sexta-feira, 9 de dezembro de 2022

Saudades que tive em outros ares

 Por Ronaldo Faria

Atahualpa Yupanqui toca quieto. Há o feto em paixão, extraviado em cada gozo que não se fez na vagina, presto, a habitar em mim. No tanto de afeto, outra realidade passageira, ligeira, inteira. Eu aqui, ereto e incrédulo, entre o meu amor por ti e a realidade de tê-la estanque. Sentimentos fálicos, saudades em deságios, veleidades, quartos mínimos onde cabe, porém, um universo só nosso e sonoro. Cheio de juras e afetos. Versos de beijos lambidos, suores lavados, orgasmos mil, olhares marcados, carinhos desvanecidos, amores passados. Cheiros, línguas, cabelos e fios de barba largados em nossos corpos, denunciando afagos de paixão e tragos de saliva e vida. Carícias, malícias, ofegantes premissas. Eu e você: sevícias. Nosso mundo díspar, em par. Homem e mulher. Dois em um só. Nas madrugadas rompidas e corrompidas das manhãs e tardes vãs, vaticinadas na realidade horizontal, encaixada, apaixonada, tragada de desejos e beijos sobejos. Solfejos, quiçá. Nós e um só, a termos dó dos outros, dos nossos outros e de nós mesmos, pela separação desmedida da paixão impensada de tão incomensurável. Por nos termos guardado no nosso mundo, nas nossas emoções, um para o outro e outro num só, no amor que é tanto que chega a dar dó...

II

Te amo. Te quero. Te desejo.
Nos amamos. Nos queremos. Nos desejamos.
Somos. Seremos. Nos temos.
Nisso, eu e Drummond somos iguais.
Eu e Vinicius à mesma sensação.
Eu e você sabemos: nossa paixão nunca vai perecer...
Te amo. Sou teu. És minha. Somos um só.
E ninguém nunca mais nos roubará um do outro.
Somos como loucos: cazuzamente soltos...
Dois corpos num só universo.
Uma madrugada de único verso.
Eu sou você. Você é eu. Somos espelho convexo...
Teu reflexo sou eu. E eu me vejo em você.
Somos um só: nus, no sol, a viver...
Sendo um mesmo até que o tempo resolva derrear.

quinta-feira, 8 de dezembro de 2022

Mark Lewis e um ótimo disco de jazz

Por Edmilson Siqueira

"Eu nasci em Tacoma, Washington, em 1958.Meu avô era um saxofonista e ele me deu um sax tenor quando eu tinha dez anos. Eu ouvia jazz em casa -minha mãe tinha muitos discos de jazz e eu podia ouvir Count Basie, Lester Young e o os velhos álbuns de Jazz at Philarmonic - esses eram os meus favoritos - com Oscar Peterson, Ray Brown, Barney Kessel e muitos outros grandes músicos. Um dia, minha mãe me disse "se você gosta de Oscar Peterson, você deveria ouvir Art Tatum". Ela possuía todos os discos antigos em 78 rotações de Art Tatum. Eles eram tão frágeis que se você deixasse cair no chão ele se quebraria em mil pedaços. Eu amei Tatum e comecei a ouvir os seus 78 o tempo todo". 


Assim começa um texto de Mark Lewis escrito no encarte do CD "In The Spirit", com o Mark Lewis Quartet. É jazz de gente grande. Mark Lewis no sax alto, Mark Levine no piano, Larry Grenadier no contrabaixo e Eddie Moore ou Donald Bailey na bateria. O disco foi gravado na Califórnia entre outubro e novembro de 1987. O CD que tenho é importado e não sei se foi lançado no Brasil. Encontrei algumas faixas no YouTube, mas ele está à venda na Amazon, por quase 80 dólares.

O disco começa com nada menos que "Wave", do nosso Tom Jobim e, por mais de sete minutos e meio, o quarteto passeia inspirado na bela melodia brasileira, criando novos momentos baseados sempre naquelas harmonias jobinianas e na batida leve e suave da bossa nova.  


"Don't Cry Janneke", do próprio Lewis, já envereda pelo jazz mais sóbrio, sem deixar de ser simples, como o próprio autor quer que seja sua música. O resultado é um som forte, preciso e melodioso. 

A terceira faixa é "Softly, As In A  Morning Sunrise", de Romberge Hemmerstein, outro jazz rápido onde o sax de Lewis domina a cena.   


A faixa a seguinte, também de Lewis, é a que dá nome ao disco, "In The Spirit". Fugindo um pouco da melodia mais lenta, Lewis coloca um bom swing na composição. 


Outra música de Lewis vem a seguir, "Amy", embalada num blues moderno, onde o som do sax ganha tons mais graves, secundado por um contrabaixo de peso. Uma das melhores do disco. 


"Lonnie Knows", também de Lewis, tem pretensões melódicas mais complicadas, mas o autor se sai bem, simplificando o que, no início, parece difícil.  


Fechando o disco, a sétima faixa foi reservada, como a primeira, para um clássico: "In A Sentimental Mood", de Kurtz, Ellington e Mills. O quarteto, como em "Wave, dá conta do recado tranquilamente, dando um balanço especial ao megassucesso da orquestra de Duke Ellington. 


Trata-se de um disco muito gostoso de ouvir. Pena que só encontrei duas músicas dele no Youtube. 

quarta-feira, 7 de dezembro de 2022

Saudade I

 Por Ronaldo Faria


João Nogueira. Paulo César Pinheiro. Rio de Janeiro. Mar. Areia. Cheiro de maré. Fé. Madrugada. A fada. A primeira foda. Vinicius de Moraes. Tom Jobim. Arlequim. Carnaval sem fim. Fiasco. Subúrbio. Zona Sul. “Ah, senão fosse o violão...” Cruzada. O pacau. A iugoslava alemã. A vala no meio da rua. O batuque com a morte do lado. O afago. A fresta. A festa. Os fogos. Ano novo. Um povo. Um samba. A sorte. A poesia. A azia. Um cigarro ou outro. Uma orgia. A mata da PUC. A urbe. Os olhos vermelhos de maconha. A professora bisonha. A baiana cheia de trama. Artigo dez. Vinicius de Moraes visto ao vivo no palco e no álcool. Candelária. Praça 11. Lagoa. Leblon. Um tom. “Meu Deus, vou me enterrar perto do Tom!” Prenúncio, anúncio de saudades demais. Prepúcio puxado à força. A forca. A farsa. A frase. O foco. O filme do cinema tijucano. O cano. O caso. Ocaso. Torquato Neto. O feto. O versículo dito pelo capuchinho. A avenida contínua. O ônibus. O menino e seus botões. Cada um com seu nome. A jogada. Linha de fundo. O mundo. Com uma sina. E tem a menina. Morena. Sirena. Lábios carnudos. Cabelos negros e longos. Tevê. Te vi e não te conquistei. Brinquedos de plena ausência. A Ciência. O foco. Vertigem de se saber finito. O minúsculo ósculo. A prostituta a jogar o travesseiro. O banho (que é de Copacabana, mas não é do mar). A cachoeira. A janela para a morte. A sorte. O sorteio. O sortilégio de ser do Brasil. Inenarrável. Frágil. Ágil. O estar sempre longe. A aorta. A sorte. A perda. O roubo. A poesia. A fazenda. A renda. O cheiro. O enterro. Alamedas. Medos e mídias. A escolha. A trolha. A troça. A telha de Araraquara. A vara. Um dia inteiro de trepação. A ação. O sim e o som. O sino. O desatino. A espera. A pedra. Sempre há uma pedra no meio do caminho. A poesia mandada para o poeta. O silêncio. Talvez Drummond não tenha um asceta. Vestibular. O lar. O professor que dá o caminho. O aninho. Aninha. Ah, como era linda a Aninha... O tempo de faculdade. Barra da Tijuca. Farol da Barra. Porres. Luta contra a ditadura. Passeatas. Gente que não sabia viver sem militares. O fonema. O papel. O cordel. O fel. A vertigem. O primeiro porre. O primeiro e o derradeiro cantar. “Que falta que você faz, João Nogueira!” Um cá estou eu, sem eira e nem beira. A se embriagar. O epitáfio. O Estácio. Viver e ócio. A saber-se finito. Tito. Flamenguista. Artista. Diretor da peça de Luiz Eça. Nelson Rodrigues, quem dera. Estou pelo mundo, à Vera. Inverossímil. Eterna criança. Sem andança. Rio de Janeiro. Aplausos solitários na noite. “Meu medo maior é o espelho se quebrar”. Ter ou não ter? Lanche frio de atum do Bob’s. Cinema suburbano. O pano. A pane. A palavra equânime. A paixão. A perda. A pérgula. A antítese. A tese. A teoria. Ágora. Paulo César Pinheiro pedindo para a madrugada entrar. Entra. Nem precisa pedir. O corpo. A cópula. A hóstia. A promessa. Mas, como um ateu pode prometer? O meter. Miscigenação. Ação. O imbróglio. A favela. A vela. Torquato Neto. O feto. O frio. Som de tiro. Miro a paixão na mulher. Os olhos escuros. O furo. A fera. Lembranças sobre a Terra. Miséria. Férias. Fatos e frívolas eras. Paixões. Soluções. Tesões. Imaginações em sonhos bisonhos. Realidade. Cidade. Esta ainda arde. Copos de uísque. Brindes à solidão. Como Eva e Adão. Um paraíso no caminho e a maçã em prejuízo. O juízo. A morte da filha amada. Nina. Falta a serpente. Há um ausente que sente. Lamenta e mente. Para si e para a outra. Há a louca. Afoita e solta. Há a solicitude. A aflição. A atitude. A amplitude do amor. A flor e a dor. Dóceis feito enigma sem praguejos e torpor. Há, por fim, uma cidade a se espraiar e planar. Um Vinicius de Moraes, de novo, meu poeta e senhor. Há a flor que nunca dei. Mater Dei. Há um forno aberto. Quem sabe a traição do poeta. Se tudo é um só segundo, porque não fazermos neste momento, entre espelhos, o nosso mundo? Há a Lapa. O baixo meretrício. O poema fictício. O bêbado a morrer de cirrose. O ócio. O impróprio e dócil escriba. O câncer maldito. Chega! Te quero! E que se fodam as regras e rezas: quero ser modernista, antropofágico e repleto de erros. Quero ser. Poeta e homem, à busca da fêmea perdida, suicida e fugaz. Como no jogo de pôquer, um az. Escrito imenso que ninguém vai ler. Sem parágrafo. Ágrafo. Meticuloso e mentiroso. Como quem já perdeu amores e mulheres. Chega! Meu enterro só eu vou seguir. Garoto em cobertas de taco a sobreviver ao fim. Como teatro de bailarina e arlequim. Eu e você, mulher de cetim. Cinzas misturadas e caladas, queimadas e moídas, humanas e caninas.

Que merda: redescobri o uísque. Mas ele não dura nem uma semana, quiçá três dias. Haja bolso para este novo Carnaval...


terça-feira, 6 de dezembro de 2022

A inspirada música de Kha Machado

Por Edmilson Siqueira 

Conheci Kha Machado em sua casa, quando ele recebeu um amigo e cantor-compositor norte-americano, preparou um pequeno show e convidou algumas pessoas. Eu trabalhava no Correio Popular e escrevia uma coluna semanal na revista Metrópole. A maioria delas era sobre música e Kha havia sido tema de uma delas, a partir de um CD que ele gravou com apoio do Fundo de Investimento Cultura de Campinas. Era um dos melhores daquele ano, produzidos, ao todo ou em parte, com dinheiro do FICC. 

Depois disso, perdi o contato com ele, e só fui revê-lo recentemente, quando descobri que ele era proprietário de um espaço cultural em Sousas chamado Rabeca Cultural. E descobri, na internet, que Kha Machado é formado em Composição no Departamento de Música do Instituto de Artes da Unicamp. É compositor, violonista, cantor e produtor cultural, e possui dois discos gravados: "Kha" com canções de MPB e "Além do Mar" para crianças, indicado como melhor álbum infantil de 2011 pelo Prêmio da Música Brasileira." 


Além de todo talento e do esforço pra promover cultura num país como o Brasil (e o que acontece na Rabeca Cultural toda semana são ótimos programas musicais), Kha é gente fina. Bom papo, discreto, educado. Seu primeiro disco é muito bom e levou dois anos e três estúdios para ser gravado. Mas o resultado é ótimo.  


Todas as doze faixas são de Kha Machado, sendo que em uma delas ele divide a letra com Aloísio Freitas. Ao ouvir a primeira faixa, "Sonho de Uma Noite de Verão", a impressão que se tem é que se trata de um compositor clássico apresentando uma pequena e delicada canção. Ka e Janiece Jaffe se incumbem do vocal, misturando algumas palavras em inglês, numa letra que parece ter sido escrita mais para mostrar a bela melodia. 

A segunda faixa, "Amarelinha" já entra no terreno fértil da MPB, com memórias de brincadeira da infância embrulhadas num baião sofisticado.  


"Praia da Baleia" já se envereda pela bossa nova, criando aquele clima de praia, sol, sal e o inevitável amor, em belos versos.  


A música seguinte, "Ficô de Madame", cuja letra tem a participação de Aloísio Freitas, é um samba urbano, típico do subúrbio carioca que provoca uma vontade de cantar junto. 


A quinta faixa, "Vampira" não fica devendo nada às músicas escritas para peças teatrais por grandes compositores.  


Já "Intimação Judicial" tem toda a pinta de ter sido inspirada em algum caso real vivido pelo compositor. Num samba tradicional, desses de conjuntos regionais, com violão de sete cordas e pandeiro, Kha conta a história de uma audiência para se prender ou soltar um ladrão de carro.  


"Muitas Luas" é uma caprichada serenata com direito a uma melodia de interlúdio de Fernando Barba, onde a Lua toma o papel da mulher amada para receber o canto apaixonado. 


A oitava faixa, "Eterna Servidão" é um diálogo entre uma prostituta e um cliente que se prostra diante da profissional da sedução. A voz feminina é de Sara Lopes, artista teatral de Campinas. 


"Pro Meu Lado", a nona faixa, retrata, de modo peculiar, a eterna briga entre o boêmio sambista e boêmio e a "patroa" que vive tentando controlar o marido. O tema é antigo na MPB, mas Kha Machado consegue não ficar no lugar comum, endo produzido um bom samba sobre o assunto.  


"Serpente", a décima faixa, já penetra no campo da moderna MPB, com um pouco de jazz e pop, contando uma história meio tétrica de amor. 


A penúltima faixa do disco, "Qualquer que Seja a Lua", volta ao estilo bossa nova, com acompanhamento de violinos, viola e cello, além do piano e do baixo acústico.  


Encerrando a programação, mais um samba rasgado, uma espécie de protesto contra a classe política brasileira, muito a propósito, diga-se. 


O CD está à venda nos bons sites do ramo. 

segunda-feira, 5 de dezembro de 2022

Saudade do tipo Caymmi

 Por Ronaldo Faria

Saudade do tipo Caymmi, largada entre duas árvores e uma rede. Esquecida de si e dos outros, entrecortada de ladeiras e esquinas onde, em cada canto, entoa um cântico mágico e febril. Saudade zerada como o catecismo de Zéfiro a ser reescrito em sânscrito ou braile e correr dedos e bocas ocas, seios apalpados e pálpebras fechadas de sono.

Saudade amenizada, múltipla de um improvisado ofurô a furar raios do sol na sua plenitude luminosa. No meio de tudo, fuzuê de corpos e copos enlatados a desaguarem ralo para dentro. Daqui, na saudade, adentro horas vividas, praias perdidas, pimentas ardidas, goles despejados entre línguas e lânguidas tardes.

Saudade encruada, dessas que fica presa entre as presas do animal louco para lamber as feridas da amada. Como um barqueiro fumaça a ungir de negror os espaços livres dos manguezais. Nas noites de lua cheia, bebidas mexicanas pedem um pouco dos sais. Na salinidade dos corpos, o gosto apaixonado das têmporas dos amantes temporãos.

Saudade perdida em perfídias que se deixam a cada passo, mas são amenizadas pelo calor que exala da sala de estar. Nela, a vela da paixão queima quieta e letal. Do lado de fora, pessoas se perguntam para onde vão. Entre duas delas, um vão. Uma estrada de pés descalços, percalços e calçadas onde se pode sentar e bendizer a vida em olhares mil.

Saudade, por fim, sem nunca se dar fim ao infindo, mesmo que este sobreviva na finitude da vida única. Porque tal saudade vai além do horizonte dos olhos e se entreolha na cama qualquer como fosse o primeiro dia. E depois diz a si mesma: “Do teu lado, e somente do teu lado, sei que a saudade, por mais doída que seja, é a melhor coisa a se sentir nessa tal de saudade do amor”.

sábado, 3 de dezembro de 2022

Sabadão

 Por Ronaldo Faria


Disco da Nação Zumbi com Chico Science a tocar. Pescoço doendo depois de uma cabeçada na piscina. Espero que não tenha afundado uma vértebra ou detonado um disco. Músculo da perna a vibrar. Cerveja Xingu com a Tia Surica no copo. Corpo relaxado depois da sauna. Um sábado até agora tranquilo... 
“Cadê Rogê?”
Olho para longe e vejo os canais do Recife. Redescubro a mistura do Capibaribe e Beberibe num só. Tudo como um mangue solitário, solidário de dar dó. Afinal, a miséria aqui, como lá, é o que não falta. Como uma boca e a afta: uma à espera da outra. Indivisíveis, invisíveis aos olhos e risíveis à natureza amarga da vida.

Ela estava lá: bela e entregue aos amores da janela. Do seu casebre vê-se, logo defronte, outro e mais outro e outro mais. Uma infinidade de casinhas coloridas e coladas, prostradas de porta a porta em tijolo sobre tijolo. E lá estava ela: limite naquilo que o ser humano já não sabe mais se é idade ou desigualdade. Cabelo longos e queimados do sol que arde no céu, sob um lumiar quase lunar. Em pele agora descobrindo sê-la, imagina o que poderá ser o sangue que escorre da vagina. De fora, ensurdecedor batuque surge como um maracatu atômico.

Lá estava ele: vaqueiro de quadrúpedes e insone senhor de cavalgadas e congadas a vestir-se de couros dourados curtidos do suor desbragado. Homem já quase velho, barbas quase brancas, mãos quase cortadas do chicote que vai e vem sobre o lombo do cavalo e ilimitados sonhos de chegada. Entre um gole e outro na cabaça curtida da vida, suor escorre pelo rosto e a poeira se impregna pelo corpo, lavado numa ou noutra poça que ainda sobra no sertão. E lá está ele: parado diante do crucifixo cravado na casa de farinha, perto de onde tantos anjinhos já viajaram a descobrir outro caminho. A rezar e chorar. Ao largo, ensurdecedor silêncio surge como maracatu atônito.

Entre ambos, a ambiguidade do sexo, a desigualdade da idade, a improvável saudade. Incerteza quase certa que tem o asceta. Insensata palavra que divide mundos e fundos, infinitos e surdos. O mundo real e o fundo do poço cavado a trazer água e lama. No meio, o devaneio de embriagar-se de arte e sentimento, alento ao vento parado, desafio de andar sobre o fio da navalha, sob aquilo que valha. Entre os dois, a dor dilacerada e desbragada que só os trôpegos na madrugada sabem a razão de ser. Como embriaguez sem razão. Quando os dois se encontrarão? Quando farão de mundos tão díspares a diáspora única e espiral? Far-se-ão homem e mulher? Terão a cama como mundo único e uniforme, disforme e lúdico, algoz e súbito? O que faz as pessoas cruzarem caminhos e ninhos? Como juntar, numa única história, dois mundos tão distantes e largados, quase afogados em si mesmos? Lá longe, um ensurdecedor lamento bovino surge como maracatu lacônico.

II

Mas foi numa chuva dessas que cobre o mundo de negror e águas limítrofes entre a vida e a morte que o mundo dos dois se juntou. Uma rês desgarrada resolve fugir quando o derradeiro trovão espocou na caatinga. E correu feito louca, solta ao seu próprio destino. Atrás dela, o vaqueiro galopando em tresloucados descaminhos. E tome galho de mata agreste e espinhosa no rosto, drible de árvore morta e carcaça de boi que desembestou a querer descobrir o que era vida além da chibata do senhor. Louca, a rês invadiu a cidade como enxurrada dos céus e assediou ruas e esquinas, carros e pedestres. Atrás dela, o homem vestido de couro e ouro. A gritar impropérios e dizer-se senhor de impérios. E corre daqui e para ali. Entre os dois, o lixo e limbo sociais. Até que num momento, desses que ninguém sabe de onde vem, o animal caiu cansado e ferido sob a janela da menina que, assustada, tudo via e nada enxergava ou entendia. No corpo da rês, a chaga da adaga. Sobre o bicho, o homem enlouquecido e esquecido da sanidade a disparar facadas e se lavar de bofes e sangue. Em volta, um caos ensurdecedor como um maracatu catatônico.

- Senhor, o senhor quer um pano para se limpar?

A mulher olha para o homem pingando gotas vermelhas de sangue bovino sob a enxurrada da noite, quase madrugada, e vê nele o príncipe das lendas sem princípio, à beira de um precipício. Que une sangues exangues e retintos na união tresloucada sobre paralelepípedos que são púlpitos do amor. No céu, uma grande chuva desagua temporais e aguaceiros. Como milagre, a dor se esvai. Agora, um ou outro que passa ao largo, sem nada entender da cena de morte, corta o derradeiro pedaço da novilha que, ainda quente do medo da morte, descansa sobre a ladeira do desterro. Na casa, o vaqueiro conclui sua viagem.

Cavaleiro solitário

 Por Ronaldo Faria O bar está fechado. Parece há tempo. Mas Hermínio não se dá por vencido. Enquanto houver uma sede por beber, beber-se-á. ...