sábado, 26 de março de 2022

À Roberta Sá

Pandeiro a tocar seu ritmo arrítmico diante da madrugada malfadada que me apraz. Um pedaço de arremedo. Um incansável e inefável sofrer. A dor que bate no pinho o dedilhar que o punho segue os dedos e se refaz. Uma voz a soar a sina. O sonho de um lábio molhado onde o arcanjo voraz sorve sua sede de pecado. Quem sabe a imensidão dos impropérios etéreos que se desdenham nas notas de um mascarado poeta na quarta-feira de cinzas a se desdobrar entre ser ou não ser. Um embriagado viver de memórias inenarráveis e o futuro que não existe por não ter. Há muito a se ver. Brincadeiras de asneiras e as ladeiras de uma Olinda finda no subir e descer. O inglório desdenhar de pesadelos em desmazelo, o zelo de cuidar do que resta de você. Cancioneiro de notas deletérias e etéreas. Um desgrenhado mistério que se joga em sobras devagar. A vagar me faço sem ser.

sexta-feira, 25 de março de 2022

O internacional Sergio Mendes

Por Edmilson Siqueira

Sergio Mendes é um desses artistas brasileiros que, a partir de sua ida definitiva para os EUA, se tornou universal. Fez sucesso em várias partes do mundo e, principalmente, nos EUA, mais do que outros ícones da MPB. Isso porque ele soube fazer mixagem perfeita entre a música brasileira e o pop e jazz norte-americano. Pianista dos bons, já tinha passado pelos EUA, mas de volta ao Brasil, no início dos anos 1960 produziu ótimos discos. Um deles, comandando o Bossa Rio, é antológico: Você ainda não ouviu nada! é o ousado título (ousado para 1964). Nele, Sérgio Mendes juntou Tião Neto, Edison Machado, Raul de Souza, Edson Maciel, Hector Costita e Aurino Ferreira. E nos arranjos, além do próprio Sergio Mendes, estão nada mesmo que Moacir Santos e Antonio Carlos Jobim. 


Aliás, é Jobim o autor de um dos textos que acompanha o LP original. No trecho final, escreveu nosso maestro soberano, sobre Sergio e sobre o disco que ele ajudou a fazer: “Além de ser um intuitivo é um estudioso. Coisa rara, pois, geralmente, os intuitivos ficam só intuitivos e os estudiosos seguem estudiosos. Agora tive oi prazer (e o sofrimento) de colaborar com ele neste disco. E foram mil noites sem dormir e café e cigarros. Depois eu ia levar Serginho até a Praça XV. Comprávamos os jornais do dia enquanto vinha chegando a barca que o levaria de volta à sua Niterói. Não sou profeta, mas creio que este disco, produto de muito trabalho e amor, abra novos caminhos no panorama da nossa música”. E abriu mesmo.  


Mas esse disco fica para um próximo artigo. Hoje, vou falar sobre outro, mais recente, de 2006, quando Sergio Mendes tinha 65 anos (tem 81 hoje), onde ele junta a bossa nova, a boa MPB com o pop-rock, o hip rock e o jazz, num caldeirão que só o bom gosto e o talento de Sergio Mendes poderiam transformar num som agradável e num excelente disco. 


O título é Timeless. E nomes como The Black Eyed Peas, Eryka Badu, Q-Tip, will.i.an, Jill Scott, Mr. Vegas, John Legend, Pharoahe Monch, Justin Timberlake, Chai 2na, Debi Nova e Black Thought estão todos lá, mostrando versões próprias de antigos sambas e bossa novas, dando uma nova (e boa!) roupagem a sucessos que conhecemos e amamos. 


Mas, além desses nomes todos, que podem soar estranhos ao amante da MPB, temos também Gracinha Leoporace (mulher de Sergio) cantando maravilhosamente Berimbau e Consolação, com a participação ainda de ninguém menos que Steve Wonder. E na faixa Fo'Hop (se você leu Forró, é isso mesmo...), a presença do autor, nosso grande Guinga. E a música é um forró mesmo, delicioso por sinal.  


Depois desse disco, Sergio Mendes gravou mais cinco e, aos 81 anos, continua fazendo planos de novas apresentações e gravações, pois continua sendo um artista requisitado em várias partes do mundo. 

Timeless é um disco que, de certa forma, marca uma fase importante na música de Sergio Mendes, através dessa aliança com a música norte-americana dos guetos que estourou no mundo inteiro. Mas é, principalmente, um excelente disco pra se ouvir a qualquer hora. Afinal, Sergio Mendes tem provado, ao longo de mais de 50 anos, que tudo que faz tem qualidade, bom gosto e muito talento.  

O álbum completo pode ser ouvido no YouTube, inclusive com um clip da primeira música, nesse endereço: https://www.youtube.com/playlist?list=OLAK5uy_nTcu86Mttj2FbnyvtT8VZR0NLvS7IkqkI 

quinta-feira, 24 de março de 2022

Pro Zeca Pagodinho em 2003

Fundo de tela de mesa de bar. Do Zeca. O bicho! E-mail para os amigos de mesa. Saudades e cheiros da noite. Cerveja, pinga e vodca. Vida. Enquanto esta durar... Obrigado enquanto este agrado em engradados tiver! Obrigado à vida enquanto esta durar, ou viver! Nas mesas, nas fragrâncias, odores e gostos notívagos. No computador, mistura de lembranças e mansidão. Rompimento da eternidade, da dor e da solidão. 

quarta-feira, 23 de março de 2022

Nat, um verdadeiro rei

Por Edmilson Siqueira 

Em 5 de novembro de 1956 estreava na televisão americana, mais precisamente na NBC, um programa musical, semanal, em horário nobre. Até aí, nada demais, pois todas as emissoras tinham programas musicais, alguns até em horários nobres.  


Só que este tinha algo diferente, além do enorme talento do seu astro principal e apresentador: ele era negro. Seu nome: Nat King Cole. 


A ousadia da rede teve um preço: o programa jamais conseguiu um patrocinador exclusivo e durou pouco mais de um ano. Foi encerrado por iniciativa do próprio Nat que não quis continuar sem o tal patrocinador nacional. 

Só que o sucesso do programa, se não conseguiu tanta audiência, foi exatamente de abrir as portas para muitos outros artistas que, embora tivessem talento de sobra, eram deixados de lado pela televisão por serem negros.  


E alguns desses talentos todos podem ser conferidos num DVD de pouco mais de uma hora, com o filé desses programas. O DVD se chama ""When I Fall in Love / The One And Only NAT KING COLE" e está à venda nos sites por um preço camarada.  


Só que o DVD não é apenas um desfilar de ótimos números musicais, com Nat dando o show de sempre na companhia de grandes nomes da música norte-americana. Ele traz também depoimentos exclusivos dos familiares de Nat - a esposa Maria, seu irmão mais novo e também músico Freddy Cole e suas três filhas, Natalie, Casey e Timolin - além de interessantes comentários de Bob Henry, diretor e produtor da série original.

 

Com isso, além do prazer de ouvir grandes músicas com excelentes interpretações, também vamos nos emocionar com a família falando do pai, do marido, do irmão que, além das qualidades artísticas (ele não era só um dos maiores cantores dos EUA, mas também grande pianista de jazz, que, aliás, foi como começou sua carreira artística) era um ser humano fantástico, alegre, honesto e sempre bem-humorado. 


Pelos artistas que estão no DVD fazendo grandes números ao lado de Nat, percebe-se que seu programa atraiu a nata musical norte-americana. Muitos viam nele a oportunidade de aparecer a um público bem maior e combater o racismo do qual eram vítimas.  


Na parte musical do DVD, depois de três números só com Nat, ele aparece cantando seu grande sucesso Sweet Lorraine ao lado de ninguém menos que Oscar Peterson Trio. Em seguida, para cantar Somewhere Along the Way, Nat tem a companhia do genial Sammy Davis Jr. The Mills Brothers, um conjunto vocal com quatro negros, canta, com Nat, Opus One.  

Um dos pontos altos do show é a presença de Ella Fitzgerald para cantar Too Close for Confort, num dueto sensacional. Mas a melhor surpresa fica por conta de num número no teclado a quatro mãos, com a música Blueberry Hill. Cantando junto com Nat, um garoto prodígio nos seus 12/13 anos: Billy Preston, que viria a ser um dos maiores pianistas do pop e do rock americano, participando, inclusive, da gravação dos últimos discos dos Beatles, em Londres, em 1969. A cópia colorizada dessa apresentação tem rodado as redes sociais por aí, com grande aceitação. 


Ao todo, são vinte números musicais completos, além dos depoimentos e várias fotos extras. Trata-se, sem dúvida, de um documento histórico, que não só homenageia um dos maiores cantores de todos os tempos, como mostra que Nat King Cole era uma pessoa extraordinária, que soube enfrentar o preconceito e o venceu com seu talento, seu carisma e sua bondade. 


Nat morreu cedo, aos 45 anos, em 1965. Os três maços de cigarros que fumava por dia causaram-lhe um câncer fatal.  

terça-feira, 22 de março de 2022

Na espera do fim da espera que vai chegar (a ouvir Wando, no dia da sua morte)

Por Ronaldo Faria

No salão, a mulher fuma quieta num canto, a beber um drinque qualquer. Enfia o dedo no copo, roda o gelo e o leva à boca num gesto onde a língua chupa as gotas que caem sem querer. Ao seu redor, um ou outro casal rodeia de lá para cá, troca carícias, sevícias, sorrisos, mãos leves e bobas, toscas declarações de amor e lábios cruzados a se lamberem e arderem a cada mordida mais forte do amado. Mas, lá no canto, a ouvir o cantar trôpego de um artista de bolero, a mulher desvia os olhares dos homens que se entreolham nas pernas lisas, sobem até os seios e param no meio para acariciarem o umbigo farto. E se envolvem nos cabelos longos e terminam na nuca que se torna carne e desejo, com gosto de sal.

Ela, mulher de tantos loucos a querê-la, apenas catando quirelas jogadas pelo chão do salão no seu andar que requebra ancas e curvas pela madrugada. Seu vestido, vermelho, contrasta com o batom que risca a boca na mesma cor. Seus olhos verdes brilham mais do que o néon que pisca lá fora. Sua risada escancarada, largada, dissonante entre as quatro paredes, é como se chamasse a cada um que a deseja à fria realidade de querer o intocável. Naquele dia, ela não seria de ninguém. Nem no escuro que escondia a lua na penumbra e nem quando o sol viesse clarear a embriaguez do andarilho perdido na sarjeta abjeta que agora o abraça e aquece. 

Naquele dia, sem calcinha, ela estava a viver cada momento como se este fosse apenas um louco tempo em que amantes não se tocam mais, não suam juntos, não se encontram entre camas e janelas abertas à vida, a ouvirem o silêncio que apenas o gemido do prazer e o suspiro do depois conseguem expressar. A mulher-objeto se metabolizava numa metamorfose e, feito borboleta, voava a ver-se finalmente na eterna e última canção. 

                                                   II

Entre o céu e a terra há quimera. Há campos com verde e rios de água clara e cristalina. Há Maria e há Cristina. Gente para dar de tombo. No Nordeste tem pitomba. Existe cavalo que corre louco e sem rédeas. Há goleiro que busca o fim da carreira nas redes. Tem vontade de beber e sede. Garganta seca. Secura no sertão. Existe a cerca que prende gado e gente. No alto do Brasil, tem quem diga “atente”. Ouve-se sanfona e fala-se de Intentona. Intenções de beijos e mãos a correrem a pele que desliza sobre mim. Há o começo e o fim. O luar que pulsa no alto escuro e a escuridão eterna que se abate quando o corpo da gente deixa de ver a prata celestial. Há ternura de gesto. Mansidão em presto. Ódio e verso. Incomunicável voz sobre o fazer ou não. A mulher amada a andar pelas areias que brincam de ondas a lavarem os pés. Uma infinidade de Amélias. Uma pancada de Zés. E assim, a colocar fim no espaço, tem uma estrada a se dobrar lá na frente. E uma coruja vesga a piar em fé. O adeus de um até...

segunda-feira, 21 de março de 2022

Ney Matogrosso interpreta o mestre Cartola

Por Edmilson Siqueira 

A música de Cartola, como bem já demonstrou aqui o Ronaldo, se presta a linda intepretações instrumentais, como no disco Chora Cartola, onde um time de grandes solistas deita e rola nas lindas melodias do mestre mangueirense.  


Mas a música de Cartola também é uma festa para cantores e cantoras. De Beth Carvalho a Cazuza, de Gal Costa a Paulinho da Viola, de Caetano Veloso a Nelson Gonçalves, de Zeca Pagodinho a Luiz Melodia (e muitos outros), todos tiveram o prazer de cantar pelo menos uma música de Cartola.  


E quem não deixou por menos foi o grande intérprete Ney Matogrosso. Pois ele dedicou um disco inteiro ao mestre, em 2002. O disco virou show que andou pelo Brasil e, diferente de outras apresentações de Ney, essa é contida, com figurinos especiais, o que mostra o respeito de Ney pelo autor. 


Numa entrevista, Ney disse que já havia cantado Cartola em shows, e que sempre achou que havia espaço para outras músicas. Sobre o mestre, Ney disse o seguinte: "Cartola é um pilar da cultura Brasileira. Cartola é muito importante no nosso panorama cultural. A gente tem do que se orgulhar, então é bom que a gente saiba de nós mesmos, que a gente saiba disso que nós somos a música mais rica do planeta, o mundo sabe disso, nós não sabemos e não temos essa informação, o mundo respeita a música brasileira e Cartola tá dentro desse universo maravilhoso. Pra mim assim é um privilégio pegar esse repertório do Cartola e cantar. É maravilhoso, muito difícil, porque exige muito de mim, é um show que não tem espalhafato é muito contido na interpretação mesmo." 


O disco navega por 12 músicas de Cartola que são praticamente o filé de sua produção. 

O Sol Nascerá (A Sorrir), parceria de Cartola com Elton Medeiros, abre o disco, seguida de Sim (parceria com Osvaldo Martins); Cordas de Aço; Corra e Olha o Céu; As Rosas Não Falam; Acontece; Tive Sim; a fantástica O Mundo É um Moinho (que Cartola fez para uma de suas filhas que estava tendo um comportamento que ele não aprovava); Peito Vazio (outra parceria com Elton Medeiros) e Senões (parceira com Nuno Veloso).


 É um desses discos que você pode colocar pra tocar a qualquer hora que o prazer de ouvi-lo preencherá qualquer momento. Ney Matogrosso, um dos grandes intérpretes brasileiros, já havia gravado dezoito discos antes de se dedicar a Cartola. Ou seja, já maduro, com 60 anos, colocou sua voz na obra de Cartola, acompanhado não dos grupos aos quais se acostumara em seus shows, com guitarra, bateria, contrabaixo e teclados. Aqui, ele reuniu um time com violão, violão de sete cordas, cavaquinho e um baixo de madeira que dão aquela qualidade à música e a aproxima de sua concepção original. 

No YouTube dá pra ouvir todas as músicas separadamente nesse link: https://www.youtube.com/watch?v=2o5oREcZo5w&list=OLAK5uy_nq66mWYxwtRwnM3vzF-1-OHtpP15GAn4E. É também possível assistir, no YouTube o show ao vivo: https://www.youtube.com/watch?v=BLP9_UFeTiY&list=PLN8pd0LK0ZiicbYJIdHGMujlfsxpwOX26 

Cavaleiro solitário

 Por Ronaldo Faria O bar está fechado. Parece há tempo. Mas Hermínio não se dá por vencido. Enquanto houver uma sede por beber, beber-se-á. ...