sábado, 21 de maio de 2022

Ao Paulo Vanzolini

 Por Ronaldo Faria


Ouvindo Ronda, pós algo depois da primeira edição, vem a parcimônia da chegada insensata da madrugada próxima, aquela que maldiz o tempo perdido num lugar fechado sob a fachada de uma empresa presa na pressa da rotina ínfima e final. E chegam as notícias trôpegas do estar em férias vivo no antes da morte. O desejo benfazejo de deixar tudo e tramitar entre transes e trovas venais. Ao ouvir a Valsa das Três da Manhã, na voz de Paulinho Nogueira, verter letras e palavras sobre um teclado múltiplo e braçal. Coisas de malabarismos de sons e sonhos, brilhos e cores que nem mesmo mesas cheias de brioches conseguem retratar. E medir a glicemia tardia, na trova fatal de brandir um descaso ao acaso em torpor.

Queria tê-la, Maria de um lugar qualquer. Seios enjaulados em sutiãs imantados de dedos e desvelos, desbragados pela voz de um trovador qualquer, criados à pincelada de um poeta que escreve mágicas palavras transversas para somente dizer que não sabe como te amar.

Queria tê-la, Maria de um lugar qualquer. Boca em riso que se expõe ao limítrofe desejo de acariciar teu rosto e aninhar teus pesadelos. E viajar e brandir o férreo passado que sabe que disse na voz a frase errada. Coisa de místicas passagens vis e lineais na margem que divide a felicidade da dor.

Por fim, queria tê-la, Maria de um lugar qualquer, para descobrir novos lençóis em músicas de mi e bemóis. Coisa tangida de verves e frágeis brincadeiras de quintais e fundo de casa e pinturas de muros próprios. Tudo feito o trejeito que busca o corpo primeiro e secular, como um passado que teima em voltar.

sexta-feira, 20 de maio de 2022

Albano Sales e seu ótimo Retrato Brasileiro

Por Edmilson Siqueira 

Há um bom tempo escrevi sobre esse disco na Revista Metrópole. Fui ouvi-lo ontem e ele me causou a mesma e ótima impressão. Então resolvi sugeri-lo aos parcos leitores deste Musicoólatras, mesmo sem saber se ainda dá para encontrá-lo por aí.  


Trata-se do CD "Retrato Brasileiro" do pianista Albano Sales, lançado em 2008 e que se mantém atual até hoje e vai continuar sendo ouvido por aí para sempre. 



Albano tem uma trajetória expressiva como músico. São-carlense de nascimento, mas radicado em Campinas (SP), estudou com nomes como Almeida Prado e Koellreutter, formou-se na UNICAMP, lecionou no CLAM, a escola de música do Zimbo Trio, tocou com Airto Moreira e Rosa Passos, trabalhou em Los Angeles e já lançou um segundo trabalho - "Experimental"- que um dia também será assunto desse blog.  


 "Retrato Brasileiro" começa a agradar a quem se dispõe a ouvi-lo pela capa do CD. Ao invés da tradicional foto do artista, posado ou tocando, uma aquarela de Manlio Moretto que se sobressai pela rara beleza e simplicidade com que retrata a cidade de Penedo. Albano aparece ao piano em uma pequena foto e, bem maior, numa caricatura de Egas Francisco, ao lado de Jorge Oscar.  


E quando se começa a ouvir, ao prazer visual da capa se junto o auditivo. Logo de cara, num arranjo cuidadoso, entra "Viola Violar" (Milton e Fernando Brandt), cuja melodia, feita num táxi segundo o próprio Milton, é enriquecida pelo vocalise de Leo Loebenberg. A música inicial, tocada com perfeição, é o prenúncio de que o que vem depois seguirá na mesma toada. "Rio Paraná" (Olmir Stocker), "Todo Azul do Mar" (Flavio Venturini e Ronaldo Bastos) e "Receita de Samba" (Jacob do Bandolim) nos são apresentadas com maestria, com ótimos arranjos e algum improviso que, claro, não poderia faltar a um pianista que envereda pelos caminhos do jazz tranquilamente. 


A partir da quinta música e até a última nos deparamos com o Albano compositor.  

 "Chorando na Esquina" envereda pela modinha moderna e enternece com seu lirismo; "Freeway" mistura uma abatida mais acentuada com um sopro jazzístico, dando margem a malabarismos da guitarra e da bateria como um bom conjunto de jazz faria.


A música seguinte, "Moon Shadows" já tem uma concepção diferente: é lenta, meio soturna, sabe a fim de noite com seus pensamentos e mistérios. "Tempos Melhores" segue o mesmo caminho introspectivo ao sabor da harmônica de Rodrigo Eisinger. 


As três últimas faixas do CD são os três movimentos da "Sonata para Violino, Violoncelo e Piano Jazz Trio – Allegro (Riso), Adagio (Perdas) e Allegro (Porvir)". É, acho eu, o ponto alto do CD: nele Albano aparece como um compositor maduro, enveredando pelo clássico sem perder a referência urbana, a influência da MPB e do jazz, enfim, criando uma peça que acaricia os ouvidos pela qualidade sonora e melódica. 

O CD está disponível para se ouvir em várias plataformas musicais da rede e ainda pode ser comprado nos bons sites do ramo. 

quinta-feira, 19 de maio de 2022

Ao Mário Adnet

Por Ronaldo Faria


Ouvindo Mário Adnet, bateu (para variar) saudades do Rio de Janeiro (e tantos e outros tantos meses). Bebendo Smirnoff Caipiroska (é horrível, mas vicia - juro nunca mais comprar), lembro-me das dores do ciático, para lá de dolorosas hoje pela manhã, que eu troquei por umas doses nesta noite/madrugada ao invés de um Voltaren. Preciso transformar as minhas hérnias de disco em um CD de Bossa-Nova. Com luzes trocadas por lâmpadas fluorescentes (no tom azul), tudo parece mais incerto e perverso (na finitude blasfêmica da interinidade metafísica da vida).

Mas seja o que “Deus” quiser, principalmente depois de editar 40 mil mortos sob tremores e dores paquistanesas, onde para os mortos nem há mesas. E fica uma pergunta: como terá sido a morte de cada um? Que terão pensado no último suspiro? Terão tido, aos milhares, o último suspiro?

Inspiração é a ação transfixa ao quadrado da imaginação e da inanição. Vem e volta, vem e vai, desvirgina e vaticina. É o que é. E se basta. Vasta, lembra que o homem rimou no ônibus o que um atônito passageiro não poderia repetir. Aliás, em casa, nem sabe direito o que ele disse ou diz. Nem lembra da prosa airosa ou da poesia para uma meretriz. A letargia das letras o faz simplesmente um eterno aprendiz. Pena que deixe fugir, tal qual um peixe em verniz, letras e sonhos, num esmeril que não solta limalhas (vida aos canalhas). No máximo, uma e também outras falhas. Lá fora, o azul do dia virou um incandescente negror, refletido em néons e tons de asfalto. Quem sabe, numa esquina, um assalto. No costado, o vaso de planta que não dá flor. Vai meu último cigarro. Amanhã, quem sabe, pigarro. Na música, a pergunta: “Cadê Mimi?”

Transpiração é a vazão performática e asmática da insensível solidão. Fica e sai, vomita e cai, faz-se graça e gracejos, bocejos talvez. No CD, tempo do Tom vivo. Tempo bom, em Jobim. Praguejo e ciúmes em segredo. Do corpo, o degredo. Da graça, a desgraça do ensejo. Da saudade, a vermífuga palidez de quem caiu sobre a mesmice inexistente de uma segunda sem feira. Pura asneira. Sordidez e verso transverso e maléfico. Quisera todos os malefícios do mundo fossem o toque de um teclado louco e rouco. Quisera as almas subissem feito fumaça cinza e cheirosa, com cheiro de Índia lutando contra uma fronteira cheia de tremores tectônicos e afônicos, pedindo para ficar um pouco mais sobre a terra miserável de um país fugaz. Mas qual, a Terra não dá lar ou paz. No máximo vários ais...

Reação é como canção simbiôntica na busca ínfima da sua própria ótica, no afã que apraz. Sobe e desce, geme e desvanece, cria impropérios na ilusão solerte e solta um jorro de gozo e esperma entre mãos, bocas e vãos por onde possa escorrer. E quanto universo, e tantas mulheres morenas e tântricas, e porventura, na aventura da vida, lembranças brandas de uma infinidade de barcos parados no mesmo cais. E assim continuamos: contínuos de nós mesmos, calejados de prósperos impropérios e prosopopeias, certos de que apenas vale o prazer.

No final, não haverá muito que fazer ou ater. No máximo, em plena madrugada, aquiescer. Talvez um pedaço do universo. Talvez a certeza de ser um ser pequenino e perplexo, olhando para o próprio plexo. Meio perdido, um tanto esquecido e outro tanto, feito a mais cândida criança, apenas querendo ser querido no espaço partido. Ficam aqui o sinhô e o próprio umbigo. Alguém aí tem um fogo ou um figo?

quarta-feira, 18 de maio de 2022

A insustentável leveza do sax de Paul Desmond

Por Edmilson Siqueira 

"Acho que, no fundo, eu queria soar como um martini seco". 

"Sou o saxofonista do quarteto de Dave Brubeck. Você pode me distinguir porque, quando não estou tocando - o que acontece com surpreendente frequência - fico encostado no piano." 


Assim Paul Desmond, o compositor de "Take Five" e, claro, saxofonista do quarteto de Dave Brubeck por 17 anos, se definiu em duas ocasiões, com um humor típico de Woody Allen. A citação de "Take Five" se faz necessária porque o disco onde ela foi gravada foi o primeiro álbum instrumental a ultrapassar o milhão de cópias vendidas. 


Paul Desmond nasceu em San Francisco, em novembro de 1924. Seu pai era organista e arranjador e tocou em cinemas na época dos filmes mudos. Seu sobrenome era outro. Desmond, disse ele, encontrou numa prosaica lista telefônica. 


O disco que estou sugerindo desse grande saxofonista é "Late Lament", gravado entre setembro e outubro de 1961, sendo que uma faixa extra colocada apenas no CD ("Imagination") foi gravada em março de 1962. 

O texto do encarte, escrito por Roberto Muggiati, aborda um pouco mais o sucesso "Take Five", embora essa música não esteja no disco. Serve, claro, para definir o gênio de Paul Desmond e também seu ótimo senso de humor, próprio de sua privilegiada inteligência. Diz Muggiati: "Na verdade, a composição em 5/4 (o tempo rítmico de 'Take Five'), é uma demonstração da impressionante capacidade que Desmond tinha de suingar nos ritmos mais estranhos ao jazz, como o da valsa, o da bossa nova e os da tradição oriental. Às vezes Paul oferecia outra explicação para 'Take Five'. Fumante compulsivo, ele dizia que concebeu o tema para que, durante o solo de bateria, tivesse um tempinho para umas tragadas." Paul morreu de câncer do pulmão, em 1977).  


Gravado com uma orquestra de cordas, o disco percorre um caminho aberto por Charlie Parker que, à época, andou entortando o nariz dos mais puristas do jazz. Só que Charlie transformou o chamado "white strings" num espaço novo e criativo do jazz. Coisa de gênio, claro. 


Trata-se, aqui, de um disco romântico, com um repertório bem a gosto de Paul Desmond. Há clássicos como "My Funny Valentine" e "Body and Soul" e outros menos conhecidos como "I Should Care", I'll Wind" e "Like Someone in Love". 


Muggiati, no texto do encarte, define bem o disco: "Aqui e ali, nos solos e nos arranjos, uns toques elisabetanos ou barrocos - tudo soma para enriquecer a sofisticada atmosfera que cerca Paul Desmond neste álbum cheio de amor e serenidade." 

Em outro trecho que merecer ser lido, Muggiati conta que "certa vez, perguntado onde se encaixava entre a abordagem vertical, ou harmônica, e a abordagem horizontal, ou melódica, Paul Desmond respondeu: 'Acho que vocês poderiam me chamar de diagonal'.  


Assim, diagonalmente, diz Muggiati, "vamos sorver os 43 minutos e 3 segundos de Paul Desmond com todo o sabor cool de um martini seco. E sentir a insustentável leveza do sax". 

terça-feira, 17 de maio de 2022

Ao Geraldo Azevedo

Por Ronaldo Faria

“Quem tem amor, pode rir ou chorar”. 

Vem me amar e me achar, na beira-mar. Vem correr nos segredos e degredos da vida. Vem se descobrir semente a brotar. Senão, seja feito demente a se debulhar de carícias e sevícias – onde tiver que estar. No meio de tudo, a insidiosa senhora a transpirar saudades e versos mil. Na filigrana que existe entre a alegria e a tristeza, um grama a mais. E uma vastidão imensa de crenças e descrenças, saudades inauditas, verdades desditas. Canções a voar pelos ouvidos, unções a cobrirem as feridas, ações a se espelharem em espelhos incrustrados em tetos e se espalharem pelos corpos utópicos transversos em músculos e tetas. Na madrugada suada e sem nexo, perplexo o poeta vê-se amplexo a acreditar em tudo e crer no sexo. Nesse pouco que há, haverá por quê?

Vem me perder e ser, no nosso além-mar. Vem viver em degredo de futuro, em segredo permanente na semente morta do augúrio. Vem saber onde andar e se ater. Senão, seja somente um descrente sem verso ou repente – onde a fotografia se mistura à antropofagia de morrer no eterno querer. No meio de tudo, tubérculos e amplexos desejos. No quase nada que existe entre o passado benfazejo e o desejo terminal. Como versos a escreverem blasfêmias para as fêmeas que se deitam tropicais aos marinheiros quase animais. Na noite que já morreu, deletérios sonhos de amor. Um náufrago maltrapilho e bêbado a suar com os raios de sol que teimam em dizer-lhe que o além, num porto qualquer, o reencontrou. E se desvaneceu de paixão, tesão e remissão.

Vem me antever, me descrer, no oceano a se fazer dragar e se drogar em tempos de verão. No prato a queimar no fogo, frango e estragão, na infinda sensação. No fim de tudo, cheiros mil, fome saciada, saudade amarga, brincadeira desfeita de estrelas e drama. No meio de tudo, a trama. A torrente de areias e ondas no labirinto de outra história. Degredo aqui, segredo ali. No meio de tudo, um mar sem começo e sem fim. Talvez um alvoroço rouco e destrambelhado que vem e vai, um desvão nas notas da canção que caem. Uma cachoeira banida das pedras que deixa seus pingos descaírem incrédulos e imensos, em incensos, nos credos sobre amantes fechados no quadrado e achados e perdidos num balcão qualquer. Ao longe, um mendigo delicia-se à colher.

segunda-feira, 16 de maio de 2022

Karen Souza, uma grata surpresa

Por Edmilson Siqueira 

Quando você bota pra rodar o CD de Karen Souza sem nunca ter ouvido falar da moça (o que ocorreu comigo), surgem várias dúvidas. Pelo nome e principalmente pelo sobrenome poderia ser uma brasileira. Pela música, jazz essencialmente, ela seria norte-americana. Pela produção do CD, muito bem cuidada, com belas fotos, poderia ser famosa. Aí você vai no Google e descobre que Karen Souza é argentina, que ela começou com outro tipo de música e só depois foi seduzida pelo jazz. Essa sedução provocou um retiro na Califórnia onde sua alma de compositora aflorou. E daí foi concebido o disco "Hotel Souza", uma joia na voz ‘caliente’ e macia de Karen Souza.


Para não dizer que jamais a tinha ouvido, descobri que ela é uma das cantoras que fizeram a série Bossa n' Stones, com as músicas dos Rolling Stones cantadas em ritmo de bossa nova. Tenho os dois CDs da série, mas o nome dela aparece em apenas uma das músicas, embora tudo leve a crer que ela canta em todas ou quase todas elas.  

Segundo a pequena biografia publicada no Google, Karen "começou sua carreira sob vários pseudônimos e colaborando com diversos produtores de música eletrônica, chegando a fazer parte de numerosos sucessos de música House, pelo seu selo Music Brokers, tais como as versões da Radiohead, "Creep", bem como "Do You Really Want to Hurt Me" e "Personal Jesus". Estes trabalhos foram editados originalmente numa série chamada Jazz and 80s. Foi durantes esta época que Karen começou a amar o Jazz e começou a fazer composições para o seu próprio álbum. 


Em 2010 ela passou vários meses em Los Angeles escrevendo canções com a letrista Pamela Oland e gravando os vocais com o produtor da Disney, Joel McNeely. O disco "Hotel Souza" foi lançado em setembro de 2012. 


Pois é esse disco que eu encontrei por aí (não me lembro onde comprei) e que sugiro pra quem gosta de um jazz intimista, num disco muito bem-produzido e com umas pegadas de Diana Krall.  

São 11 faixas, a maioria de autoria dela mesma, em parceira com Dani Tomas e Pamela Oland ou Joel MacxNeely e Maxima Pera Renauld. Mas há também dois standards jazzísticos: "My Foolish Heart" (Ned Washington e Victor Young) e a maravilhosa “Dindi”, do nosso Tom Jobim, na versão em inglês de Day Gilbert.


O CD está à venda nos bons sites do ramo e pode ser ouvido integralmente no YouTube: https://www.youtube.com/watch?v=YWbrfwha_wU 

Cavaleiro solitário

 Por Ronaldo Faria O bar está fechado. Parece há tempo. Mas Hermínio não se dá por vencido. Enquanto houver uma sede por beber, beber-se-á. ...