sexta-feira, 10 de junho de 2022

Ao piano de João Donato

 Por Ronaldo Faria

 Tempo, ausência de ventar e vento.

Vida, premência premida a si.

Tempo, no que há meses se foi.

Vida, cataclismo e cismo.

Tempo, sem espera ou era.

Vida a verter secundária.

Tempo, vaticínio e declínio.

Vida no emaranhado do nada.

Tempo, anuência da ausência.

Vida de voltas e versos retos.

Tempo de limites em prestos.

Vida insípida e tortuosa.

Tempo, cadafalso sem volta.

Vida de notas em notas ao piano.

Tempo embriagado de si mesmo.

A esmo, ambos num só e em dois.

Senão, tempo e vida entremeados.

Ritmos tresloucados do fado.

Inférteis reversos do que se foi.

Beijos largados em um sem dois.

Madrugadas vazias e o logo depois.

Inexistente alegria à alegoria da manhã.

No silêncio, vida e tempo – travestidos de si.

Talvez um poema sujo e rasgado.

Um taciturno amante carrancudo.

A mulher de seios nus ao sol do mar.

A vastidão de um eterno luar.

A canseira de eira e beira, a se beirar.

Um tanto de areia e olvidar.

Ir e seguir, à vida e no tempo.

Seguir e voltar, ao tempo e a vida.

Um deixar para velas ainda singrar.

O barco que afundou sem aportar.

Âncora jogada às pedras de qualquer lugar.

O tempo a dormir, a vida a acordar.

Ao som de João Donato, morrer para despertar...

quinta-feira, 9 de junho de 2022

Gilberto Gil, uma ótima turma e o sol de Oslo

Por Edmilson Siqueira 

O Sol de Oslo é um dos discos menos conhecidos de Gilberto Gil. E, com certeza, um dos mais belos. Outra certeza: não é só de Gil. Ele próprio, quando viu o que foi feito com todo o material produzido pelo grupo reunido na Noruega, não gostou. Disse que ele era apenas mais um dos (ótimos) participantes do disco. Era um trabalho conjunto e Gil gostaria que ele tivesse sido apresentado assim. 


Mas, problemas à parte, o disco é ótimo.  


Idealizado, produzido e dirigido musicalmente por Rodolfo Stroeter e pelo próprio Gil, o CD foi gravado no Rainbow Studio em Oslo em novembro de 1994, com exceção de duas músicas que foram gravadas no Estúdio Mosh em janeiro de 1998. Pelo tempo existente entre as gravações (quatro anos), percebe-se que o trabalho ficou guardado esse tempo todo. Motivo: a gravadora de Gil à época, considerava que o disco não era comercial... 


O grupo que gravou junto com Gil, tocando e cantando, é dos mais respeitados: a cantora Marlui Miranda, o norueguês Bugge Wesseltoft nos teclados, o indiano Trilok Gurtu na percussão, os paulistas Rodolfo Stroeter no baixo e Toninho Ferragutti nas sanfonas. 


O antropólogo e pesquisador musical Hermano Vianna é o autor do texto do encarte, quase um minitratado sobre as origens sertanejas da nossa música. Escreve ele, logo nas primeiras linhas: "Houve um tempo, que durou até as primeiras décadas deste século [no caso, se trata do século 20], no qual a música popular brasileira, em seus vários gêneros (e não importa se produzidos na cidade ou no campo), podia ser chamada de música sertaneja. O pensamento da época identificava tudo o que era popular com aquilo que vinha do sertão."  


Em outro trecho, justificando sua teoria, Vianna acrescenta: "As Artes sertanejas atraíam a curiosidade do público, tanto que os Oito Batutas, grupo de Pixinguinha e Donga, apresentou - em 1921 e em São Paulo - o espetáculo Uma Noite no Sertão." 


Aí acontece a transposição para o que inspirou o disco: "O Sol de Oslo", diz ele, "chega em excelente hora. Esse disco é uma necessária injeção de "vastidão sertaneja" no panorama da música contemporânea do Brasil. Mais do que isso: O Sol de Oslo faz o sertão funcionar sob o novo regime da globalização, dando um novo sentido para as palavras e os desejos de Guimarães Rosa (para quem Goethe, Dostoievski e Balzac eram sertanejos)."

 


Teorias à parte, o trabalho do grupo começa realçando o folclore e dando a ele moderna interpretação instrumental com a música "Tatá Engenho Novo" (domínio público), uma embolada difícil de cantar e muito gostosa de se ouvir. Outro "domínio público" vem a seguir com a singela "Teus Cabelos", uma lenta canção de apenas oito versos que Marlui Miranda interpreta com grande emoção e sensibilidade, junto com Gil.  


"17 na Corrente", a terceira faixa, vai buscar no compositor pernambucano Edgard Ferreira e em Manoel Firmino, a síntese entre o som, digamos, moderno, com a tradição do "rojão", ritmo inventado por Ferreira nos anos 1940. Quem primeiro fez sucesso com essa música foi Jackson do Pandeiro. 


Rodolfo Stroeter se uniram para compor "Xote", que, apesar de atual, aborda tema do sertão nordestino, a lenda da fonte que só produz água se uma rezadeira da Bahia iniciar a oração para que o milagre se realize. Um xote delicioso, por sinal. 


Outra música de Gil, desta vez com a parceria de Marlui Miranda, vem a seguir. "Eu Te Dei Meu Ané", outro tema "sertanejo" apresentado com a vibração de instrumentos modernos, numa combinação perfeita. 


O disco prossegue com várias surpresas, muitas compostas por Gil com perceptíveis letras de seus parceiros, invadindo um universo que o baiano não costuma frequentar, mas tão rico quanto aqueles que ele nos presenteia com suas letras. "Kaô" e "Onde o Xaxado Está", com Rodolfo Stroeter; e "Ciranda", com Moacir Santos são exemplos dessas parcerias. O disco ainda tem "Rep", "Língua do Pê" e "Oslodum" só de Gil; "A Santinha Lá da Serra", de Moacir Santos e Vinícius de Moraes; "Bastiana" de Marlui Miranda e "Ai Baiano", de domínio público. 


Pra encerrar, recorro novamente ao antropólogo Hermano Vianna, do encarte: "A grande cidade não é inimiga do sertão. A civilização da grande cidade, global, também produz, em seus melhores momentos, um pensamento do infinito. Um infinito que nos proporciona, além do pop, além de estúdios como o de Oslo, 'os frutos da ciência, sabores sem os quais a vida é vã'. Sabores, acrescentaria Guimarães Rosa, tipicamente sertanejos." 


O disco está inteiro à disposição no YouTube: https://www.youtube.com/watch?v=qmrxBexw64A. E também pode ser comprado nos bons sites do ramo. 

quarta-feira, 8 de junho de 2022

Noite de vida à música

 Por Ronaldo Faria


Noite de vida. No bar, o fim barbárie. Nas gotas do copo, as gotículas minúsculas que se entrelaçam e sabe-se lá onde for que se darão. Na música, a túnica atônita que se entorna em palavras ávidas de sede de verter saudade e sorver ambiguidades mil. No frio notívago vem a certa e incrédula vastidão do nada no amargo afago longínquo que se traveste de veste profana a dançar em qualquer lugar. No largar do lagar múltiplo, o lugar onde nascerá o sol. Na profusão de cores e odores, sabores e dores, a quântica realidade de se estar para logo nunca mais voltar. No ar, a negritude que se amplifica nítida e performática, atávica em ser apenas si mesma, na pujança inexistente de cada mente. E que a mentira se vá incongruente e demente para um solo solitário de uma guitarra qualquer.

terça-feira, 7 de junho de 2022

A correta e bela arte de cantar

Por Edmilson Siqueira 

Ele já gravou sete CDs e um EP, mas quero falar aqui do quarto CD, "Influência do Jazz", que, segundo a crítica, é um dos melhores trabalhos do cantor João Senise. 

Gravado em 2016, foi nesse trabalho que João Senise, já conhecido no meio artístico como um ótimo intérprete, reuniu um timaço para participar das gravações. 


Ele mesmo diz, no encarte, que "foi um trabalho hercúleo - e uma grande honra para mim - conseguir juntar tantos craques em um só CD." 

E o time de craques é grande mesmo. Em ordem alfabética: Alaíde Costa, Antônio Adolfo, Áurea Martins, Banda Brás de Pina, Edu Lobo, Jota Moraes, Joyce, Leo Amoedo, Mauro Senise,  Mingo Araújo, Nelson Faria, Nilson Matta, Osmar Milito, Paschoal Meireles, Quarteto Radamés Gnatalli, Rildo Hora, Roberto Menescal, Romero Lubambo, Sergio Barrozo, Sueli Costa, Tony Botelho e Wanda Sá. 


Ufa! Pra juntar um time desse, o dono do disco tem que ter muito prestígio. E esse prestígio foi conseguido através das ótimas gravações anteriores, quando João Senise passeou com desenvoltura por um repertório de standards do jazz, homenageou Ivan Lins e gravou um disco ao vivo só com canções imortalizadas por Frank Sinatra. São três trabalhos que elevaram seu nome no meio musical e deram-lhe condição de gravar o CD seguinte, esse que é o quarto, com tanta gente boa. 


Carioca, 33 anos, João Senise cresceu numa família extremamente musical. Seu pai, Mauro Senise é saxofonista, flautista e arranjador e sua mãe Eliana Peranzetta é produtora cultural das mais requisitadas. Durante grande parte da sua adolescência foi assistente de produção da sua mãe Eliana, participando de diversos shows e projetos. Em 2010 formou-se em jornalismo pela PUC-Rio, mas nunca chegou exercer a profissão. Em 2013, lançou seu primeiro CD, "Just in Time". 


Esse "Influência do Jazz" é recheado das influências jazzísticas e da bossa nova, que se misturam numa salada de sabores variados, todos excelentes.  


São 14 faixas que vão de "estamos Aí" (Mauricio Einhorn, Durval Ferreira e Regina Werneck) até "A História de Lilly Braun" (Edu Lobo e Chico Buarque), passando por clássicos como "Fotografia" (Tom Jobim), "The Look of Love" (Burt Barcharach e Hak Davi) , "Eu e a Brisa" (Johnny Alf), "Samba de Verão" (Marcos e Paulo Sérgio Valle), "Sá Marina" (Antonio Adolfo e Tibério Gaspar), "Balanço Zona Sul" (Tito Madi), "Estate" (Bruno Martino e Bruno Brighetti), "La Mer" (Charles Trent e Albert Abraam), "Tem Dó" (Baden Powell e Vinicius de Moraes), "Jura Secreta" (Sueli Costa) e, claro "Influência do Jazz" , de Carlos Lyra.

É um disco que, além de comprovar o talento do intérprete, traz novas versões desses clássicos todos, não só na voz de João Senise, mas dos medalhões todos da MPB que ele conseguiu reunir. O resultado é ótimo. Um disco pra não se cansar de ouvir. Ele sempre será uma ótima companhia. 

segunda-feira, 6 de junho de 2022

Aos amigos...

 Por Ronaldo Faria

 

“Se não for masturbação, usem camisinhas...”
(Renato Russo) 

Amigos. É isso que fica da vida (essa coisa rápida e desmedida na sua inconstante guarida de um corpo em profilática passagem na Terra). Amigos de copo, de papos, de risadas e lágrimas guardadas ou soltas, ilibadas na vazia e ritmada saudade do nada.

Amigos. É isso que se espalha feito tralha na cortina de névoas que se põe interposta entre um sim e um não. Amigos de cópulas nos olhares para as mulheres que passam diante da mesa, nas viagens lisérgicas de decibéis alcoólicos, nas imaturas clausuras dos loucos varridos para debaixo do tapete da realidade.

Amigos. É isso que corre e decorre, discorre, de mesa em mesa e de bar em bar. Bazofia de filigranas de alegrias e imberbes seres que vasculham a fábula de Esopo, redigida em prosa grega entre batatas fritas que pedem um arroz idem, grego também. Amigos de horas e tardes que já começam pedindo para não acabar no perrengue do sol atrás da lua, mas jazem quando a água corre nos pés e um garçom pendura cadeiras de bruços a reclamar.

Amigos. Fugidios irmãos descobertos pela vida e lançados dramaturgos e imaturos em cada vazio que existe entre a carícia e a mão. Lenientes em acasos e prevenidos em desfazer prolixas frases balbuciadas em repetidas besteiras graduadas em centilitros de líquidos difusos e confusos. Amigos de apoiar os lipídios e glicídios que vertem nos banheiros mais sujos das esquinas e chamar um táxi para cada dobrada de pernas ou espermas.

Amigos. Substratos da polivalência chamada estar junto e longe ao mesmo tempo, no extemporâneo contrato que se assina apenas pelo olhar. Beligerantes em tortas estradas que não levam a nenhum lugar e unidos heróis na desmesurada verdade de se bastar esteja no canto ou no centro, no limite ou na vazão entre o rio da saudade ou o mar da verdade. Enfim, coisa de sentir sem saber descrever ou crer. Paráfrase que apenas de madrugada se faz ou refaz. E haja fisionomia, isonomia e/ou profilaxia para tanta dor. E haja amigos para nos tirar, em vida, do torpor. A todos, o meu louvor...

“O Sol nasce para todos, só não sabe quem não quer”. 

“É preciso amar as pessoas como se não houvesse amanhã”

(Renato Russo)


sábado, 4 de junho de 2022

Ao Zeca Baleiro

Por Ronaldo Faria


Cama, lama, insana trama. Drama, quiçá. Dogma e esmegma. Mira certa e exata no corpo da amada em torpor. Na noturna madrugada que se espraia pelas nuvens que cobrem a lua ao redor, me vejo num mundo longe, a tocar acordeom. Num cubículo perdido na cidade, na ansiedade plena, apenas o poeta perdido, fodido, na encruzilhada da trama e da artimanha, longe da manhã que será brilhante – ou não. No chão, deduzo caminhos e espaços, ascos, cadafalsos, cores na pujança que se esconde em um canto qualquer de mulher. Daqui, como o mundo de colher. Mímico, autofágico, calado em mim mesmo, ensimesmado. Eu sou eu mesmo ao quadrado. Ao cubo, deixo meus sonhos bisonhos, risonhos, tacanhos e loucos. Mortos ao tempo, sem lamento, à espera de um provento, de um vento que me leve daqui para ali – seja esse ali o mar da Bahia, quiçá. Parte incongruente feito semente que teima em gerar em si mesma uma nova vida florada, amarga e perdida entre devaneios e seios molhados à mingua da minha língua sedenta. Original, vaginal, vaticinal. Uma em várias, fálicas, desvirginadas e com hora marcada para fechar e sair. Entrar e sair. Nas saideiras da vida e da morte. Na mesa de um bar banido dirigido por um português que sonha que no Alentejo o mundo esteja tão perto quanto o quarto que se habita no próximo brejo. Na urina que despejo, o ensejo de não sumir no sumidouro entre um copo e outro. Nas cópulas que ovulam de semana em semana, seja na vontade ou no zelo que ensejo seja passado ou presente, a semente. Ausente, me antevejo perdido em mim mesmo. Feito solfejo, sumo em sustenido e mi bemol. E assim vou a caminhar e me lavar da baba da amada, dos cheiros que retenho imortais, tais e quais. E sou, e fui e serei.

Cavaleiro solitário

 Por Ronaldo Faria O bar está fechado. Parece há tempo. Mas Hermínio não se dá por vencido. Enquanto houver uma sede por beber, beber-se-á. ...