sexta-feira, 22 de julho de 2022

Valse-Serenade

 Por Ronaldo Faria

Carta amarelada pelo tempo, ausência de vento e luar. Na esquina, um violão dedilha a urdida poesia que sai pela noite a voar. Há canção e unção para fazer a criança ninar. Na varanda que se debruça na rua, um casal troca olhares e tece juras para quando o tempo não mais tardar. De malas prontas, a saudade se prepara para viajar. Há um pedaço de beijo jogado ao lado dos lábios, um abraço largado feito fado e um passo perdido no chão ensanguentado da dor. A tudo isso chama-se amor. Uma receita de condimentos e ervas que suam à panela gelada para no olfato exalar lembranças das crianças que nunca fomos. No forno, queimando entre chama e carvão, uma receita de volta escrita feito oração.

Coloque uma pitada de segredo sobre o degredo que a partida do amor faz e fará.

Encha de canções que marcaram, lugares que ficaram e madrugadas que se achegaram.

Cozinhe tudo em fogo brando, sem a panela fechar. A inexata tristeza far-se-á queimar.

Polvilhe a massa do passado com recordações felizes. Deixe descansar num canto do coração.

Não esqueça de mexer sempre com grãos de fotos, cartas, frases, cheiros e sentidos.

Frite qualquer pedaço de rancor no óleo quente. Deixe queimar de propósito e se desfaça de todo ele. Lave a frigideira.

Corte bem pequeno o desejo de voltar. Ponha tudo num pote separado e rotule para, no futuro, saber se ainda quer utilizar.

Descasque com faca afiada o que não foi bom. Em tiras curtinhas. Mas, cuidado para nessa tarefa não se cortar.

Pegue um pouco de pimenta, daquelas que aquecem os sonhos, e jogue dentro da panela que agora estará em ebulição.

Tampe e espere o tempo que for. Quando, lá fora, a primeira chuva chegar, vá ao jardim e colha lírios, rosas e jasmim.

Decore o prato com exatidão e destreza. Ponha uma toalha florida à mesa. Não esqueça o vinho e a sobremesa.

Vire tudo o que está na panela numa tigela branca e reluzente. Daí, saiba, há de voltar tudo o que estava ausente.

Depois, ao ouvir a amada (ou o amado de fato), abra a porta devagar, respire fundo, erga os olhos, estique os braços para um abraço apertado e deixe a vida entrar.

E, claro, bom apetite ao que vier e restar...

quinta-feira, 21 de julho de 2022

Um trio brasileiro e universal

Por Edmilson Siqueira 

“Produzir, sem medo de ousar, a boa música instrumental brasileira”. Assim o Aquarela Sonora encara seu trabalho. Com piano, bateria e contrabaixo, o trio tem uma formação clássica que nos remete, logo de cara, a um trio de jazz ou aos trios que desvendaram inúmeros caminhos da moderna MPB nos fins dos anos 50 e início dos 60 no bojo da bossa-nova. E a relação com o jazz e a bossa-nova, influência mesmo dessas manifestações gêmeas, são visíveis em todo o CD "Estação Suburbana", que o trio lançou em 2003 e que vai continuar sempre atual. Ike Siqueira (não é parente meu, infelizmente) é o baterista do conjunto, Paulo Miotta (piano) e Paulo Signori (baixo acústico) completam essa turminha que nos brinda com um disco prenhe de excelentes composições. O trio é daqui de Campinas, onde vivo, mas poderia ser do Rio, de São Paulo ou de Nova York.   


Com exceção de "Caminho de Minas", escrita pelo produtor do CD, Marco Ferrari, todas as outras 12 músicas são de Paulo Miotta, que já pode ser considerado uma das mais gratas revelações da música instrumental brasileira dos últimos tempos.  

O CD é suave e forte ao mesmo tempo, equilibrando muito bem a brasilidade das composições com elementos que a internacionalizam. Remete, em alguns momentos, a Egberto Gismonti e suas aventuras ao piano; outras ao lendário Zimbo Trio, que encantou toda uma geração. Mas, qualquer que seja a lembrança, a música do trio tem uma criatividade difícil de se encontrar por aí. 


Um dos aspectos mais interessantes do trabalho é que, a partir de uma formação tradicional, o Aquarela consegue buscar caminhos que dão a ele uma aparência moderna, mercê as excelentes performances de Paulo Miotta ao piano. Bateria e contrabaixo aparecem na medida exata da contribuição que podem dar à música, sem exageros ou exibicionismos, coerentes com a proposta de fazer música pelo prazer e pela beleza, sem abrir mão da ousadia. No caso, ousar é saber. 

É saber, por exemplo, que a riqueza da música brasileira reside na simplicidade dos temas que a sensibilidade pesca por aí, que a miscigenação ocorrida por aqui, com os elementos africano e índio se misturando ao europeu, resultou num povo de extrema musicalidade. E que essa musicalidade atravessa fronteiras derrubando barreiras pelo mundo afora e colocando o músico brasileiro numa posição de destaque em qualquer país. 


O CD do Aquarela Sonora é um trabalho que pode ser classificado de excepcional, mas que, infelizmente, pouco toca nas rádios brasileiras. Se encontrar o CD por aí, não titubeie: você estará comprando 47 minutos e 49 segundos da melhor música instrumental brasileira.  


Ainda há alguns exemplares do Estação Suburbana por aí, nos bons sites do ramo. E ele pode ser ouvido na íntegra no Spotfy em https://open.spotify.com/album/0fSDslNADuHqpbPcGP0dGQ . 

quarta-feira, 20 de julho de 2022

Ao Belchior

 Por Ronaldo Faria

Recomeço ao avesso. Corpo vestido de vida. Entre unguentos e feridas. Emoções urdidas e salivas ardidas. Beijos a se perderem no tempo. Nas esquinas sobrevive o vento. Um veleiro talvez a singrar o rio. Na ponta das águas há um mar. Um poeta a cantar. Um trovador a amar. No fim do todo, a certeza despudorada de que existe saudade tragada de tudo. E tem corações largados. Tem casais em orações perpétuas e finais. No caminho, pequenas cruzes que levaram anjos para o céu. Homens enlouquecidos à porta do bordel. Mulheres a deitarem os corpos no colo do desterro que está aquém do chão. Meu pedaço de universo que se atira além do ar.

Avesso do recomeço. Vida vestida de corpo e copo. Feridas que são unguentos. Ardidas emoções e urdidas salivas em sálvia. Tempo a se perder nos beijos. Vento que às esquinas vive. Rio que se deixa ao veleiro singrar. Um mar, sem ponta, às águas. Cantoria de poeta. Amar de trovador. A saudade despudorada do fim que se traga de tudo para o todo ser. Largados corações. Finais casais em perpétuas orações e porções. Anjos, do céu, caminham entre as pequenas cruzes que levaram. Na porta dos enlouquecidos, um homem e o bordel. Aquém do chão, desterro de mulheres em seus corpos deitados. No universo que se atira, um pedaço meu vai além do ar.

terça-feira, 19 de julho de 2022

A ótima música de Marcelo Onofri

Por Edmilson Siqueira

Marcelo Onofri é mais um desses geniais músicos que tiveram a cidade de Campinas e o curso de Música da Unicamp como referência por um tempo. Gravou alguns CDs, todos aclamados pela crítica. O primeiro deles foi em 2003, e se chama "Dança". Esgotou e é difícil até de achar nos arquivos das redes. Eu ganhei uma cópia do amigo Osny Chaos, dono da histórica Hully Discos, a lojinha de raridades e de ótimos bate-papos no centro de Campinas que hoje já não existe mais.  

 Músico da noite e do dia, Marcelo juntou um belo time para fazer companhia ao seu piano e à sua voz. Lara Ziggiatti no violoncelo, Anderson Alves na clarineta, Gilberto de Sylos no contrabaixo, fretless e baixo elétrico e Ramon Montanheur na bateria e percussão. Além desses, que formam o quinteto básico, Marcelo chamou outros amigos para compartilhar com ele o prazer de tocar e cantar. Tanto assim é que logo na segunda e terceira músicas do CD encontramos André Sanches na viola e Márcio Sanches no violino. Primeiro eles tocam a “piazzoliana” "No Velho Texas" e depois a bela "Bel", ambas do próprio Marcelo.  


Mas, embora seja um compositor inspirado, Marcelo se entrega de corpo e alma a grandes standards da MPB. A música que abre o CD, por exemplo, é um surpreendente "Um Trem para as Estrelas" (Cazuza e Gilberto Gil), que ele canta tranquila e prazerosamente. Outra surpresa é "Acontece", um dos clássicos de Cartola, que Marcelo apresenta só com o piano e sua voz, realçando a simplicidade e a força de um compositor genial.  

Já em "D.B.B.", a música seguinte, as raízes eruditas e populares de Marcelo se afloram. A sigla significa "Divertimento Barroco Brasileiro" e pelo nome já se pode prever a mistura que acontece, onde não faltam o chorinho e o clima dos salões do tempo do império. "Borda de Lenço" poderia ser confundida com alguma música perdida do Clube da Esquina, mas é de Marcelo também, com mais uma boa letra.  

O som apenas instrumental volta em "Tio Juba", também de Marcelo, homenagem às suas lembranças de infância e com o preciso e precioso socorro vocal de Catina de Luna. E embora pudesse encerrar o disco com mais composições suas, Marcelo deve ter preferido se jogar aos arranjos e à sua ótima performance ao piano para mostrar "Caminhemos" (Herivelto Martins) que aqui nos é oferecida com uma introdução de nada menos que uma suíte francesa em dó menor de Johan Sebastian Bach. O CD termina com a valsinha "Quem Sabe" do nosso Antonio Carlos Gomes com letra de Francisco Sampaio executada a caráter, com a presença da soprano Eliane Coelho, da Ópera de Viena.  

A quarta música surpreende: a singela valsinha de Sivuca e Chico Buarque, "João e Maria", ganha um arranjo especial para o solo de violoncelo, enveredando por caminhos nunca dantes imaginados pelos seus autores quando entra o piano de Marcelo. Na próxima, "Eu, Dança", Marcelo foi buscar a afinada voz de Catina de Luna para lhe acompanhar, além de tascar um trecho de Fullgás, o sucesso de Marina Lima que ela compôs com Antonio Cícero. Nessa música, aliás, podemos ter uma espécie de síntese da obra de Marcelo Onofre: a música flui naturalmente, o arranjo é bem cuidado e a letra é dessas que dá vontade de cantar junto.  

Resumindo: quem encontrar o CD por aí não hesite em comprar ou tentar arranjar uma cópia. Vale a pena. 

segunda-feira, 18 de julho de 2022

Banda de Pau e Corda

 Por Ronaldo Faria

Terra terral, derradeira estrada matinal e marginal. Talvez um tempo, uma têmpora, um final. Pouco ou nada a se desgarrar do lugar. Um derrear de galope e trotar. Seara esquecida entre pesadelos e desmazelos do passado. Na incerta canção, a unção de um cantar que se desdobra entre as vozes caladas e as urdidas paixões de um nunca poder chegar.

-- Vai boiadeiro, corre sobre o cavalo o tempo que termina sem intervalo. Segue entre cinzas de um quente cansaço forte e torpe. Do queimado do mato far-se-á o verde do regaço onde o corpo nu da mulher se entregará ao amado.

Terra letal, inimaginável mãe de tanto lugar. Quem sabe um alpendre além do sertão, uma cantoria largada entre um abraço desbragado e um senão. A inércia que vem depois do amar, feito ilha que vive em desassossego além-mar. Nas ondas de um canavial a brigar com o vento, a canseira de guardar a derradeira e primeira saudade que nunca se dá.

-- Vai andarilho em cima de um tordilho que corre na poeira o trágico lamento da anunciação que não se fará. No colo da amada, arfada de tanto querer e criar, a infindável canção. Acordes que se dão ao acordar desmesurado do dia.

Terra do amante, vendilhão de corações e unções. Na caminhada que para diante do nada, o alforje se enche de poesias e promessas. Agruras e bromélias verdejam os cantos da estrada. Há cheiro de mata virgem e virgem desvirginada. Logo além dos olhos, um céu de azul calcinado. A cobrir os pés, um chinelo cheio de pó e de muitos calos.

-- Vai poeta na seca que se atira para longe do rio que brota brancura da areia e do calor. Vai calar teus versos profanos e mundanos no mundo de meu deus. Lá do alto, altaneiro e servil, teu demônio sucumbirá em fogo no frio do tempo senil.

sábado, 16 de julho de 2022

Bossa Nova

 Por Ronaldo Faria

Bossa Nova envolta de passado e perdão, medo e promissão. Um prédio gigante e pequeno perdido num meio de esquina e senão. Prepare o violão que vem aí a canção.

Virão também jogos de botões, cobertas de tacos a esconder em cavernas o medo defronte, caminhadas até o egrégio colégio sem cortinas e suas bandeiras a subir e descer.

De certa feita, afônicos, chegarão amigos depois de chuvas que irão transbordar ruas e becos, cantões secos de tanto esperar. Uma ou outra bomba explodirá andar abaixo.

Na banheira de recordes sem respirar, papéis higiênicos colocarão fogo no vão e respiro. Um restante de suspiro vaticinará o cheiro de creolina que empesteia e sublima o ar.

Na rua, litros de leite descansam em cada portaria, Cara de Cavalo foge entre telhados e muros, uma lotação para em retidão. Uma ou outra pipa voa os céus para o além e senão.

Perto, senhor de si e com apelido de rato italiano, um escoteiro jura lealdade ao mundo. No fundo infindo da infinita finitude tardia, a repetição de saudades em meio a vaga orgia.

Ao telefone de fio, na insensatez do amor, horas se perdem para um futuro perder absoluto. Nada mais se saberá no vazio bem-querer: nem risos rasos, nem perdas, nem soluços.

Na pizzaria cercada de gatos pardos e velas que brilham entre fumaças de cigarros e goles de gim, casais decidem esquecer que até o amanhã vindouro não há muito mais a se querer.

No quarto que dá para o mar, poesias arvoram em nascer. Sabe-se lá de onde, irão serpentear ruas e rotas, bêbados e amantes, quadriláteros que de tão perto se farão mais distantes.

Então, quem sabe, a fuga far-se-á o único destino à eternidade. E noites de pesadelos, amores em desmazelos, mil expressões que dobram cabos de nenhuma esperança a naufragar.

Ao som da Bossa Nova, vem o Rio, chega a Zona Sul, as águas sempre gélidas e claras, um iluminar crescente de cores e faróis. Daqui o poeta espera ainda o derradeiro dos sóis.

sexta-feira, 15 de julho de 2022

Os eternos Rolling Stones

Por Edmilson Siqueira 

Se você é um tanto quanto jovem, gosta de rock e já ouviu algumas músicas com os Rolling Stones, por certo tem curiosidade de conhecer um pouco mais desses eternos roqueiros que, embora sem três dos originais, ainda lotam estádios por aí.  Em 2002, foi lançado um CD duplo, com 40 músicas das mais expressivas do grupo, num trabalho de compilação que passou por várias gravadoras.  


Ali está um resumo, pelo menos até 2002 (20 anos depois os caras ainda estão aí, produzindo e fazendo shows) de tudo que eles fizeram em 40 anos (40 anos em 2002, bem entendido) de carreira. O CD é meio caça-níquel, meio relíquia, pois das 40 músicas apenas quatro eram novas naquele ano. Mas é uma delícia botar pra rodar.  


O primeiro disco só tem clássicos dos anos 60. Começa com "Street Fighting Man", de 68 (não haveria ano mais apropriado) e segue com "Gimme Shelter", de 69, passando pela inevitável "Satisfation", de 65. Todos os hits dos anos 60 estão lá, inclusive "Let´s Spend the Night Together" que a pudica televisão dos EUA, em 1964, os obrigou a cantar, em 1967, "Let´s Spend 'Sometime' Together".  

Não poderia faltar a enigmática "Wild Horses" ou a eterna "Ruby Tuesday" e "Paint It Black", que se tornou música-tema de uma ótima série chamada "Vietnã" que andou passando na tv brasileira há uns anos, mas não fez qualquer sucesso.  


Para quem que, como eu, discutia nas rodinhas nos intervalos das aulas do velho Culto à Ciência quem era melhor, Beatles ou Rolling Stones, o CD duplo vem a calhar. Claro que a discussão jamais terminou e ninguém chegou a conclusão alguma. Mas era ótima achar "Satisfation" melhor que "I Wanna Hold Your Hands", ou "If I Fell muito melhor que Under my Thumb". Mas "Simpathy for the Devil" era imbatível, principalmente depois que soubemos que, dizia a lenda, Mick Jagger a compôs inspirado nos batuques que ouviu nos terreiros de umbanda e candomblé brasileiros. 


O segundo disco já começa com um sucesso de 81 e quem vinha abrindo muitos shows dos Stones nos últimos anos: "Start Me Up". E também está cheio de clássicos dos anos 70 e 80, como a delicada "Angie" (composta por Keith Richard para uma enfermeira que o tratou numa clínica de desintoxicação) ou o ‘hino’ "It´s Only Rock’n’Roll". Ou ainda as embaladas "Mixed Emotions" e "Love Is Strong". 


Enfim, quem curtiu os Stones desde a década de 60 como eu, tem em mão uma coletânea irrepreensível, num CD cuja produção é típica de pop-star: encarte com várias fotos das inúmeras fases pelas quais eles passaram e com as diferentes formações. Hoje, Mick Jagger e Keith Richards foram os únicos que sobraram da formação original, que hoje é completada com Ron Wood, e já teve Brian Jones e Bill Wyman quando começaram; Mick Taylor na segunda formação no lugar de Brian Jones, depois Ron Wood no lugar de Mick Taylor. Com a saída de Bill Wyman, o grupo ficou restrito aos outros quatro, até a morte do baterista Charlie Watts em agosto do ano passado. Mas os outros três - Mick Jagger, Keith Richards e Ron Wood - contrataram um baterista e continuam por aí. Por enquanto. E sei lá até quando. 

Os CD duplo está à venda nos bons sites do ramo e pode ser ouvido na íntegra no YouTube em https://www.youtube.com/watch?v=DAWyIvcGPIs .

quinta-feira, 14 de julho de 2022

Larica musical (ou essência sem sal) ao Pixinguinha

 Por Ronaldo Faria

Sertão, com alazão ou não. Boa noite. Boa vida. Morte e remissão. Paixão. Menino a correr seus pastos com caminhão de madeira e senão. Suas queimadas e vestes pequenas para uma vida de sofrer e dor. Coisinha pequena e de torpor. Cabeçudo, quando no Nordeste cabeça grande é sinal de inteligência. Na premência da vida, carência de lembrar. Coisa boa e sinal de chegar. Na feira, cheiros e coisas, Quasimodo de derrear. Sertanejo no passado, carioca ao acaso, alguma coisa paulistana no descaso. Vestígios de estranhos prazeres embriagados e noturnos afazeres: escrever, sofrer, relembrar além do bar e ser. No mais, caminhadas ofegantes e arfadas, garfadas de bacalhau que já não existe, subscritas saudades inauditas. No som de fundo, Pixinguinha a sorver o tempo profundo. O que assim não o for, faça-se imundo. Desça aos córregos seus ralos infindos e profundos. Aonde chegar, se desfaça inaudível e em largar. Daqui, sorverei apenas o mais clérigo jamais ser. No som, Elvis que não está aqui teima em não morrer...

quarta-feira, 13 de julho de 2022

O grande samba-raiz de Monarco e seus amigos

 Por Edmilson Siqueira 

 Todo mundo sabe que o samba agoniza, mas não morre, como disse o compositor Nelson Sargento, num samba memorável. Vira e mexe, sem trocadilho, o samba deixa a agonia para imperar solene na voz de uma nova geração de sambistas.  


Mas, para viver há tanto tempo e superar todas as agonias, muita gente batalhou por ele, criou escolas de samba e escreveu grandes músicas que embalaram o povo, seja na avenida em desfiles, seja nos shows em teatros e outros locais ou seja ouvindo mesmo no rádio ou no celular e computadores pelos streaming por aí. 


As grandes escolas de samba são, em grande parte, responsáveis pela eternidade do samba. Elas reúnem dois tipos de criadores que mantêm a chama, seja a Ala dos Compositores que fazem o enredo que a escola vai cantar na avenida, seja a Velha Guarda, que já compôs e continua compondo grandes sambas que, muitas vezes, o país inteiro canta.  


Uma dessas grandes escolas é a Portela que mantém uma Velha Guarda das mais criativas. E tanta inspiração junta acaba provocando a produção de discos para registrar a produção desses baluartes samba. 


É o caso de um disco gravado em 1980 pelo Estúdio Eldorado. A partir de um grande compositor ligado à Portela, a gravadora produziu uma excelente amostra do que esse pessoal é capaz de fazer. E o disco, apesar de levar o nome do grande Monarco, tem em suas faixas grande variedade de compositores. 

Diz o encarte assinado por Homero Ferreira: "Convidado pelo Estúdio Eldorado para gravar um disco seu, ele [Monarco] quiz que fosse assim. Com músicas para fazer mais de um LP, preferiu ceder metade de seu disco para as composições dos velhos companheiros: Paulo, Caetano e Rufino, Mijinha, Alcides Lopes, o malandro histórico, Alvarenga, num samba cuja segunda parte andava esquecida e foi lembrada pelo filho Altair, Josias, Pernambuco e Chati, Hortênsio Rocha, que morreu no anonimato e que poucos reconhecem sob  H. Rocha na autoria do "Diz que fui por aí", Doca, a dona do terreiro, e, numa homenagem à Mangueira, Mestre Cartola, num samba sem segunda parte, feito em 1932 e que até hoje não estava editado." 


O resultado desse clube de amigos é sensacional. São os chamados samba-raiz, com letras inacreditáveis e aquelas melodias que só compositor de morro carioca sabe fazer.


São sambas pouco conhecidos do grande público, mas a empatia com todos eles é imediata. Na primeira vez que ouvimos, já dá vontade de sair cantando o refrão. 


O clima que se sente no disco, conforme Homero Ferreira, é de um "terreiro em Oswaldo Cruz, onde alguns dos velhos compositores da Escola De Samba Portela costumam se reunir para cantar os seus sambas. São antigos companheiros, compadres, parceiros dos que fundaram em 1926, naquele subúrbio carioca, o Conjunto Carnavalesco Escola de Samba Oswaldo Cruz. Muitos deles fizeram parte do núcleo original da Escola e em vários carnavais foram deles os sambas com que a Portela desceu à cidade." 


Monarco morreu em 2021, aos 98 anos, e é considerado um dos maiores nomes do samba em todos os tempos. 


O disco pode ser ouvido na íntegra no YouTube em https://www.youtube.com/watch?v=JXgXwSRSZOE . E também está à venda nos bons sites do ramo. 

Cavaleiro solitário

 Por Ronaldo Faria O bar está fechado. Parece há tempo. Mas Hermínio não se dá por vencido. Enquanto houver uma sede por beber, beber-se-á. ...