sábado, 11 de junho de 2022

Uma coletânea de um gênio

Por Edmilson Siqueira 

Escrever sobre George Gershwin (setembro de 1898/julho de 1937) num blog musical é escrever sobre a própria música norte-americana do século 20. Há livros e mais livros sobre o compositor e sua obra está espalhada pelos quatro cantos do mundo, sendo regravada milhares de vezes. Quem não conhece a vida desse judeu russo cujo nome de batismo era Jacob Gershovitz, vai se espantar com tudo que ele fez antes dos 39 anos, data em que morreu vitimado por um tumor no cérebro. Detalhe: o nome mudou para George Gershwin não por imposição artística, mas sim pelos próprios pais que, ao chegarem nos Estados Unidos, "americanizaram" todos os nomes da família. Seu irmão Ira Gershwin, grande letrista e maior parceiro das músicas de George, se chamava Israel.  


Um conhecimento rápido sobre a vida desse gênio musical pode ser obtido com a leitura de uma pequena biografia dele neste endereço: https://blog.fritzdobbert.com.br/historias/george-gershwin/# 


Nesse texto você ficará sabendo que os pais dele contrataram um professor de piano para seu irmão, Ira, mas um dia George sentou-se ao piano e tocou uma música inteira que havia aprendido sozinho. A partir daí, decidiu-se que George é que aprenderia a tocar o instrumento. E o professor, após as primeiras aulas, decidiu que não cobraria nada por elas: para ele era um prazer ensinar piano a "um gênio".  

Dentre os muitos discos que homenagearam George e sua obra, está uma coletânea intitulada "'S Wonderful: The Jazz Giants Play George Gershwin", produzido por Eric Miller, em 1977.  O termo "gigantes do jazz" não está no título do disco à toa, porque, sim, os maiores nomes do jazz no mundo gravaram uma ou mais (geralmente bem mais que uma) músicas de George. E o nome de uma das músicas ("'S Wonderful" retrata muito bem o que você vai ouvir. 


O disco começa com ninguém menos que Miles Davis, com "But Not For Me" e, a partir daí, clássicos do jazz vão se sucedendo, tocados por diversos outros gênios como Miles.


Zoot Sims e Joe Pass vêm a seguir com "I've Got a Crush On You" e "Oh Lady, Be Good" respectivamente.  


O violinista Stephane Grapelli se junta a McCoy Tyner para apresentar um dos ícones da obre de Gershwin: "I Got Rhythm". Art Tatum aparece com "The Man I Love". The Modern Jazz Quartet, um grupo que é uma lenda do jazz nos Estados Unidos, junta nada menos que quatro sucessos: "Soon", "For You, For Me, Forevermore", "Love Walked In" e "Our Love Is Here To Stay".  


O quarteto de Benny Carter comparece com "Someone To Watch Over Me" e Red Garland com "'S Wonderful", música grava inclusive por João Gilberto. Nat Adderley se incumbe de "I Gott Plenty o'Nutting" e Cannoball Adderley surge com "Who Cares?". 

O festival de clássicos prossegue com Cal Tjader apresentando "It Ain't Necessarily So" e com Ken McIntyre e Eric Dolphin com "They All Laughed". 


Para completar a coletânea só de músicas boas de um único e genial autor, Lester Young apresenta "A Foggy Day" e Bill Evans encerra com "Our Love Is Here To Stay".  


Pra quem não sabe, George Gershwin é autor também das músicas do musical "Porgy and Bess" onde ponteia "Summertime", o megassucesso que continua sendo gravado até hoje. Sim, essa música não está na coletânea, mas who cares? 


O CD pode ser ouvido integralmente no YouTube em https://www.youtube.com/watch?v=qYSN2VBJL68&list=OLAK5uy_msAyZsK6o_gBZ66xxXWBSr4DKzPF_HVGw . 

sexta-feira, 10 de junho de 2022

Ao piano de João Donato

 Por Ronaldo Faria

 Tempo, ausência de ventar e vento.

Vida, premência premida a si.

Tempo, no que há meses se foi.

Vida, cataclismo e cismo.

Tempo, sem espera ou era.

Vida a verter secundária.

Tempo, vaticínio e declínio.

Vida no emaranhado do nada.

Tempo, anuência da ausência.

Vida de voltas e versos retos.

Tempo de limites em prestos.

Vida insípida e tortuosa.

Tempo, cadafalso sem volta.

Vida de notas em notas ao piano.

Tempo embriagado de si mesmo.

A esmo, ambos num só e em dois.

Senão, tempo e vida entremeados.

Ritmos tresloucados do fado.

Inférteis reversos do que se foi.

Beijos largados em um sem dois.

Madrugadas vazias e o logo depois.

Inexistente alegria à alegoria da manhã.

No silêncio, vida e tempo – travestidos de si.

Talvez um poema sujo e rasgado.

Um taciturno amante carrancudo.

A mulher de seios nus ao sol do mar.

A vastidão de um eterno luar.

A canseira de eira e beira, a se beirar.

Um tanto de areia e olvidar.

Ir e seguir, à vida e no tempo.

Seguir e voltar, ao tempo e a vida.

Um deixar para velas ainda singrar.

O barco que afundou sem aportar.

Âncora jogada às pedras de qualquer lugar.

O tempo a dormir, a vida a acordar.

Ao som de João Donato, morrer para despertar...

quinta-feira, 9 de junho de 2022

Gilberto Gil, uma ótima turma e o sol de Oslo

Por Edmilson Siqueira 

O Sol de Oslo é um dos discos menos conhecidos de Gilberto Gil. E, com certeza, um dos mais belos. Outra certeza: não é só de Gil. Ele próprio, quando viu o que foi feito com todo o material produzido pelo grupo reunido na Noruega, não gostou. Disse que ele era apenas mais um dos (ótimos) participantes do disco. Era um trabalho conjunto e Gil gostaria que ele tivesse sido apresentado assim. 


Mas, problemas à parte, o disco é ótimo.  


Idealizado, produzido e dirigido musicalmente por Rodolfo Stroeter e pelo próprio Gil, o CD foi gravado no Rainbow Studio em Oslo em novembro de 1994, com exceção de duas músicas que foram gravadas no Estúdio Mosh em janeiro de 1998. Pelo tempo existente entre as gravações (quatro anos), percebe-se que o trabalho ficou guardado esse tempo todo. Motivo: a gravadora de Gil à época, considerava que o disco não era comercial... 


O grupo que gravou junto com Gil, tocando e cantando, é dos mais respeitados: a cantora Marlui Miranda, o norueguês Bugge Wesseltoft nos teclados, o indiano Trilok Gurtu na percussão, os paulistas Rodolfo Stroeter no baixo e Toninho Ferragutti nas sanfonas. 


O antropólogo e pesquisador musical Hermano Vianna é o autor do texto do encarte, quase um minitratado sobre as origens sertanejas da nossa música. Escreve ele, logo nas primeiras linhas: "Houve um tempo, que durou até as primeiras décadas deste século [no caso, se trata do século 20], no qual a música popular brasileira, em seus vários gêneros (e não importa se produzidos na cidade ou no campo), podia ser chamada de música sertaneja. O pensamento da época identificava tudo o que era popular com aquilo que vinha do sertão."  


Em outro trecho, justificando sua teoria, Vianna acrescenta: "As Artes sertanejas atraíam a curiosidade do público, tanto que os Oito Batutas, grupo de Pixinguinha e Donga, apresentou - em 1921 e em São Paulo - o espetáculo Uma Noite no Sertão." 


Aí acontece a transposição para o que inspirou o disco: "O Sol de Oslo", diz ele, "chega em excelente hora. Esse disco é uma necessária injeção de "vastidão sertaneja" no panorama da música contemporânea do Brasil. Mais do que isso: O Sol de Oslo faz o sertão funcionar sob o novo regime da globalização, dando um novo sentido para as palavras e os desejos de Guimarães Rosa (para quem Goethe, Dostoievski e Balzac eram sertanejos)."

 


Teorias à parte, o trabalho do grupo começa realçando o folclore e dando a ele moderna interpretação instrumental com a música "Tatá Engenho Novo" (domínio público), uma embolada difícil de cantar e muito gostosa de se ouvir. Outro "domínio público" vem a seguir com a singela "Teus Cabelos", uma lenta canção de apenas oito versos que Marlui Miranda interpreta com grande emoção e sensibilidade, junto com Gil.  


"17 na Corrente", a terceira faixa, vai buscar no compositor pernambucano Edgard Ferreira e em Manoel Firmino, a síntese entre o som, digamos, moderno, com a tradição do "rojão", ritmo inventado por Ferreira nos anos 1940. Quem primeiro fez sucesso com essa música foi Jackson do Pandeiro. 


Rodolfo Stroeter se uniram para compor "Xote", que, apesar de atual, aborda tema do sertão nordestino, a lenda da fonte que só produz água se uma rezadeira da Bahia iniciar a oração para que o milagre se realize. Um xote delicioso, por sinal. 


Outra música de Gil, desta vez com a parceria de Marlui Miranda, vem a seguir. "Eu Te Dei Meu Ané", outro tema "sertanejo" apresentado com a vibração de instrumentos modernos, numa combinação perfeita. 


O disco prossegue com várias surpresas, muitas compostas por Gil com perceptíveis letras de seus parceiros, invadindo um universo que o baiano não costuma frequentar, mas tão rico quanto aqueles que ele nos presenteia com suas letras. "Kaô" e "Onde o Xaxado Está", com Rodolfo Stroeter; e "Ciranda", com Moacir Santos são exemplos dessas parcerias. O disco ainda tem "Rep", "Língua do Pê" e "Oslodum" só de Gil; "A Santinha Lá da Serra", de Moacir Santos e Vinícius de Moraes; "Bastiana" de Marlui Miranda e "Ai Baiano", de domínio público. 


Pra encerrar, recorro novamente ao antropólogo Hermano Vianna, do encarte: "A grande cidade não é inimiga do sertão. A civilização da grande cidade, global, também produz, em seus melhores momentos, um pensamento do infinito. Um infinito que nos proporciona, além do pop, além de estúdios como o de Oslo, 'os frutos da ciência, sabores sem os quais a vida é vã'. Sabores, acrescentaria Guimarães Rosa, tipicamente sertanejos." 


O disco está inteiro à disposição no YouTube: https://www.youtube.com/watch?v=qmrxBexw64A. E também pode ser comprado nos bons sites do ramo. 

quarta-feira, 8 de junho de 2022

Noite de vida à música

 Por Ronaldo Faria


Noite de vida. No bar, o fim barbárie. Nas gotas do copo, as gotículas minúsculas que se entrelaçam e sabe-se lá onde for que se darão. Na música, a túnica atônita que se entorna em palavras ávidas de sede de verter saudade e sorver ambiguidades mil. No frio notívago vem a certa e incrédula vastidão do nada no amargo afago longínquo que se traveste de veste profana a dançar em qualquer lugar. No largar do lagar múltiplo, o lugar onde nascerá o sol. Na profusão de cores e odores, sabores e dores, a quântica realidade de se estar para logo nunca mais voltar. No ar, a negritude que se amplifica nítida e performática, atávica em ser apenas si mesma, na pujança inexistente de cada mente. E que a mentira se vá incongruente e demente para um solo solitário de uma guitarra qualquer.

Cavaleiro solitário

 Por Ronaldo Faria O bar está fechado. Parece há tempo. Mas Hermínio não se dá por vencido. Enquanto houver uma sede por beber, beber-se-á. ...