quinta-feira, 3 de novembro de 2022

À vila de lobos

 Por Ronaldo Faria

O trenzinho do caipira vem devagar, entre trilhos e trilhas sobre ferros e madeira queimada até o maior negror da fumaça que foge furtiva pela chaminé, margeando morros e miragens. Num pedaço do despedaçado cedro, misturado ao credo do maquinista de que um dia irá chegar, sobe o cheiro de vida e morte.

No campo o Saci Pererê pula e se esperneia, serpenteia difuso e confuso sem saber o que dizer. Do seu cachimbo sai um lamento que o vento destrói em brisas que chegam das terras molhadas do além-mar. No lugar, um ritmo transversal entre o que pode ser o bem e o mal. Um lumiar de incertezas certas e presenciais.

Aos acordes do violão tocado em sofreguidão, o lamurio do poeta que se vê profeta da própria morte, à sorte. Um desbragado trago, um exaurido afago, uma ignóbil desfaçatez ao tocar a tez da amada, calada. De Amsterdam, o sabor em prelúdio que os acordes acordam como fossem um galo a cantar seu estertor.

Na viola, o mundo vira mundão no tanto de distância que arrodeia. Não distante, o luar se engrandece de passarinhada a buscar seu pé de árvore dormida. O gado geme de desejo de ruminar e a pajelança morre à chegança do calar. Entre os lábios grudados, os mistérios cansados e os corpos largados.

No seu canto pequeno e sem lampião, o poeta dedilha a parelha que existe entre a pipa que voa e a saudade que avoa. Aos poucos, o pouco que ficou ressoa no silêncio pênsil entre a solidão e a canoa. No rio, o barquinho desce ao sabor do seu mundo, das correntes e do que for à toa. Em meio a tudo, o peixe até destoa.

quarta-feira, 2 de novembro de 2022

Um cantinho, um violão e um violino

Por Edmilson Siqueira 

Um violinista e um violonista se juntaram para gravar um disco lá nos longínquos anos de 1974 e de 1977. Como ambos eram geniais, o disco se chamou "A Grande Reunião". Em 1974, tocaram os dois juntos, com bateria e contrabaixo e, em 1977, foram acompanhados, em uma das músicas, por uma grande orquestra.  


O violinista era ninguém menos que o francês Stèphane Grappelli e o violonista era o nosso internacional Baden Powell, o que, claramente justifica o nome do disco. E ambos foram sobejamente famosos no mundo do jazz e da bossa nova nos anos em que viveram de suas artes. Grappelli morreu em 1997 e Baden em 2000. A obra de ambos é eterna e, tenho certeza, continuará sendo apreciada e ouvida no mundo inteiro enquanto houver ouvido sensíveis à boa música. 


Foram acompanhados no contrabaixo por Guio Pedersen, na bateria por Pierre-Alain Dahan e na percussão por Clément De Waleyne e Jorge Rezende.


Não sei quando foi lançado o CD que tenho há muitos anos, mas, pesquisando informações sobre o disco, descobri que há um segundo volume, sinal que a gravadora francesa que produziu o trabalho, gostou do resultado.  

A primeira faixa traz música do baiano Gilberto Gil, "Eu Vim da Bahia", um dos seus primeiros sambas. Aliás, sobre ele, tenho uma historinha interessante: Gil trabalhou na Gessy Lever em Valinhos, nos anos 1960, pouco antes de se destacar no Fino da Bossa e desistir da carreira de administrador de empresas para se dedicar (ainda bem!) totalmente à música.  Minha irmã mais velha trabalhava lá, acho que na mesma seção, tanto que ela contava que ele sempre cantava umas músicas no intervalo do almoço para a moçada. Um dia ela apareceu com uma letra de música em casa e disse: "É do Gilberto Gil, um colega lá da Gessy".  Pois era justamente "Eu Vim da Bahia", datilografada pelo próprio. Infelizmente nem ela nem eu guardamos a folha, mas da história me lembro muito bem.  


A segunda música inaugura uma seleção de clássicos da MPB: "Meditação", de Jobim e Newton Mendonça, ainda só como violão, bateria e contrabaixo acompanhando o solo do violino de Grappelli.  


A única música de Baden no disco vem a seguir. Trata-se de "Berimbau", parceria com Vinicius de Moraes, o mais famoso afrosamba da dupla. É a única que tem um acompanhamento orquestral. 


A seguir, "Desafinado", também de Jobim e Newton Mendonça, é aberta com uma introdução ao violino que não lembra a melodia, própria de um jazzista como Grappelli.  

"Samba de Uma Nota Só", de Jobim, abre o "lado B" do disco original. A melodia simples de Jobim ganha ótimo improviso de Baden e também de Grappelli, e acaba tendo 5 minutos e 42 segundos, a terceira maior do disco. 


O sucesso de João Gilberto, "Isaura", de Herivelto Martins e Roberto Roberti, também entrou na "Grande Reunião" na forma de um sambinha lascado, que diverte quem ouve. 


"Amor em Paz", de Jobim é a penúltima faixa do disco. A belíssima melodia do nosso maestro soberano desliza pelo violino de Grapelli e pelo acompanhamento inicial de Baden com a nobreza que lhe é peculiar. O disco todo é ótimo, mas essa faixa acaba ganhando ares de especial pela qualidade da interpretação dos dois instrumentistas. 


Por fim, quase uma homenagem à terra dos autores de todas as músicas do disco, Grapelli e Baden interpretam "Brazil" que foi o nome que "Aquarela do Brasil" recebeu ao iniciar sua turnê internacional ao fazer parte da trilha de um desenho animado da Disney, onde estreava o "personagem" Zé Carioca, criação baseada no que Disney entendeu ser o o malandro da cidade do Rio de Janeiro. Mas é um dos maiores sucessos de todos os tempos da nossa MPB.


Tanto do CD quanto o LP ainda são vendidos por aí, nos bons sites do ramo. No YouTube dá pra ouvir não só o volume 1 como o 2 também, mas o segundo tem apenas duas músicas brasileiras. O link do YouTube: https://www.youtube.com/watch?v=SxRo_R9bz-8 . 

terça-feira, 1 de novembro de 2022

Zé Renato e Renato Braz

 Por Ronaldo Faria

Passa passarinho perneta de perna e asa quebradas. Vai avoar para lá. Seguir seu céu cheio de nuvens anuviadas e cheias de chuva sem cair. No meio da estrada, cheia de poeira e de pó, o barro se enlameia de lágrimas secas e olhos vermelhos de tramas e tranças entrelaçados no corpo magro que definha largo à beira da única e uníssona vida.

Passa feito padre com suas rezas escritas ao léu e surdas feito o sabor do fel. Vai rezar para longe, com suas cantigas e cânticos que não transpassam dos pórticos. Na lonjura do desterro, de onde nem o olhar mais perto pode ver, há querência e ser. Catatônico, afônico, histriônico na imensidão do copo vazio de tanto se entornar de solidão.

Passa silencioso cantador da dor eterna e leva sua ternura à candura das brumas que não encontram barco sequer para balançar. Na saudade leviana e mundana, jogada às capistranas de capitanias há muito hereditárias entre as razões e o sonhar, volta à sua terra de carne e osso, de onde saístes criança e agora volta feito moço.

Passa à parcimônia antagônica da mulher que gira feito pomba e regira no mundo afora. A desgarrar de um sertão como veia aviltada de sangue que se larga ao coração. No limite entre o amanhecer e entardecer que não se vê. Feito alma desalmada que ama a eternidade e dorme quieta e discreta num canto qualquer sem ser.

Passa passarinho, caolha e sem bico, sem pena e voar, no alto da mansidão que anuvia a poesia do cantar. Fica calado no fio de arame a balançar sem eternidade ou lugar. No descalabro sincero que existe entre o novo e o velho. Pare nos moinhos de vento, suba e desça de acordo com o desejo da brisa que de tanto bater ainda há de furar.
 
(Ao som de Zé Renato e Renato Braz)

segunda-feira, 31 de outubro de 2022

Presente de Natal de Diana Krall

Por Edmilson Siqueira 

Já escrevi aqui que tenho quase todos os discos de Diana Krall. E hoje vou escrever sobre mais um deles. Um dos melhores, por sinal. É o trabalho que ela fez sobre as músicas de Natal. Tradicional entre grandes artistas da música nos Estados Unidos, o "disco de Natal" está presente no catálogo de Frank Sinatra, Nat King Cole, Elvis Presley e muitos outros.  


Diana, jazzista das melhores, abre seu disco, lançado em 2005, com a mais que tradicional "Jingle Bells", de James Pierpont, mas a seu modo. Uma interpretação bem rápida, com muito swing e com acentuada participação dos metais da Clayton/Hamilton Jazz Orchestra que, aliás, está presente em quase todas as faixas do disco. Ficou ótimo. 

"Let It Snow" de Julie Styne e Sammy Cahn, é outra das mais tradicionais e presentes em quase todos os discos natalinos. Aqui Diana também força no swing fazendo um espetacular duo com a orquestra. 


A terceira faixa é "The Christmas Song", de Mel Tormé e Robert Wells. Suave, ela serve para aliviar o clima acentuado das duas faixas anteriores. É mais uma ótima interpretação intimista de Diana, com seu piano discreto e correto. 


"Winter Wonderland", de Felix Bernard e Richard Smith, vem a seguir, retomando a marcação mais forte, desta vez feita, inicialmente, pelo contrabaixo, mas que se completa com a sessão de metais da orquestra.  


Outra tradicional dessa época: "I'll Be Home For Christmas" de Kim Gordon, Walter Kent e Buck Ram, volta às baladas românticas que Diana domina tão bem.  

O clima romântico prossegue com "Christmas Time Is Here", de Vince Guaraldi e Lee Mendelson, para ser quebrado logo em seguida com "Santa Claus Is Coming To Town", de Fred Coots e Haven Gillespie, que foi gravada como rock por Bruce Springteen, mas aqui ganha ares mais jazzísticos e calmos, sem perder o balanço, com outra grande participação dos metais da orquestra. 


"Have Yourself A Merry Little Christmas", de Ralph Blane e Hugh Martin, volta o aconchego da balada romântica, preparando o espírito do ouvinte para a, talvez, mais gravada música de Natal de todos os tempos: "White Christmas", de Irving Berlin, num arranjo especial, apenas com piano, guitarra, contrabaixo e bateria. Outra gravação intimista, fugindo um pouco à regra de outras gravações dessa música, mas que destaca a belíssima melodia do grande Irving Berlin.  


A décima música do álbum é "What Are You Doing New Year's Eve", de Frank Loesser, que começa com um belo solo de guitarra, preparando o clima meio tenso da música, que tem Tamir Hendelman a bordo de um piano Fender Rhodes, dando um toque especial à faixa.

"Sleigh Ride", de Leroy Anderson e Michael Parish, vem a seguir, numa interpretação alegre e bem marcante de Diana, com alguns bons solos de trompete e trombone. 

Encerrando a seleção, temos "Count Yours Blessings Instead Of Sheep", quase uma oração sussurrada por Diana no início, para depois ganhar os ares de balada natalina escrita por Irving Berlin. 


Taí uma boa sugestão de presente natalino, já que estamos quase entrando nesse clima.  


O CD está à venda ainda nos bons sites do ramo e pode ser ouvido no YouTube em https://music.youtube.com/playlist?list=OLAK5uy_kATE-Vs06L3ewWiOC-atMIlgkm9JbyoSs . 

Cavaleiro solitário

 Por Ronaldo Faria O bar está fechado. Parece há tempo. Mas Hermínio não se dá por vencido. Enquanto houver uma sede por beber, beber-se-á. ...