segunda-feira, 17 de outubro de 2022

Os Beatles do Garganta Profunda

Por Edmilson Siqueira 

A obra dos Beatles deve ter sido reproduzida dezenas de milhares de vezes por aí. E vai continuar sendo, para alegria dos novos ouvidos que poderão tomar contato com um conjunto de canções de extrema qualidade. Eu tenho na minha modesta discoteca, mais de 20 CDs de outros grupos ou cantores apenas com obras do Beatles. De grandes coletâneas como da Montown com seu fabuloso cast de artistas a discos mais, digamos, humildes, como de Emerson Nogueira ou de Rita Lee.  


Mas hoje quero falar de uma dessas tentativas de mostrar a obra dos Beatles de outra forma, sem fugir das melodias, mas aplicando nelas uma nova sonoridade. É o caso do Garganta Canta Beatles, um CD gravado ao vivo nos dias 29 e 29 de março de 1993, no Teatro João Teothônio, no Rio de Janeiro. 


O Garganta Profunda, nome do conjunto, é um grupo coral e era formado, à época, por Kristine Stenzel, Kátia Lemos, Regina Luccatto, Dagoberto Feliz, Celso Branco, Jorge Sá Martins e Pedrão. Esses dois últimos, além de cantar, também tocavam, respectivamente, baixo elétrico e sax soprano no conjunto que acompanha a apresentação, que tinha ainda Marcos Leite ao piano e Lauro Junior na bateria. 

O CD começa com inspirada introdução feita com trechos famosos de músicas dos Beatles, para cantar, sem intervalo, "Hey Jude" e, a partir daí temos uma bela mostra da capacidade vocal do grupo e, principalmente, dos bons arranjos que veremos a seguir. A própria "Hey Jude" é cantada num ritmo pouco mais rápido que o original, com vozes sobrepostas, próprias de corais. Um belo cartão de visita para o que se verá depois.  


E depois vem "If I Fell", precedida de um solo de teclado com trechos de "Michelle". "Help" é motivo para uma pequena comédia com a mezzo soprano Kátia, cuja punica função em toda a música é cantar a palavra "help" e "help me" nas várias notas e modulações em que ela se apresenta. 


A quarta e a quinta músicas do disco são as únicas que não são dos Beatles e jamais foram gravadas por eles. São os megassucessos "Monday Monday" (John Philips) dos Mamas and Papas" e "Aquarius" (Mac Dernot, James Rado e G. Ragal) que estourou no mundo com o grupo Fifth Dimension. 


Voltando aos Beatles, é a vez de "The Long And Winding Road", seguida de "Oh Darling" e "Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band".  


Enfim, quase todas as músicas até a décima-quinta, são do repertório oficial dos Fabfour, com exceção de duas - "Imagine" e "My Love", sucessos de John Lennon e Paulo McCartney gravados depois da separação da banda.  


Para o dos Beatles, mesmo os mais fanáticos, o disco não decepciona. Claro que comparações seriam injustas diante de algumas obras primas gravadas na Abbey Road, mas a qualidade vocal do grupo - e também individualmente - não compromete em nada a genial obra dos Beatles. 


O show fez sucesso, tanto que em 1994 ainda estava em cartaz e é a gravação de uma apresentação desse ano que está inteira no YouTube: https://www.youtube.com/watch?v=vdt4To2YA1s . 

sábado, 15 de outubro de 2022

A chuva sobre Santiago de Piazzolla

Por Edmilson Siqueira 

Astor Piazzolla é um desses gênios da música que a Argentina e o mundo vão cultuar para sempre. Sua obra, quase toda instrumental, é de uma qualidade ímpar. Ao enveredar em novos caminhos para o tango, Piazzolla acabou por criar sons e melodias que, embora fincadas em raízes argentinas, têm todo um contexto universal, daí a merecida veneração que ele obteve em vida em vários países do mundo. Sua música tem influência do jazz, pois viveu em Nova York a partir dos quatro anos e onde, aos nove, ganhou seu primeiro bandoneon. Estudou música e até apareceu num filme de Carlos Gardel (El Dia Em Que Me Quieras) rodado em NY, como um entregador de jornal.  


Quando os mais tradicionais argentinos diziam que o que ele fazia não era tango, respondia que se tratava de "música contemporânea de Buenos Aires". E era, sem sombra de dúvida, a melhor representação da capital argentina. 


Tenho nove CDs de Piazzolla, que abrangem boa parte de sua obra, embora falte muito ainda pra ouvir. E um dos meus preferidos nem é muito reverenciado por aí. Trata-se de "Il Pleut Sur Santiago", com seis músicas da trilha sonora que ele compôs para o filme do mesmo nome, drama franco-búlgaro de 1975 dirigido por Helvio Soto, detalhando o golpe de estado chileno de 1973. Em apenas dois anos, Piazzolla percebeu exatamente o que seria o período da ditadura Pinochet.  


A trilha é toda sombria e forte, mas tem melodias formidáveis. Ela é composta de "Salvador Allende", "Combate en la Fabrica", "La Maison de Monique", "Bidonville", "Il Pleut Sur Santiago" e "Jorge Adios". Todas são ótimas, mas a quinta, justamente "Il Pleut Sur Santiago", é obra prima.  

Das outras seis músicas, cinco delas, "Pulsacion", números 1 a 5, foram para um filme experimental sobre o pintor argentino Carlos Páez Vilaró 

O disco se encerra com outra de suas obras primas, talvez a maior,  "Adios Nonino". Essa música foi feita em homenagem ao seu pai, Vicente "Nonino" Piazzolla, quando ele estava no leito de morte, em 1959. Após vinte anos, Astor Piazzolla disse em uma entrevista: "Talvez eu estivesse rodeado de anjos. Foi a mais bela melodia que escrevi e não sei se alguma vez farei melhor". E, por muito tempo, ele se recusou a escrever ou colocar uma letra na sua grande obra-prima, porém, aceitou a proposta da cantora argentina Eladia Blázquez, que lhe apresentou um poema que havia escrito sob a versão musical. Piazzola, comovido, concordou. Eladia renunciou a quaisquer direitos autorais sobre a obra. 


No YouTube você pode assistir tanto ao filme completo como também ouvir o disco inteiro. Disco: https://www.youtube.com/watch?v=rE8USXSpcSc. Filme: https://www.youtube.com/watch?v=pJQwX8kbJAY . 

sexta-feira, 14 de outubro de 2022

Ao mestre Pixinguinha

 Por Ronaldo Faria

Cavaquinhos e desalinhos de notas e acordes. Acorda, vida minha! Se deixe ser um samba em canção. Vaticine a cisma que, ensimesmada, vai de lugar nenhum ao nada, senão. Grande Pixinguinha, bons tempos em que eu tomava uma pinguinha. Hoje, abstêmio só a sorver cerveja, guardo um vinho de nome Carmem para o momento cromático que voltar à ativa e viver. Quem sabe ainda não provo que sou comensal dos pratos parcos e raros da vida.

Sua bênção, mestre e conviva...

quinta-feira, 13 de outubro de 2022

Etta James, uma cantora genial

Por Edmilson Siqueira 

Ela ficou na 22ª posição de melhores cantores de todos os tempos num ranking elaborado pela revista Rolling Stones. É a terceira entre as mulheres, só perdendo para Tina Turner e Aretha Franklin. Ela é Etta James, nascida Jamesetta Hawkins e cantou como cantaria Ottis Reding se fosse mulher. 


Uma das rainhas do soul e do rhythm and blues, Etta James teve uma vida conturbada por amores complicados e por vício em drogas. Como não bastassem, também sofria de obesidade, chegando a pesar quase 200 quilos, sendo obrigada a fazer uma operação gástrica e perder cerca de 100 quilos. Sumiu de cena pelo menos três vezes e deu a volta por cima sempre que reapareceu, gravando muitos sucessos e com muita categoria.  


Um bom disco para conhecer a obra dessa genial cantora é a coletânea "The Soulful Miss Peaches" que traz vários de seus hits a partir de 1967, embora ela tenha começado a gravar boas músicas também desde o início dos anos 1950. 

A soul music impera em sua obra, embora várias baladas românticas que se aproximam do pop tenham feito parte de seu repertório. Em todas, o toque pessoal de quem canta com um sentimento enorme, sem ter problemas de esticar ao máximo as cordas vocais e, um segundo depois, estar quase sussurrando ao seu ouvido. Qualquer semelhança com o que fez depois Janis Joplin não é mera coincidência. A própria Janis a cita como uma de suas influências musicais. 


No CD, são reproduzidas as gravações originais de 20 músicas que estiveram em diferentes colocações nas paradas de sucessos dos Estados Unidos (e em algumas do mundo também), a partir de 1967, abrangendo grande parte de sua carreira que foi até pouco antes de sua morte, que ocorreu em 20 de janeiro de 2012, cinco dias antes de completar 74 anos. 


Há muito material de Etta James no YouTube e, embora não tenha encontrado esse disco especificamente, ele se encontra à venda nos bons sites do ramo. E um ótimo disco sobre ela, com quase 80 minutos de músicas, pode ser ouvido em https://www.youtube.com/watch?v=AxguYnv4rE8 . 

quarta-feira, 12 de outubro de 2022

Ao som de Araken Peixoto

 Por Ronaldo Faria

Chegou o negror doidivanas da noite, mortificado por poucas estrelas, espraiadas águas do mar a baterem na rocha eterna, copos erguidos e cheios de solidão e senões. Transversas vidas, vagas emoções e desilusões largadas feito nada. Um bar cheio de fumaça, cubas libres e gins com tônica. Atônita, a vida se vê catatônica diante do fim. Ávida, a mulher beija o amado com o corpo largado sobre a mesa. Sobremaneira, o Leblon se descobre às margens de uma Lagoa qualquer que se dá a quem vier.

No lugar, um cheiro de lenha crepita sob a massa de pizza que se derrete de queijos e desejos. Ensejos tresloucados e cálidos se remetem ao passado. Às canções e punções de línguas e lábios trançados e molhados. Ardidos de pimentas e sensações mil. Nas velas que iluminam as mesas, muito mais do que chás de carqueja. Benfazeja, a música se desdobra à paixão cravada para sempre. Ausente, o corpo se desvanece em prece como na cadência de universos e versos escritos ao negror do mundo.

O garçom transita entre as mesas de caderno na mão. Entre um anotar e outro, descreve rodopios de augúrios mil. Escreve desejos e arpejos de instrumentos que soam às vísceras dos amantes. Está em cada respiração ofegante, cada ausência reinante, cada descalabro daquele que se dá. Nos cantos e desencantos distantes ouve-se um atabaque aos orixás. São corpos a girarem inauditos e sonoros. Nos cadafalsos que se criam a cada sentimento, enforcados se afogam de alcoólicos devaneios.

Ao lado, no asfalto mais negro do que nunca, questiúnculas parecem tempestades em copos d’água. Um carro freia de repente, na voz de um louco surge um repente. Repentinamente, dois corpos se juntam e suam juntos, lambem suas próprias feridas e se entregam ao universo imerso de nostalgia e orgia plenas. Numa planície qualquer, ver-se-á o corpo de um homem e outro de uma mulher. Talvez um hímen deflorado como fosse sobremesa de colher. No som do piano, pessoas nas calçadas são só sombras encarquilhadas.

E assim a noite vai a sumir, trôpega e fátua. A ver seus personagens como selvagens numa antropofagia em viés. Alguns saberão o que aconteceu. Outros, inertes a si mesmos, nada terão visto. Se viveram, deus saberá. Feito crianças, todos seguirão para suas camas. Nelas, abraçarão travesseiros, lençóis esbranquiçados, corpos em conchas, fronhas retintas de cetim. Depois, até que o primeiro raio de sol se sobressaia no céu, nada mais serão. Talvez um guardanapo jogado no chão ou um sentimento esquecido, ao léu, no coração.

terça-feira, 11 de outubro de 2022

João Nogueira é o samba

Por Edmilson Siqueira 

João Batista Nogueira Junior nos deixou antes de fazer 59 anos, no ano 2000, mas deixou obra irrepreensível, sambas memoráveis que serão ouvidos e gravados para sempre. 


Quando surgiu na cena musical, João Nogueira impressionou não apenas pelas corretas e boas melodias - sempre samba - que ele perpetrava, às vezes com letras próprias e outras com parceiros. Sua voz, meio metálica e meio grave, trazia uma nova sonoridade ao samba do Rio e suas divisões rítmicas eram próprias dos bambas, como Ciro Monteiro ou Miltinho. 


E, por sorte, a série "Eu Sou O Samba", da gravadora EMI, onde João iniciou a carreira e gravou seus melhores discos, reservou espaço para João Nogueira e lançou um CD com 14 gravações, onze dele mesmo. As outras três são uma de Monarco sozinho, outra em parceria com Alcides Dias Lopes e uma de Noel Rosa. 

É um painel correto da grande obra de João Nogueira que encontrou em Paulo César Pinheiro seu parceiro mais constante. 

João, ao contrário de muitos outros compositores tão bons quanto ele, não nasceu e viveu nos morros cariocas. Filho do advogado e músico João Batista Nogueira e irmão da também compositora Gisa Nogueira, o mundo musical entrou cedo em sua vida. Logo, aprendeu a tocar violão e a compor em parceria com a irmã. 


Começou a compor aos quinze anos, fazendo sambas para o bloco carnavalesco Labareda, do Méier, através do qual conheceu o músico Moacyr Silva, dirigente da gravadora Copacabana, que o ajudou a gravar o samba "Espere, Ó Nega", em 1968. Mas ele apareceu na cena artística nacional quando no início dos anos 70 emplacou o sucesso "Das 200 Pra Lá", samba que defendia a política de expansão de nossa fronteira marítima ao longo de 200 milhas da plataforma continental. Esse samba, inclusive, andou entortando o nariz da esquerda que lutava contra a ditadura, quase marcando João como um compositor "vendido aos milicos". Mas sua obra posterior fez com que todos se curvassem ante seu talento de sambista.  


João Nogueira gravou 19 discos e participou de muitos outros. Seu filho, Diogo Nogueira, cantor e compositor de sucesso, mantém viva a obra do pai, cantando seus sucessos em shows e gravando alguns deles. 


No CD vamos encontrar grandes momentos da música de João: "Pimenta no Vatapá" (com Cláudio Jorge), "Mineira" (com Paulo César Pinheiro); Nó Na Madeira" (com Eugênio Monteiro), "Eu, Hein Rosa" (com Paulo César Pinheiro, samba gravado por Elis Regina) e aquela que é, talvez, a sua música mais citada e que mais sucesso faz nos shows do filho: "Espelho", também uma parceria com Paulo Cesar Pinheiro, mas contando a vida de João e sua relação com seu pai. Uma curiosidade sobre esse magnífico samba: quando Diogo Nogueira o apresenta em seus shows, muita gente imagina que ele está falando do pai, nos versos que dizem “Um dia chutei mal e machuquei o dedo/ E sem ter mais o velho pra espantar o medo/ Foi mais uma vontade que ficou pra trás”. Afinal, Diogo foi jogador profissional de futebol, esporte que abandonou depois de sofrer uma séria contusão. Por coincidência o flamenguista João Nogueira foi também um boleiro frustrado por uma contusão. 

O CD ainda está à venda nos bons sites do ramo e pode ser ouvido na íntegra no YouTube Music em https://music.youtube.com/watch?v=xAGEYrm9OB4&list=OLAK5uy_ksSCjCAabZLYCs1iX3-5i2m1fM767pazM . 

segunda-feira, 10 de outubro de 2022

A todos cabos da Elis Regina

 Por Ronaldo Faria

Na cadência estropiada da demência, clemência aos amantes. Desconcertantes seres que vivem a ludibriar e driblar saudade e ausência.

José toma mais um gole na degola da saudade amiúde e torpe. Entorpecido, esquecido de si mesmo, a esmo, sonhava com a amada há muito não vista à desdita. Ao fundo, As Times Goes By. Sem um adeus sequer. Um cadavérico ou feérico supor daquilo que poderia ter sido e não foi. Ao som de um trompete na noite, mistura de afago e de açoite.

José, no seu bar com banheiro privativo, vê o altivo tocar de metal tal e qual. Sopro a viralizar a ausência de cheiros de fritura e toques de ternura. Num espaço fora, cataclismos de novos amores, quando dois corpos se juntam e fazem tremer camas que se jogam de lá para cá e vão a correr quartos como se fossem inventadas às lufadas de tesão.

José, homem comum e qualquer, caminha a se desvencilhar de luzes obscuras e escuras que surgiam ao pleno sol do acordar. Solitário, surgia incauto sob o iluminar de postes que brilhavam entre cimentos e concretos coloridos de cor qualquer. Uma hora um vermelho de carros a frearem na esquina, outra vez um rubor de rostos que se entregam ao amor.

José, filho de casamento desfeito desde o momento feito de silêncio e dor, se esmera de ser. Apenas sê-lo. Há muito não lambera um selo para escrevinhar cartas escritas com letra inteligível até para a amada e mulher. No insólito introito de uma poesia finda e finita, sabe agora apenas, ao menos, se desculpar às futuras gerações por se deixar poetizar.


Na clemência tardia da excrecência, ausência dos delirantes. Discrepantes senhores que nada são ou, se muito, pouco em pouco, a pouco, definharão.


sábado, 8 de outubro de 2022

Ao Sérgio Ricardo

 Por Ronaldo Faria

Loucura, diuturna agrura do dia a dia. Em quem acreditar? Se em mim não posso, como em futuros dias creditar diáfanas toucas loucas sem cair do galho? Dependurado no nada, azáfama do que for! Só preciso de um violão para quebrar...

Cavaleiro solitário

 Por Ronaldo Faria O bar está fechado. Parece há tempo. Mas Hermínio não se dá por vencido. Enquanto houver uma sede por beber, beber-se-á. ...