segunda-feira, 22 de agosto de 2022

A alegria de Beatriz Azevedo

Por Edmilson Siqueira 

Em 2008 chegou em casa o primeiro CD de Beatriz Azevedo, "Alegria". Gostei muito do que ouvi, mas depois não acompanhei sua carreira. Hoje, fico sabendo que essa careira está bem consolidada, ela é citada por importantes nomes da MPB, já se apresentou ao lado de uma porção deles e, mais importante, já gravou mais 12 CDs, vários no exterior.  

Seu primeiro disco é coisa fina, sem trocadilho com a gravadora, a ótima Biscoito Fino. Ouvi muito, escrevi sobre ela na revista Metrópole do Correio Popular e, hoje, ao retornar a ele, percebo que devia ter ouvido mais.  


A descoberta, à época, se deu pela internet, animado que fiquei com algumas críticas que li e com os parceiros que fazem parte do disco – Tom Zé e Vinicius Cantuária –, além da direção musical de Cristóvão Bastos, o que é garantia de bom gosto.  


O futuro da moça já estava mais ou menos traçado, pois quando lançou o primeiro CD, já havia uma pequena biografia dela no Google: "Beatriz Azevedo é poeta, cantora e compositora, multiartista brasileira. Graduada em Artes Cênicas pela Unicamp, estudou no Mannes College of Music e no Jazz and Contemporary Music Program de Nova York. Em Barcelona, estudou na Sala Beckett com bolsa do Instituto de Cooperación Iberoamericana da Espanha. Ganhou a Bolsa Virtuose do Ministério da Cultura do Brasil em 2002. Em 2003, apresentou-se no Festival Première Brazil! do MoMA de Nova York e no Verizon Music Festival, cuja programação incluiu artistas como Erikah Badu, George Benson e Wynton Marsalis com a Lincoln Center Jazz Orchestra." 

O CD comprova todo esse "currículo", pois ela compõe bem pra caramba, canta muito bem, tem bons parceiros, a produção é excelente e o disco, se bem me lembro, entrou na lista dos melhores lançamentos de 2008. 


Tem samba, tem baião, tem maxixe, tem rock e tem jazz, tudo refinado, devidamente deglutido e reciclado de forma a dar prazer aos nossos ouvidos. Tem música em português, inglês e francês. Nessa última língua, a música se chama  "Savoir Par Coeur", a expressão francesa para “saber de cor” que explicita o coração como centro da lembrança. Tem homenagem a Pagu e a descoberta do “buraco” cantado com Tom Zé.  


Pra quem não sabe, Tom Zé tem uma relação com o "buraco". Em plena ditadura, ele lançou um LP cuja foto da capa era estranha. Cheia de riscos meio tortos cinza azulados com alguns traços de vermelho, convergentes a um centro escuro com uma bolinha de gude. Algo que poderia ser considerado uma tela contemporânea. Na verdade, era uma pra ser uma foto tirada bem de perto de um ânus de uma mulher. Mas no fim a coisa não rolou e, conforme contou o próprio Tom Zé, Décio Pignatari, que estava na produção do disco, desenhou algo parecido, ampliou bastante, botou a bolinha de gude no meio e virou a capa do disco "Todos os Olhos".  

O disco de Beatriz Azevedo pode ser ouvido na íntegra na Apple Music: https://music.apple.com/br/album/alegria/730090331 . 

sábado, 20 de agosto de 2022

Bons tempos do Bons Tempos

Por Edmilson Siqueira 


Dia desses vi um post no Facebook, colocado pelo velho amigo Newtinho, de uma das músicas do DVD que o Grupo Bons Tempos gravou com o show em homenagem a Ari Barroso. Newtinho era o violão do grupo e fazia parte dos vocais. O DVD foi gravado no Teatro do Centro de Convivência Cultural de Campinas, em agosto de 2005, e eu estava na plateia (até apareço num passeio da câmera), ouvindo emocionado e aplaudindo o espetáculo que o grupo campineiro produziu tão bem sobre um dos maiores compositores brasileiros de todos os tempos.  


Além do DVD, que guardo com carinho e assisto de vez em quando, o show foi também para o CD, gravado ao vivo. E foi tudo coisa fina. Albino Pinheiro coordenou o show que estreou no Teatro João Caetano, no Rio e o roteiro ficou a cargo de ninguém menos que Sérgio Cabral, o jornalista e autor da melhor biografia sobre Ari Barroso. 

O Bons Tempos tinha Alfeu Júlio, Caio Piccolo, Chiquinho do Pandeiro e Elder, além do já citado Newtinho Gmurczyk. Marcaram época em Campinas e, com esse show, foram conhecidos em todo o Brasil. 


A parte musical foi muito bem cuidada, como era de se esperar de um grupo do nível do Bons Tempos. A direção foi entregue a Ricardo Matsuda. Goio Lima tocou saxofones e flauta transversal. Guilherme Ribeiro, piano e acordeom. O trombone ficou com Lucimar Perez. Pepe D'Elia foi o baterista. Rubinho Antunes se incumbiu do trompete e do fluguelhorn. E Matsuda ainda ficou com contrabaixo. O espetáculo teatral tinha ainda cenários grandiosos e um ator, Fábio Sampaio, representando Ari Barroso, passeando pelo palco como se estivesse conferindo a música da moçada. 


Segundo um texto assinado pelo grupo, na contracapa do CD, "...A gravação deste CD é a concretização de uma longa história de amor entre o Grupo Bons Tempos, Sérgio Cabral e a rica obra de Ari Barroso".  


A escolha do repertório foi difícil e fácil ao mesmo tempo. Difícil porque Ari tem muitas músicas que podem ser consideradas obras primas, mais do que caberiam num show ou num CD. E fácil porque qualquer música que se escolhesse seria muito bonita, sempre.  

Assim, o show se inicia com "Rio de Janeiro" e logo de cara a plateia aplaude em cena aberta, pela beleza da abertura do espetáculo. A segunda música já entra no lado romântico de Ari, e inicia a apresentação de alguns clássicos do repertório do compositor mineiro:  "Maria" parceria com Luís Peixoto, levada com maestria pelo grupo. 

Outro clássico, "Na Baixa do Sapateiro" vem a seguir. Declaração de amor (uma delas) que Ari faz à Bahia que o deslumbrou quando a conheceu e a ela dedicou muitas músicas. "Faixa de Cetim" acompanha esse deslumbramento, aqui mais ainda escancarado, porém sem perder a qualidade. 


"Terra Seca", uma espécie de samba-afro, denunciando os horrores da escravidão, fez muito sucesso à época. As duas faixas seguintes, dois grandes sucessos de Ari, "Pra Machucar Seu Coração" e "Morena Boca de Ouro", serviram para revelar mais ainda a qualidade dos músicos que acompanharam o grupo no show, pois são apenas instrumentais. 


O grupo volta na sétima faixa, uma parceria de Ari e Luís Peixoto: "Por Causa Dessa Cabocla", um solo vocal de Caco Piccoli, o "crooner" do grupo. "Folha Morta", um samba-canção que será ouvido ainda por alguns séculos, tal sua qualidade, mostra a excelente afinação do grupo, num ótimo arranjo vocal.  


A partir daí o espetáculo entra na sua parte final, com cinco sambas que eternizaram Ari como mestre da MPB definitivamente: "É Luxo Só" (com Luis Peixoto), "No Tabuleiro da Baiana", "Os Quindins de Iaiá", "Rancho dos Namorados" (com Vinícius de Moraes) e, por fim, a música escolhida para, num longínquo 7 de setembro, ser tocada em milhares de rádios dos Estados Unidos na mesma hora e que até hoje é uma espécie de hino informal do Brasil: "Aquarela do Brasil".  

Não encontrei o CD nem o DVD à venda nos bons sites do ramo, mas dá pra assistir a vários trechos do espetáculo no YouTube. 

sexta-feira, 19 de agosto de 2022

ZY alguma coisa

 Por Ronaldo Faria

(Ao menino imberbe que viveu um Nordeste de rádio galena, na bateria, sem luz elétrica ou tevê, sob a escuridão do lampião e da noite que nada mostra mas a tudo vê)

Nas ondas do rádio arredo todo o meu carma, redescubro minhas camas, atordoo meus dramas. E tudo voa como fossem só meras filigranas.

Nelas não há pouco mais do que Luiz Gonzaga a cantarolar. Um cheiro de lenha a crepitar no fogão e o mugir do gado guardado para morrer.

Nas ondas do rádio, mesmo para quem no sertão nunca viu uma onda de mar, é possível se embarcar e nunca mais voltar. Mil portos hão.

Nelas existem barcos e velas. Avião também há. Se quiser e longe pensar, até espaçonave vai encontrar. Tem sertão seco e longínquo mar.

Nas ondas do rádio eu ondeio e permeio vozes e odes. Nessas caixas de madeira, acreditem, não existe apenas artroses. Há mel, flor e glotes.

Nelas vagueiam às marés todos mil tresloucados e insanos senhores, incansáveis jogadores perdedores, voluptuosos e incrédulos desamores.

Nas ondas do rádio tem náufrago e cavalo marinho, piratas sem tesouro, sereias sem rabo. Todos num ligar e desligar do que findo, no fundo, brinca de derrear.

Em rádios quase iguais, ouvi minhas primeiras músicas, os primeiros versos de rima, a primeira saudade latente e a certeza de que a voz sempre haverá de mais alto falar.


quinta-feira, 18 de agosto de 2022

Festivais de Record : os grandes momentos

Por Edmilson Siqueira 

Muita se fala até hoje - e lá se vai mais de meio século - dos festivais de música brasileira promovidos pela TV Record, então líder de audiência e com um elenco sob contrato que não deixava artista importante nenhum para as outras emissoras. A tv era em preto e branco, às vezes o sinal vacilava e a imagem virava um borrão e o som um chiado, muitas vezes o Rio só assistia a um programa de São Paulo no dia seguinte (não havia rede e a gravação seguia de avião) e vice-versa. Mas a gente se virava. 


As noites de festival eram um acontecimento. Reuniam-se turmas em frente à televisão e até se organizavam torcidas. Os jornais todos cobriam com seus melhores jornalistas dos cadernos culturais e as músicas apresentadas - inéditas até então, no disco elas só sairiam depois do festival - eram discutidas em rodinhas por aí. A cada noite, havia quatro classificadas para a grande final, onde doze músicas disputariam a classificação. Se bem me lembro, havia uma classificação do 12º ao 1º lugar, mas só as seis primeiras eram reapresentadas na grande final. Foi, enfim, um tempo de efervescência cultural na música brasileira: grandes compositores se revelaram, outros se reafirmaram e alguns foram para o ostracismo, muitos injustamente.  


Histórias sobre as noites dos festivais há muitas, e há livros por aí onde elas são contadas. E quem ainda desconhece o que foram aqueles anos, há um disco que pode dar uma boa demonstração. Trata-se de "Os Grandes Momentos dos Festivais de Música Brasileira", produzido pela Companhia Brasileira de Discos através do selo Phonogram. 


Há vários outros discos com sucessos originários dos festivais, mas esse além de trazer gravações originais, informa o ano em que a música disputou e a classificação dela no final. E, entre as 12 músicas, há três que viraram clássicos da MPB e que não foram classificadas entre as 12 ou mesmo para a grande noite da finalíssima. 


A primeira música é “Roda Viva”, de Chico Buarque, que ele apresentou em 1967, num belo arranjo de voz com o MPB4. Logo em seguida temos “O Cantador”, de Dori Caymmi e Nelson Motta, apresentada por Elis Regina. Pelo trio que compôs e defendeu a música, pensa-se que ela chegou até o fim do festival e ficou entre as primeiras. Apesar de se tratar de uma música belíssima e ter sido magnificamente cantada pela Elis, o jurado não a classificou entre as seis primeiras.   

Pior aconteceu com "Eu e a Brisa", de Johnny Alf, apresentada por Márcia, hoje um clássico muito regravado por aí. Não ficou nem entre as quatro na noite que foi apresentada, ou seja, não foi para a final. Depois fez grande sucesso.  


Já a ótima "A Estrada e o Violeiro", de Siney Miller, apresentada por ele e Nara Leão, também não ficou entre as seis primeiras, mercê sua extrema qualidade e beleza.  

Já "Comunicação", de Edson Alencar e Hélio Matheus, cantada por Vanusa, ficou em terceiro lugar em 1969, quando muitos dos grandes compositores já não participavam mais de festivais.  

A faixa seguinte é a mais que consagrada "Ponteio", música de Edu Lobo com letra de Capinan que não só ficou em primeiro lugar em 1967, como fez grande sucesso nacional e internacional, colocando seu autor, que apresentou a música o lado de Marília Medalha, no rol dos grandes compositores brasileiros. 

A sétima faixa é de outra grande consagração dos festivais da Record: "Disparada", letra de Geraldo Vandré e música de Theo de Barros, cantada por Jair Rodrigues, que gerou uma enorme polêmica, em 1966, com a música seguinte, "A Banda" de Chico Buarque", apresentada por Nara Leão. As torcidas no auditório estavam divididas literalmente ao meio: metade queria Chico em primeiro, a outra metade, Vandré. O júri decidiu pela “Banda”, mas quem não aceitou foi o próprio Chico, que ameaçou não cantá-la novamente. Então a direção do júri resolveu premiar as duas em primeiro, como se tivesse havido um empate. Foi a decisão salomônica que acabou agradando a todos, mas gerando discussões sem fim sobre qual música era a melhor.  


Quem vibrou com essa decisão foram Adauto Santos e Luís Carlos Paraná, autores da música que ficou em segundo lugar, "De Amor ou Paz", um ótimo samba. Ambos, quando foi anunciado o terceiro lugar, acharam que não tinham mais chance, já que o primeiro e segundo seriam de “Banda” e “Disparada”. Sem saber que o primeiro lugar seria dividido entre as duas, não entenderam nada quando foi anunciado "De Amor ou Paz" em segundo lugar. Mas choraram de alegria, abraçados. Quem sofreu um pouco com essa história foi a intérprete, a grande Elza Soares, que teve de enfrentar um auditório arisco, pois as duas torcidas achavam que a música preferida delas não estaria nem entre as seis. Mas ela enfrentou até vaias com galhardia, cantou o samba e saiu aplaudida.  


A nona faixa do disco traz quele que foi a revelação do ano, Caetano Veloso, que, em 1967, emplacou sua "Alegria, Alegria" em quarto lugar, se apresentando com uma banda de rock para acompanhar sua marchinha. Foi um sucesso!  

Em 1968, Caetano Veloso e Gilberto Gil compuseram "Divino Maravilho" e incumbiram de apresentar outra revelação baiana, a cantora Gal Costa, que acabou ficando em terceiro lugar no festival.  


A faixa seguinte traz um campeão de festivais, Edu Lobo, acompanhado de Gianfrancesco Guarnieri, que fez a letra para a música "Memórias de Marta Saré". Edu e Marília foram os intérpretes e ficaram em segundo lugar em 1968. 


Por fim, fechando a seleção, o grande Gilberto Gil com a surpreendente "Domingo no Parque", que ele apresentou para espanto de muita gente, tal a qualidade da letra e o inusitado da música, uma mistura de baião e pop que agradou a todos. Só perdeu para "Ponteio".  

Com esse disco, o ouvinte que ainda desconhece aquela época, perceberá que o que se produzia no Brasil em termos de MPB era de uma qualidade ímpar. Além de artistas já consagrados, toda uma geração que hoje está comemorando seus 80 anos mais ou menos, teve nos festivais da Record a grande chance de cantar para um enorme público espalhado pelo Brasil e para um rigoroso auditório, que, além das palmas, gritos e assovios, também sabia distribuir vaias sem dó nem piedade.  

No YouTube há vários vídeos com apresentações dessas e outras músicas dos festivais da Record. E o CD está à venda nos bons sites do ramo. 

Cavaleiro solitário

 Por Ronaldo Faria O bar está fechado. Parece há tempo. Mas Hermínio não se dá por vencido. Enquanto houver uma sede por beber, beber-se-á. ...