento que fica após ouvir todo esse Louis Armstrong Meets Oscar Peterson. A produção do LP eu não conheço, mas a do CD é coisa de gente grande. Além de uma caixinha que se abre em três partes, com grandes fotografias dos dois, procurou-se mais espaço para manter o projeto original. O texto de Leonar Feather que saiu na contracapa do LP está lá, em letras miúdas. Mas, além disso, acompanha também um encarte de 10 páginas, com todas as informações possíveis sobre o trabalho, tanto o LP de 1957 quanto o CD de 1997, inclusive um longo texto de John Chilton, escrito especialmente para o CD em junho de 97.  

Cá entre nós, só a música dos dois já bastava, mas a Verve é dessas gravadoras onde o respeito pela obra de seus artistas está acima de tudo. 


O CD inteiro está disponível no YouTube neste endereço: https://www.youtube.com/watch?v=A5mZJ1Y9eLo

sábado, 2 de abril de 2022

Miúcha e seus compositores

 Por Edmilson Siqueira 

Ela era irmã de Chico Buarque, se casou com João Gilberto e teve uma filha, Bebel Gilberto. Só esses fatos já teriam colocado Heloísa Maria Buarque de Holanda na história musical do país. Mas ela também cantava e, como Miúcha, seu apelido caseiro que virou nome artístico, encantou a muitos, interpretando um repertório de alta qualidade com uma voz tranquila e bonita.  


Seu primeiro disco só foi gravado quando ela estava com 38 anos, mas já havia cantado antes em Paris, enquanto fazia o curso de História da Arte na École du Louvre. Numa viagem com amigos para Roma, na década de 1969, conheceu João Gilberto e se casou com ele. O casamento durou até 1971 e dele nasceu, nos Estados Unidos, Bebel Gilberto, consagrada como cantora de jazz em extensa carreira.  


Miúcha era uma espécie de unanimidade no meio musical, não só pela sua simpatia, mas pela qualidade que impunha a seus discos, pela excelente escolha de repertório e pela alegria contagiante que dela emanava.    


Viveu até os 81 anos, quando, em 2018, um câncer de pulmão a levou.  


Entre os 14 discos gravados - 11 de carreira e 3 coletâneas - vou destacar aqui um que é bem significativo da carreira de Miúcha. Gravado pela ótima Biscoito Fino, em 2002, o disco recebeu o nome de Compositores e nele Miúcha faz um passeio por um repertório não muito conhecido (com exceção de dois sucessos com outros intérpretes)

de grandes compositores brasileiros. 


No encarte do CD - um grande trabalho gráfico resultado de uma produção muito bem cuidada - há vários depoimentos de compositores que têm músicas no disco e todos eles têm algo em comum: a louvação da alegria da presença de Miúcha, seja no estúdio, seja na companhia deles em qualquer lugar que seja. 


"Miúcha é uma das pessoas mais joviais que conheço: o tempo passa e cada vez que nos encontramos confirmo essa primeira impressão. O astral é sempre alto, os grilos não sobrevivem perto dela." (Cristóvão Bastos) 


"Miúcha, além de ótima cantora e compositora, é uma das pessoas mais alegres que conheço." (João Donato) 


Assim, com alegria e muita qualidade, Miúcha passeia por 14 músicas de um disco que, quando termina, dá vontade de repetir muitas outras vezes e de tê-lo sempre por perto para ouvir sempre. 

Pode Ir, parceria de Carlos Lyra e Vinicius de Moraes; Quando a Lembrança me Vem (a única parceria entre Tom Jobim e João Donato);  Canção Inédita, de Edu Lobo e Chico Buarque; Fox Trote, de Guinga e Ney Lopes; Tomara, de Novely e Maurício Tapajós; Cor de Cinza, de Noel Rosa; E Daí?, de Miguel Gustavo; Solidão, de Tom Jobim e Alcides Fernandes; Tempo de Amar, de João Donato e Miúcha;  Lembre-se, de Moacir Santos e Vinícius de Moraes; Refém da Solidão, de Baden Powell e Paulo César Pinheiro; Vento Levou, de Cristóvão Bastos e Abel Silva; A Dor a Mais, de Francis Hime e Vinicius de Moraes e Você, Você, de Guinga e Chico Buarque são as 14 músicas muito bem gravadas, com ótimos arranjos e a voz marcante de Miúcha que fazem desse Compositores um disco obrigatório na coleção dos que curtem a boa MPB. 


No Youtube tem uma playlist com todas as músicas do disco: https://www.youtube.com/watch?v=nnVekrujmY0&list=PLrt7VbxNS8rfFpeByO4U-cpxbP2mDVoYy 

sexta-feira, 1 de abril de 2022

A Dominguinhos...

Por Ronaldo Faria

Terra ressecada cheia de pedras e pó. Que dó. Talvez um devaneio sem início, fim ou meio. Um acordeon a traçar sons e notas a denotar. Um pedaço de tempo efêmero, tardia saudade a desbragar. Velejar de portinholas que se fecham e se abrem sem parar. Feito a mulher no tempo, dependurada na janela a somente olhar. Na semente colhida logo longe, lumiar. Um pedaço de acaso, um regurgitar de saudades e passados, um afago sem dor. A sentença de passar um rio pequeno a poder matar e se desmilinguir. No que for, será. Talvez um derrear sem fim, lembrança volátil e efêmera. Talvez o cocô da filha canina recolhido a cada manhã e tarde. Um forró rodeado de chão e o que for. Afinal, há pouca divisória entre a felicidade e a dor. Talvez um pedacinho de tempo que a gente nem sabe o que é. E fica tudo assim: na fé. Um Nordeste sem sul ou leste. Sem centro ou oeste. Apenas Nordeste. Terra minha. Passado meu. Passagem minha. Artimanhas da vida. Caçamba a buscar água vinda da cacimba. Tudo a cheirar lenha e pasto calcinados de tanto brotar. Um descobrir na chuva finita, outro pouco a ver a água verter. Feito feira onde o açude se entrega às poucas folhas que dão saudade que brota igual a semente dormente na iniquidade que o tempo dá. Senão, somente eu, num cantinho onde cabe apenas uma urna diminuta e escondida detrás de uma sepultura que se cobre toda de vida. E haja acórdãos, dias perdidos entre um batucar de teclas e decisões, cisões de ser e estar. Do lado de fora, um Rio de Janeiro brota cheio de meses e reses que se deixaram morrer entre o tanto de pasto e o curral. No cheiro de bosta que permeia as lembranças e a reentrância, essência do odor de vida se aflora em dor. Há um tanto de pequenas capelas cagadas de morcegos e tantas hóstias. Inglórias certezas e desmedidas asperezas. Talvez um tempo esquecido, um frigir de emoções dirimidas. Quem sabe carolas de véus e vestes negras, vestígios de novas esperanças ou murtas entregues aos morcegos que cagam em anjos e santos benzedores. Nos alforjes do cavalo qualquer que segue as estradas sem matagal e fim. Talvez, quem sabe, meu último fim far-se-á simples e em si: o derradeiro suspiro sem encher o peito de ar e o chupim a cantar. Na sanfona, Dominguinhos solta o fole sem dizer que ele, no fundo, sou eu...

quinta-feira, 31 de março de 2022

Desassossego, um disco perfeito de Bel Padovani

 Por Edmilson Siqueira 

Há muitos artistas campineiros que andam fazendo boa música por aí. Quando eu escrevia a coluna Farol, na revista Metrópole, domingueira do Correio Popular, muitos textos foram dedicados a artistas locais, nascidos aqui ou aqui radicados por força da Orquestra Sinfônica, do curso de Música da Unicamp ou mesmo pela vida noturna da cidade e seus bares com música ao vivo. 


Uma dessas artistas, campineira da gema, é Izabel Padovani. Só que, ao contrário de muitos, sua carreira se começou por aqui, se desenvolveu mais na Áustria, onde viveu dez anos. Quando voltou, participou, em 2005, do consagrado e sério Prêmio Visa de Música Brasileira. E ganhou. 


Além de uma boa grana (110 mil reais) o prêmio deu a ela a gravação de um disco pela Gravadora Eldorado. Um disco com rica produção, com repertório sem restrições e com quinze músicos participantes.  

E Bel não deixou por menos. O resultado foi Desassossego, consagrado pela crítica e, se não chegou às "paradas de sucesso" e ganhou discos de platina por aí é porque o mercado brasileiro é feito de outras coisas, não necessariamente de qualidade, não necessariamente belas e que se desmancham no ar antes de completarem um ano de vida. 

Já Desassossego é eterno, mercê não só a enorme qualidade da cantora, mas também pelo excelente repertório e pelos arranjos perfeitos e ousados. Arranjos esses devidamente assinados por Ronaldo Saggioratto, contrabaixista (e que tem acompanhado Bel nos discos e apresentações) e Marcelo Onofre, pianista e também presença constante nos trabalhos da cantora. 


A qualidade que esses dois grandes músicos acrescentaram à voz cativante de meio-soprano de Bel é coisa de gente grande. Exemplo disso é o que foi feito na segunda faixa do disco, um samba de Paulinho da Viola e Elton Medeiros - Onde A Dor Não Tem Razão - onde usaram um conjunto de saxofones (soprano, alto, tenor e barítono) para dar uma massa sonora inusitada - e de alta qualidade - ao tradicional samba.   


Antes, no disco, Bel já nos encanta com sua versão de Circuladô de Fulô, resultado da incursão de Caetano Veloso no livro Galáxias, de Haroldo de Campos, onde os textos figuram sem qualquer título e as páginas são preenchidas do começo ao fim, sem divisão de versos ou parágrafos e sem pontuação.  


Cada música do disco, mercê a qualidade do resultado, acaba sendo uma agradável surpresa ao ouvinte. A estranha e difícil letra de Pés no Chão (Mário Laginha e Maria João) flui pela voz de Bel como se já se conhecessem há muito tempo. A parceria que ela faz com o ótimo cantor Renato Braz (que já foi tema de um artigo aqui), em Dueto (Chico Buarque) não fica devendo nada ao original gravado pelo próprio Chico e Nara Leão.  


A Permuta dos Santos também alia a qualidade da interpretação com um arranjo sensacional, misturando instrumentos e vozes no acompanhamento.  

Lagrimas de Oro, de Mano Chao, é a música pop do disco, com arranjos de guitarra e palmas que se completam.  


Depois de passar novamente por Chico Buarque e Edu Lobo com Frevo Diabo, surge uma espécie de surpresa no disco. Com um arranjo completamente diferente de tudo que se ouviu até agora nessa música, Bel canta Retalhos de Cetim, de Benito de Paula. O resultado é impressionante. O popular samba foi agraciado com um inusitado upgrade. 

Song for Denise (Reinhard Micko), Ensolarada (Luiz Felipe Gama) e Um Samba na Suíça (Janet de Almeida e Haroldo Barbosa) completam o disco. 


O disco pode ser ouvido no Youtube neste endereço: https://www.youtube.com/playlist?list=OLAK5uy_l8-DpuMK8IUZlUZVss8XWCrfHy-qzrXSg 


E também pode ser comprado nos bons sites do ramo. 

quarta-feira, 30 de março de 2022

À Dona Ivone Lara

Às vezes o meu Rio de Janeiro volta incerto e brejeiro. Com rodas de umbanda, corridas na praia, porres sem saber. Um tanto de amanhecer e até ver o poeta maior, outro pouco de entardecer por detrás do morro que se enche de vidas e vozes.

Às vezes o meu Rio de Janeiro se entrega em cheiros de creolina, odores de bares, fragrâncias da amada. Com rodopios e pios do santo que baixa e sobe a cada cantar. E uma maresia que sobe e fica, se larga e passa, entre o fim e a alegoria.

Às vezes o meu Rio de Janeiro se desvanece e se entorpece de relíquias mil sob um céu de anil. E pede a contradança à mais bonita mulher que pode ser par. E roda, rodopia, ginga e se joga para cada esquina infinita e finda que não sabe acabar. 

Às vezes o meu Rio de Janeiro nem sabe quem é. Talvez seja uma cidade ou, senão, apenas o corpo de uma mulher. De Deodoro a Marechal há muito a seguir. Do Leblon até o Jacaré tem quem dá adeus e quem nunca aceita dar sequer uma ré.

Às vezes o meu Rio de Janeiro me deixa entregue ao léu. Meio Maracanã em dia de Flamengo, meio saudoso do dengo da índia que vivia depois do Irajá. Afinal, a Cidade Maravilhosa não tem muito lugar. É em cima do morro, no asfalto e ou só acolá.

Às vezes o meu Rio de Janeiro surge em novembro, fevereiro ou dezembro. Pouco importa, desde que haja entrada e, na saída, uma porta. Daqui exilado, não troco o samba pelo tango, mesmo a ter todo o respeito pelo som imortal de um frevo.

Cavaleiro solitário

 Por Ronaldo Faria O bar está fechado. Parece há tempo. Mas Hermínio não se dá por vencido. Enquanto houver uma sede por beber, beber-se-á. ...