segunda-feira, 6 de junho de 2022

Aos amigos...

 Por Ronaldo Faria

 

“Se não for masturbação, usem camisinhas...”
(Renato Russo) 

Amigos. É isso que fica da vida (essa coisa rápida e desmedida na sua inconstante guarida de um corpo em profilática passagem na Terra). Amigos de copo, de papos, de risadas e lágrimas guardadas ou soltas, ilibadas na vazia e ritmada saudade do nada.

Amigos. É isso que se espalha feito tralha na cortina de névoas que se põe interposta entre um sim e um não. Amigos de cópulas nos olhares para as mulheres que passam diante da mesa, nas viagens lisérgicas de decibéis alcoólicos, nas imaturas clausuras dos loucos varridos para debaixo do tapete da realidade.

Amigos. É isso que corre e decorre, discorre, de mesa em mesa e de bar em bar. Bazofia de filigranas de alegrias e imberbes seres que vasculham a fábula de Esopo, redigida em prosa grega entre batatas fritas que pedem um arroz idem, grego também. Amigos de horas e tardes que já começam pedindo para não acabar no perrengue do sol atrás da lua, mas jazem quando a água corre nos pés e um garçom pendura cadeiras de bruços a reclamar.

Amigos. Fugidios irmãos descobertos pela vida e lançados dramaturgos e imaturos em cada vazio que existe entre a carícia e a mão. Lenientes em acasos e prevenidos em desfazer prolixas frases balbuciadas em repetidas besteiras graduadas em centilitros de líquidos difusos e confusos. Amigos de apoiar os lipídios e glicídios que vertem nos banheiros mais sujos das esquinas e chamar um táxi para cada dobrada de pernas ou espermas.

Amigos. Substratos da polivalência chamada estar junto e longe ao mesmo tempo, no extemporâneo contrato que se assina apenas pelo olhar. Beligerantes em tortas estradas que não levam a nenhum lugar e unidos heróis na desmesurada verdade de se bastar esteja no canto ou no centro, no limite ou na vazão entre o rio da saudade ou o mar da verdade. Enfim, coisa de sentir sem saber descrever ou crer. Paráfrase que apenas de madrugada se faz ou refaz. E haja fisionomia, isonomia e/ou profilaxia para tanta dor. E haja amigos para nos tirar, em vida, do torpor. A todos, o meu louvor...

“O Sol nasce para todos, só não sabe quem não quer”. 

“É preciso amar as pessoas como se não houvesse amanhã”

(Renato Russo)


sábado, 4 de junho de 2022

Ao Zeca Baleiro

Por Ronaldo Faria


Cama, lama, insana trama. Drama, quiçá. Dogma e esmegma. Mira certa e exata no corpo da amada em torpor. Na noturna madrugada que se espraia pelas nuvens que cobrem a lua ao redor, me vejo num mundo longe, a tocar acordeom. Num cubículo perdido na cidade, na ansiedade plena, apenas o poeta perdido, fodido, na encruzilhada da trama e da artimanha, longe da manhã que será brilhante – ou não. No chão, deduzo caminhos e espaços, ascos, cadafalsos, cores na pujança que se esconde em um canto qualquer de mulher. Daqui, como o mundo de colher. Mímico, autofágico, calado em mim mesmo, ensimesmado. Eu sou eu mesmo ao quadrado. Ao cubo, deixo meus sonhos bisonhos, risonhos, tacanhos e loucos. Mortos ao tempo, sem lamento, à espera de um provento, de um vento que me leve daqui para ali – seja esse ali o mar da Bahia, quiçá. Parte incongruente feito semente que teima em gerar em si mesma uma nova vida florada, amarga e perdida entre devaneios e seios molhados à mingua da minha língua sedenta. Original, vaginal, vaticinal. Uma em várias, fálicas, desvirginadas e com hora marcada para fechar e sair. Entrar e sair. Nas saideiras da vida e da morte. Na mesa de um bar banido dirigido por um português que sonha que no Alentejo o mundo esteja tão perto quanto o quarto que se habita no próximo brejo. Na urina que despejo, o ensejo de não sumir no sumidouro entre um copo e outro. Nas cópulas que ovulam de semana em semana, seja na vontade ou no zelo que ensejo seja passado ou presente, a semente. Ausente, me antevejo perdido em mim mesmo. Feito solfejo, sumo em sustenido e mi bemol. E assim vou a caminhar e me lavar da baba da amada, dos cheiros que retenho imortais, tais e quais. E sou, e fui e serei.

sexta-feira, 3 de junho de 2022

A bossa nova em três volumes

Por Edmilson Siqueira

Se você quiser saber tudo sobre a bossa nova, os livros do Ruy Castro são uma boa pedida. Ele escreveu a melhor "biografia" da dita cuja - Chega de Saudade - e, de lambuja, escreveu outros livros com mais detalhes ainda, como Rio Bossa Nova e Ela é Carioca. 

Mas, se você já leu os livros do Ruy e, agora, quer ter um bom apanhado do filé das músicas, sugiro, entre as inúmeras coletâneas sobre o tema, uma da Som Livre: O Melhor da Bossa Nova, volumes 1, 2 e 3. 


São 49 músicas com um grande número de intérpretes que dão uma visão panorâmica do que foi o mais importante movimento musical brasileiro. Se você discorda da frase anterior, alguns detalhes podem fazer você admitir a primazia da bossa nova sobre outros movimentos: ela, que recebeu influência do jazz, acabou por influenciá-lo também e, argumento definitivo, está viva até hoje. Se não no Brasil, no mundo. Todas as rádios voltadas ao jazz no mundo - e são milhares - incluem a bossa nova na programação, muitas vezes com gravações novinhas, cantadas ou instrumentais. E muitos compositores têm produzido música cuja influência da bossa nova é visível. Grandes intérpretes de jazz e até de pop incluem sempre um clássico de Jobim, ou de algum outro compositor brasileiro em seus discos de carreira. E há aqueles que, como fez Frank Sinatra, fazem um disco inteiro só com músicas do nosso maestro soberano.  

Bom, se você não se convenceu, paciência. Mas se você quer conhecer uma boa parte da excelente música brasileira que hoje é conhecida e admirada no mundo todo, os três CDs da Som Livre vão satisfazer plenamente. 


Juntar 49 músicas da bossa nova e dividi-las em três CDs não é tarefa das mais difíceis hoje em dia. Mas a Som Livre fez algo além disso. O encarte nos discos traz não só as letras de todas as músicas como um pequeno texto biográfico do intérprete (ou intérpretes) ou conjunto que a apresenta, todos escritos por Jardo Nerica. E ainda revela quando foi feita aquela gravação específica. 


Como se não bastasse, o disco ainda apresenta gravações meio raras de algumas músicas, como é o caso de "Samba em Prelúdio" (Baden Powell e Vinicius de Moraes) aqui cantada por Geraldo Vandré e Ana Lúcia. A gravação é de 1962 e o texto ainda revela que Vandré tinha desistido de ser cantor e ia se dedicar somente à composição. Mas o sucesso dessa gravação o convenceu a continuar cantando. 

"Garota de Ipanema" (Jobim e Vinicius) que abre a coletânea é cantada pelos Cariocas e foi gravada em 1962. E prossegue dando um apanhado da bossa nova em seu início, com Johnny Alf, Dick Farney, Wanda Sá, Carlos Lyra, Silvia Telles e Agostinho dos Santos. 


Nara Leão aparece no primeiro CD com "Outra Vez" (Jobim), Elis e Tom cantam "Só Tinha de Ser com Você", do famoso LP gravado em Los Angeles em 1974 e se transformou no principal disco de bossa nova depois do movimento inicial.  


O volume 2 da coletânea continua com clássicos da bossa nova. Logo de cara, o megassucesso de Elis e Tom, “Águas de Março (Jobim). Nara Leão, Marcos Valle, Johnny Alf, Claudete Soares, Sérgio Mendes e Joyce são algumas das outras presenças no segundo volume, num apanhado gostoso e preciso de um tempo em que o Brasil parecia que ia ter um futuro risonho. 


O volume 3 da coletânea começa com Caetano Veloso, Gal Costa e tem também Geraldo Vandré e Os Cariocas, além de Nana Caymmi, Agostinho dos Santos, Baden e Vinicius de Moraes. E não se esquece do grande Roberto Menescal com "Saudade Fez Um Samba" (Ronaldo Bôscoli e Carlos Lyra) e Marcos Valle com "Terra de Ninguém" que ele compôs com o irmão Paulo Sérgio. Nesse disco, Nara também reaparece juntando "Corcovado" (Jobim) e "Insensatez" (Jobim e Vinicius). E, claro, o "Samba da Bênção" (Baden Powell e Vinicius) na famosa gravação de Vinicius, não poderia faltar. Essa música continua ganhando versões europeias, principalmente francesas que ainda fazem sucesso nas rádios de lá. 

Enfim, são discos pra você não só recordar um tempo de grande criatividade na música brasileira e seus principais intérpretes, mas também para ter um sentimento que anda em falta nessas terras tupiniquins: o orgulho. Dá um prazer imenso saber que toda uma geração de compositores, instrumentistas e cantores produziu uma música que até hoje é referência de qualidade no mundo. 


Os três CDs podem ser encontrados nos bons sites do ramo.

quinta-feira, 2 de junho de 2022

Ao tango e o flamenco do xote rasgado

 Por Ronaldo Faria


Tango e flamenco se misturam entre guitarras e bandoneón. Há pares a bailar no salão. Há frio, muito frio escondido sob as luzes da noite. Existe mistura de candelabros que luzem amarelo com um resto de lua cheia a brincar de céu. Vê-se bocas e braços entrelaçados. Suores e afagos. Temos vozes longe de algozes. Alforria de casais a beber-se de línguas molhadas e se embriagar de copos que passam de mão em mão sem vazar.

Há milagrosas pernas a se enroscarem e se jogarem entre pernas. Um cantar de impropérios vagos, um prelúdio de corpos a encorparem o pedaço de cama entre quatro quadrados. Em cada canto, um pesadelo guardado. Uma cortina fechada que descortinar um umbral fugitivo e solitário. Há saudade do que ainda há por vir.

Há saudade de dias que deixarão ambos longe, longitudinalmente largados, cansados de seguir esquinas e ruas translúcidas nos olhares promíscuos de prostitutas e precipícios. Como num porto onde poetas e profetas se deixam a navegar sem destino, sem tino, sem ir ou chegar. Por isso, no salão, a ordem é somente rodopiar para cá e para lá. Entre ter e largar. Sentir os pés no chão, anchos em parcimoniosas ilusões. Sentir o corpo do outro colado, lado a lado. Sem o gosto, amargo, da remissão. Por isso, nos salões ninguém fala. Há um silêncio ensurdecedor na sala. Como se a amada saísse pela porta rumo à eternidade com sua mala. No meio de tudo, o casal mudo. Apenas notas e acordes se entremeiam sonoros e sinistros. Todo o futuro ficou perdido lá na frente. Os músicos, à meia luz, se fazem em dó maior. Embriagados e roucos, não cantam mais. E assim homem e mulher transitam somente no universo próprio, loucos. Daqui, vejo apenas a morte como primeira e última consorte.

II

Um baião faz bailar sob o som da sanfona. Entre a lua e a luzidia chama do lampião, um triângulo e uma zabumba batucam os pés que mexem sem parar. Há versos no ar. Nordestinamente largados estão os corpos. Na peleja do suor e do toque, uma língua ou outra a se atracarem. Prometo, menina, dona da minha eterna sina, sempre te amar.

 Tempo, tempo, velho tempo, por que me persegues se eu não te conhecerei para a eternidade, lá longe e mais na frente ademais?

quarta-feira, 1 de junho de 2022

Uma homenagem à preguiça

Por Edmilson Siqueira 

Quando eu me aposentei dos afazeres diários do jornalismo, depois de mais de 40 anos na profissão, alguns amigos me perguntaram o que eu ia fazer. Minha resposta foi outra pergunta: "Como assim?" Eles queriam saber se eu ia continuar trabalhando. Minha resposta então não foi interrogativa, foi afirmativa, ou melhor, negativa: "Não!".


Confesso que sempre fui meio preguiçoso, jamais gostei de acordar cedo, por exemplo. Claro que não recusei trabalho por preguiça, mas adorava os fins de semana e as emendas de feriados. Hoje, já não tenho esses prazeres, pois estou num feriadão há alguns anos e nele pretendo continuar. Como disse a um amigo recentemente, "não fiquei rico, mas está divertido não fazer nada, digamos, produtivo, ou quase nada". 


Bom, tudo isso me veio à mente ao sacar um disco da coleção para o artigo de hoje: "Jazz For A Lazy Day". A capa, como vocês podem ver aí, é bem sugestiva. Parece um passeio pelo campo, o encontro de um riacho numa tarde quente de verão. Já o conteúdo sugere que você se estique numa rede ou num sofá, pegue um bom vinho, um bom uísque ou até aquela cerveja gelada e faça as reverências todas que a preguiça merece.  


São nove grandes músicas tocadas por conjuntos de jazz dos quais os autores das músicas não participam. Ou seja, é uma outra visão de uma música escolhida pelo produtor justamente para acariciar um "lazy day". 



Thelonious Monk, o genial pianista, é o autor das duas primeiras faixas: "Blue Monk" e "Monk's Dream", otimamente interpretadas por Frank Jones (piano), Mickey Rober (bateria) e Sam Jones (baixo), a primeira, e Ralph Moore (sax tenor), Benny Green (piano), Peter Washington (baixo) e Victor Lewis (bateria), a segunda.  

"Chelsea Bridge" (Billy Strayhorn) leva a preguiça às alturas, no longo solo do sax tenor de Ricky Ford, acompanhado de John Ricks ao piano, Walter Book no baixo e Johnny Cobb na bateria. 


Sonny Still, também um sax tenor, se incumbe de comandar "Walkin" (A. Carpenter e J. Coates). Joe Newman no trompete, Duke Jordan no piano, Sam Jones no baixo e Ray Brooks na bateria completam o grupo. 


A quinta faixa é "Alone Together" (H. Dietz e A, Schwartz) cuja interpretação ficou com Wallace Roney e seu trompete em surdina, mais Donald Brown ao piano, Christian McBride no baixo, Cindy Blackman na bateria e Garry Thomas na flauta. 


Em seguida aparece "Blue Seven" do grande saxofonista Sonny Rollins, que ficou sob a responsabilidade de outros dois grandes no disco: Houston Person no sax tenor e Ron Carter no baixo. Uma aula de ritmo e precisão, banhada com o improviso dos grandes jazzistas. 


A sétima faixa já é um clássico do jazz: "Fly Me To The Moon", de B. Howard. Russel Gunn com seu trompete se sai muito bem, acompanhado de John Ricks ao piano, Peter Washington no baixo e Cecil Brooks III na bateria. Um show o improviso de Gunn.  

Outro clássico, "Daydream" de Duke Ellington, J. LaTouche e B. Strayhorn é a penúltima faixa do disco. Nela o sax tenor de Houston Person, o piano de Cedar Walton, o baixo de Buster Willians, a bateria de Vernel Fournier e o trombone de Curtir Fuller dão conta do recado com muita qualidade.
 

Por fim, encerrando o "lazy day", temos "Alter Ego" de J. Wiliians, com Donald Byrd no flugelhorn, Kenny Garret no sax alto, Mulgrew Miller no piano, Rufus Reid no baixo e Marvel "Smitty" Smith na bateria. 


Trata-se de um disco cujo maior objetivo é lhe dar o prazer de ouvi-lo sem pensar em fazer absolutamente nada. Uma homenagem a um dia preguiçoso de verão. Ou de outono. Talvez de inverno. Quem sabe da primavera. Pode ser qualquer estação. Eu, como Ph.D. em “lazy days”, falo de cátedra. 


O CD está à venda nas boas casas do ramo e pode ser ouvido na íntegra no YouTube em https://www.youtube.com/watch?v=kXjt8i9Lxvo . 

Cavaleiro solitário

 Por Ronaldo Faria O bar está fechado. Parece há tempo. Mas Hermínio não se dá por vencido. Enquanto houver uma sede por beber, beber-se-á. ...