sexta-feira, 1 de abril de 2022

A Dominguinhos...

Por Ronaldo Faria

Terra ressecada cheia de pedras e pó. Que dó. Talvez um devaneio sem início, fim ou meio. Um acordeon a traçar sons e notas a denotar. Um pedaço de tempo efêmero, tardia saudade a desbragar. Velejar de portinholas que se fecham e se abrem sem parar. Feito a mulher no tempo, dependurada na janela a somente olhar. Na semente colhida logo longe, lumiar. Um pedaço de acaso, um regurgitar de saudades e passados, um afago sem dor. A sentença de passar um rio pequeno a poder matar e se desmilinguir. No que for, será. Talvez um derrear sem fim, lembrança volátil e efêmera. Talvez o cocô da filha canina recolhido a cada manhã e tarde. Um forró rodeado de chão e o que for. Afinal, há pouca divisória entre a felicidade e a dor. Talvez um pedacinho de tempo que a gente nem sabe o que é. E fica tudo assim: na fé. Um Nordeste sem sul ou leste. Sem centro ou oeste. Apenas Nordeste. Terra minha. Passado meu. Passagem minha. Artimanhas da vida. Caçamba a buscar água vinda da cacimba. Tudo a cheirar lenha e pasto calcinados de tanto brotar. Um descobrir na chuva finita, outro pouco a ver a água verter. Feito feira onde o açude se entrega às poucas folhas que dão saudade que brota igual a semente dormente na iniquidade que o tempo dá. Senão, somente eu, num cantinho onde cabe apenas uma urna diminuta e escondida detrás de uma sepultura que se cobre toda de vida. E haja acórdãos, dias perdidos entre um batucar de teclas e decisões, cisões de ser e estar. Do lado de fora, um Rio de Janeiro brota cheio de meses e reses que se deixaram morrer entre o tanto de pasto e o curral. No cheiro de bosta que permeia as lembranças e a reentrância, essência do odor de vida se aflora em dor. Há um tanto de pequenas capelas cagadas de morcegos e tantas hóstias. Inglórias certezas e desmedidas asperezas. Talvez um tempo esquecido, um frigir de emoções dirimidas. Quem sabe carolas de véus e vestes negras, vestígios de novas esperanças ou murtas entregues aos morcegos que cagam em anjos e santos benzedores. Nos alforjes do cavalo qualquer que segue as estradas sem matagal e fim. Talvez, quem sabe, meu último fim far-se-á simples e em si: o derradeiro suspiro sem encher o peito de ar e o chupim a cantar. Na sanfona, Dominguinhos solta o fole sem dizer que ele, no fundo, sou eu...

quinta-feira, 31 de março de 2022

Desassossego, um disco perfeito de Bel Padovani

 Por Edmilson Siqueira 

Há muitos artistas campineiros que andam fazendo boa música por aí. Quando eu escrevia a coluna Farol, na revista Metrópole, domingueira do Correio Popular, muitos textos foram dedicados a artistas locais, nascidos aqui ou aqui radicados por força da Orquestra Sinfônica, do curso de Música da Unicamp ou mesmo pela vida noturna da cidade e seus bares com música ao vivo. 


Uma dessas artistas, campineira da gema, é Izabel Padovani. Só que, ao contrário de muitos, sua carreira se começou por aqui, se desenvolveu mais na Áustria, onde viveu dez anos. Quando voltou, participou, em 2005, do consagrado e sério Prêmio Visa de Música Brasileira. E ganhou. 


Além de uma boa grana (110 mil reais) o prêmio deu a ela a gravação de um disco pela Gravadora Eldorado. Um disco com rica produção, com repertório sem restrições e com quinze músicos participantes.  

E Bel não deixou por menos. O resultado foi Desassossego, consagrado pela crítica e, se não chegou às "paradas de sucesso" e ganhou discos de platina por aí é porque o mercado brasileiro é feito de outras coisas, não necessariamente de qualidade, não necessariamente belas e que se desmancham no ar antes de completarem um ano de vida. 

Já Desassossego é eterno, mercê não só a enorme qualidade da cantora, mas também pelo excelente repertório e pelos arranjos perfeitos e ousados. Arranjos esses devidamente assinados por Ronaldo Saggioratto, contrabaixista (e que tem acompanhado Bel nos discos e apresentações) e Marcelo Onofre, pianista e também presença constante nos trabalhos da cantora. 


A qualidade que esses dois grandes músicos acrescentaram à voz cativante de meio-soprano de Bel é coisa de gente grande. Exemplo disso é o que foi feito na segunda faixa do disco, um samba de Paulinho da Viola e Elton Medeiros - Onde A Dor Não Tem Razão - onde usaram um conjunto de saxofones (soprano, alto, tenor e barítono) para dar uma massa sonora inusitada - e de alta qualidade - ao tradicional samba.   


Antes, no disco, Bel já nos encanta com sua versão de Circuladô de Fulô, resultado da incursão de Caetano Veloso no livro Galáxias, de Haroldo de Campos, onde os textos figuram sem qualquer título e as páginas são preenchidas do começo ao fim, sem divisão de versos ou parágrafos e sem pontuação.  


Cada música do disco, mercê a qualidade do resultado, acaba sendo uma agradável surpresa ao ouvinte. A estranha e difícil letra de Pés no Chão (Mário Laginha e Maria João) flui pela voz de Bel como se já se conhecessem há muito tempo. A parceria que ela faz com o ótimo cantor Renato Braz (que já foi tema de um artigo aqui), em Dueto (Chico Buarque) não fica devendo nada ao original gravado pelo próprio Chico e Nara Leão.  


A Permuta dos Santos também alia a qualidade da interpretação com um arranjo sensacional, misturando instrumentos e vozes no acompanhamento.  

Lagrimas de Oro, de Mano Chao, é a música pop do disco, com arranjos de guitarra e palmas que se completam.  


Depois de passar novamente por Chico Buarque e Edu Lobo com Frevo Diabo, surge uma espécie de surpresa no disco. Com um arranjo completamente diferente de tudo que se ouviu até agora nessa música, Bel canta Retalhos de Cetim, de Benito de Paula. O resultado é impressionante. O popular samba foi agraciado com um inusitado upgrade. 

Song for Denise (Reinhard Micko), Ensolarada (Luiz Felipe Gama) e Um Samba na Suíça (Janet de Almeida e Haroldo Barbosa) completam o disco. 


O disco pode ser ouvido no Youtube neste endereço: https://www.youtube.com/playlist?list=OLAK5uy_l8-DpuMK8IUZlUZVss8XWCrfHy-qzrXSg 


E também pode ser comprado nos bons sites do ramo. 

quarta-feira, 30 de março de 2022

À Dona Ivone Lara

Às vezes o meu Rio de Janeiro volta incerto e brejeiro. Com rodas de umbanda, corridas na praia, porres sem saber. Um tanto de amanhecer e até ver o poeta maior, outro pouco de entardecer por detrás do morro que se enche de vidas e vozes.

Às vezes o meu Rio de Janeiro se entrega em cheiros de creolina, odores de bares, fragrâncias da amada. Com rodopios e pios do santo que baixa e sobe a cada cantar. E uma maresia que sobe e fica, se larga e passa, entre o fim e a alegoria.

Às vezes o meu Rio de Janeiro se desvanece e se entorpece de relíquias mil sob um céu de anil. E pede a contradança à mais bonita mulher que pode ser par. E roda, rodopia, ginga e se joga para cada esquina infinita e finda que não sabe acabar. 

Às vezes o meu Rio de Janeiro nem sabe quem é. Talvez seja uma cidade ou, senão, apenas o corpo de uma mulher. De Deodoro a Marechal há muito a seguir. Do Leblon até o Jacaré tem quem dá adeus e quem nunca aceita dar sequer uma ré.

Às vezes o meu Rio de Janeiro me deixa entregue ao léu. Meio Maracanã em dia de Flamengo, meio saudoso do dengo da índia que vivia depois do Irajá. Afinal, a Cidade Maravilhosa não tem muito lugar. É em cima do morro, no asfalto e ou só acolá.

Às vezes o meu Rio de Janeiro surge em novembro, fevereiro ou dezembro. Pouco importa, desde que haja entrada e, na saída, uma porta. Daqui exilado, não troco o samba pelo tango, mesmo a ter todo o respeito pelo som imortal de um frevo.

terça-feira, 29 de março de 2022

Um intérprete chamado Paulinho da Viola

Por Edmilson Siqueira 

Paulinho da Viola, como todo mundo que gosta de boa música sabe, é um desses gênios do samba, cujas músicas já se eternizaram na memória brasileira e, daqui a cem anos, continuarão sendo ouvidas e gravadas. Seus maiores sucessos são de músicas que ele compôs sozinho como Foi um Rio que Passou em Minha Vida, Pecado Capital, Rumo dos Ventos, Meu Violão, Jurar com Lágrimas, Sinal Fechado ou Bêbado Samba, entre muitos outros. 


Mas Paulinho é, além de um grande cavaquinhista, também um grande intérprete. Em todos os seus discos, ele canta músicas que fez em parcerias ou músicas de outros autores, como Sei Lá Mangueira (música que ele colocou em versos da Hermínio Belo de Carvalho) Mas Quem Disse que Eu te Esqueço (Ivone Lara e Hermínio Belo de Carvalho), A Maldade Não Tem Fim (Armando Santos), Ame (com Elton Medeiros), Alento (Paulo Cesar Pinheiro), O Ideal É Competir (Candeia e Cascatinha) e dezenas de outros.  


Pois é esse lado de intérprete que vou comentar aqui, já que Paulinho juntou num só disco composições de outros autores que ele gravou e que recebeu o nome justamente de "Paulinho da Viola - Intérprete".  


O CD que tenho é de ótima produção com uma bela foto na capa. E, na contracapa, Paulinho está sendo numa cadeira de balanço, imitando uma famosa foto do grande Pixinguinha. Um encarte com todas as letras e a ficha técnica, também bem cuidado, completam o trabalho. 


As gravações abrangem um período que vai de 1968 a 1973. Paulinho, como se sabe, sempre foi ligado a grandes sambistas, conhecidos ou não do grande público e sua generosidade levou a gravar alguns grandes sucessos desses amigos, fossem eles de que escola de samba fossem, mesmo que seja ele um portelense raiz.  


E essa amizade até lhe causou problemas. O lindo samba Sei Lá Mangueira, que Elizeth Cardoso eternizou, é uma parceria sua com Hermínio Belo de Carvalho. Pois seus amigos da Portela entortaram o nariz ao ver um dileto portelense louvar as belezas da escola rival. Pois Paulinho, para mostrar que seu amor pela azul e branco continuava incólume, escreveu Foi Um Rio que Passou na Minha Vida, voltando aos braços e abraços de sua escola. O samba é, talvez, seu maior sucesso. 


O disco com Paulinho só de intérprete é uma dessas joias que devem ser ouvidas sempre. Algumas das músicas se transformaram em sucessos do rádio na época em que foram lançadas, outras têm ótimas melodias e letras. Todas com arranjos bem-feitos e a sempre correta e agradável interpretação de Paulinho. 

As gravações são as originais e é muito bom ter em mãos essa coleção de bons e ótimos sambas que Paulinho eternizou.  


A seleção é das mais primorosas e, assim mesmo ouso dizer que muitas que mereciam estar na seleção ficaram de fora. Simplesmente as que foram gravadas depois de 73, de outros autores, já dariam pra fazer outro disco. 


Logo de cara, somos brindados com Nervos de Aço, a música que Lupicínio Rodrigues escreveu em 1947, quando encontrou seu grande amor - Iná, de quem fora noivo - casada com outro.  


Acontece, de Cartola, a segunda faixa do disco, teve em Paulinho a primeira gravação, em 1972. É um daqueles sambas emblemáticos de Cartola: linda melodia, letra perfeita. E, claro, grande interpretação de Paulinho. 


Mente ao Meu Coração (Francisco Malfitano e Pandia Pires) vem a seguir, seguida de Nega Luiz (Wilson Batista e Jorge de Castro), Mal de Amor (Raul Sampaio e Benil Santos), Duas Horas da Manhã (Nelson Cavaquinho e Ary Monteiro), Nova Ilusão (Paulo Caetano e Claudionor Cruz), Não Quero Mais Amara a Ninguém (Zé da Zilda, Cartola e Carlos Cachaça), Pra que Mentir (Noel Rosa e Vadico), Lenço (Monarco e Francisco Santana), Sentimentos (Miginha) e Doce Veneno (Valzinho, Carlos Lentine e M. Goulart). 

Como se vê trata-se de um repertório da mais alta qualidade, com boa parte da nata do samba brasileiro misturada a compositores que, se não tiveram sucessos perenes, escreveram pelo menos algumas grandes obras que Paulinho teve a sensibilidade de gravar. 

O disco inteiro pode ser ouvido neste endereço: https://www.ouvirmusica.com.br/paulinho-da-viola/710291/#album:interprete-2005 . E, claro, ainda está à venda nos bons sites do ramo. 

segunda-feira, 28 de março de 2022

A ouvir Macalé

Panificadora partida entre pães e bolachas, ou biscoitos. Há um forno crepitando maluco e um padeiro meio tarado e meio eunuco a correr entre fumaças e odores, flores despejadas na rua e um cais a borbulhar de ondas os brocados das saias das mulheres a comprarem bolos e sonhos. O tintilar de moedas e voo de notas denota que a tarde chega tardia para a noite que a envolve de luzes e cores. No asfalto, de fato, a fotografia delimita a orgia futura. No caixa, o português dono de tudo, grita entre cifras e cifrões. “Tenho aluguel para pagar, seus sem colhões!” No verbete que vira verbo na porta da padaria, o lembrete de que o tempo não para e quente é melhor de comê-lo. Defronte do prédio, dois moleques que têm na rua o seu lugar vêm para sentir no nariz que a fornada chegou. 

Jards Macalé é um dos caras, talvez o cara. Ps.: Antes de flamenguista, tijucano, sou americano, como Macalé.

Cavaleiro solitário

 Por Ronaldo Faria O bar está fechado. Parece há tempo. Mas Hermínio não se dá por vencido. Enquanto houver uma sede por beber, beber-se-á. ...