quinta-feira, 24 de novembro de 2022

Love: um disco dos Beatles

Por Edmilson Siqueira 

"Em junho de 2006, o show "Love" foi aberto para uma maravilhosa recepção no Mirage, em Las Vegas. Anos antes, a ideia original nasceu no mais imprevisto dos lugares. George Harrisson e Guy Laliberté, o fundador do Cirque de Soleil, eram enormes fãs de corridas de automobilísticas e quando se encontraram se tornaram grandes amigos. Como consequência desse encontro, uma única colaboração única entre o fantástico mundo do Circo de Soleil e a brilhante música dos Beatles. Guy discutiu o conceito com Giles Ste-Croix, seu diretor de Criação e planos foram feitos, negociações começaram e eventualmente, eu estava sendo cotado para trabalhar na música. Meu trabalho seria criar uma trilha sonora de mais ou menos uma hora e meia, usando qualquer som que eu precisasse das fitas originais dos Beatles. Era uma oferta difícil de recusar, e perguntei a meu filho Giles se ele trabalharia comigo neste projeto." 


Esse é o início de um texto, escrito por George Martin, o produtor da maioria dos discos dos Beatles, que está no encarte do disco "Love" que tem nada menos que 26 músicas dos Fab Four. Calma. Se você não conhece um disco dos Beatles chamado "Love", não se preocupe. As músicas foram todas extraídas das gravações originais, como diz Martin, ganharam, digamos, algumas mudanças muito bem boladas, umas passagens inesperadas, mas ótimas e, claro, foram a trilha sonora do espetáculo "Love" do Circo de Soleil, um dos mais belos de toda a trajetória do melhor circo que se criou no mundo em todos os tempos. 


Martin e seu filho explicam ainda que tiveram todo o cuidado de copiar os originais para neles trabalhar, deixando intacto o "material sagrado" que foi colocado à disposição de ambos para a criação da trilha.  


O resultado é um disco dos Beatles, claro, mas com uma compilação de sucessos e outros nem tanto, unidos por truques de estúdio, emendas inesperadas, porém sem perder o tom nem desafinar, inícios diferentes daquele que acostumamos a ouvir - como em Eleanor Rigby, onde o quarteto de cordas vem antes de Paul iniciar sua triste canção. 


Além das 26 músicas completas, há vinhetas de muitas outras, como também coisas estranhas aos ouvidos mais beatlemaníacos, como "Gnik Nus", que é simplesmente um trecho de "Sun King" tocado de trás pra frente. Ficou interessante e, segundo Giles conta, seu pai Martin lhe disse que esse era o tipo de coisa que John adoraria fazer.  


E para os colecionadores há outra surpresa nas cordas de "While My Guitar Gently Weeps": trata-se de uma nova gravação, um novo arranjo no início feito por Martin. Giles conta que ficou surpreso "ao descobrir que meu pai estava apreensivo em fazer isso - não há ninguém no mundo melhor nesse tipo de coisa, e mesmo depois de todo esse tempo ele ainda arranja com a mesma vitalidade e vazio que tornou seu trabalho lendário." 


Assim, com pequenas e boas surpresas, o fã dos Beatles não se decepcionará com as "ousadias" cometidas sobre o "material sagrado" dos quatro rapazes de Liverpool. Quem mexeu neles tinha toda autoridade para fazê-lo. 


O disco está à venda nos bons sites do ramo e pode ser ouvido na íntegra em https://www.youtube.com/watch?v=6bdqdO5LAIA&list=PLOJgNPpZvsA2JGb8sOpujVMF3jSuMDOcA . 

quarta-feira, 23 de novembro de 2022

Parcimônia das divas

 Por Ronaldo Faria

Cancioneiro do cansaço. Ancho. Grave e agudo. Groove no ar. Gancho entre a montanha e o mar. Eterno ir e ficar. Lá fora, luar. Ensimesmado, trôpego, entre um e outro trago, o homem fez-se gago. Refém de um afago. A rotunda luz que desce da grua para filmar na íris o corpo da mulher seminua. A eterna saudade a gargalhar. A boca no gargalo a vazar. Entre os dois corpos, amar.

No homem, dores estranhas, odores das entranhas. Na estrofe delimitada pela chama, a sanha. No quarto, entre um respiro e outro, a manha. Uma metade de lua, um terço de sincretismo e um quinto da teia de aranha na manhã. Que sobe e desce, aquiesce e aquece. Estremece no pêndulo à veia, na meia. Pênsil como Pôncio Pilatos, entre a verdade e o rumo dos seus atos.

Nas células, meiose. Osmose de vozes. Verborragia e orgia. Leite entre café e nozes. À noite, odes. Clarividência de quem se entrega à saudade e a morte. Que passa a cada dia entre a inércia e a hipnose. Um tanto de uísque e outro de cerveja. E eu que a ame e a veja: inteira, entregue na cama como um frango na mesa.

Disputa atroz entre as pernas e a coxa. De sobremesa, a ostra. Ostracismo e cataclismo. Samba e rumba. Bunda. Pés e viés. És ou não és? Um misto de parcimônia e amônia. Certeza agônica. Realidade cômica. Joia lapidada à antiga (sem forma ortográfica). Resistência ao aprendizado do passado apreendido na certeza de um analfabeto calado. Um ser amalgamado. A ouvir de rock and roll a fado.

E assim passa o tempo, entre chuvas, calor e vento. Como advento de um ilógico lamento. Longe, um rebento. E eu aqui ao relento. Entre riso, beijo, sopro e lamento. Tudo como a falta de vento. Ao menos não estou a suar. Há brisa largada no ar. Hoje, gostaria apenas de amar. Saber que daqui há um tanto a trilhar ou outro monte a jogar. Na brincadeira que fica e repica a zoeira de continuar sem saber para onde se vai ou quando parar.

Ao som de divas negras brasileiras

terça-feira, 22 de novembro de 2022

O grande som das big bands

Por Edmilson Siqueira

O tema de hoje é um CD com uma ótima seleção de Big Bands norte-americanas, chamado, muito a propósito, "A String of Pearls", lançado em 1994. Gosto muito do som dessas orquestras, sei que surgiram nos EUA ali pelos anos de 1910 e 1920, mas por falta de maiores detalhes, fui procurar nas redes, algo mais concreto para escrever aqui. E acabei encontrando um texto tão bom, que resolvi reproduzir boa parte dele para que todos que nos leem conhecendo pelo menos parte dessa rica história das big bands dos EUA. O texto foi encontrado no site "Big Band Esquina do Jazz" e é atribuído ao jornalista Milton Saldanha. 


"A história das big-bands pode começar a ser contada no final do século XIX, quando negros norte-americanos descendentes de escravos criaram o ragtime - mistura de música primitiva, hinos religiosos, marchas militares e até um pouco da estrutura rítmica de ritmos europeus, como a valsa. O jazz nasceria desta fusão de estilos e começaria a ser difundido com as primeiras orquestras de rua criadas em cidades como Nova Orleans, Memphis e Saint Louis. No início do século seguinte, a procura por trabalho levaria estas orquestras a outras grandes cidades e aos salões de bailes dos hotéis.  

Era o embrião das big-bands - usinas sonoras dançantes formadas por trompetes, trombones, saxofones e uma clarineta, piano, contrabaixo, guitarra, bateria, além de um crooner. 


Em meados dos anos 20, as grandes orquestras já eram uma tradição. Mas foi na década seguinte que elas se popularizaram definitivamente - resultado de interesse de músicos e arranjadores brancos por um tipo de som criado pelos negros (chamado Jitteburg), na época bastante popular nos bairros crioulos de Nova Iorque. O swing nasceu daí e explodiria em todo o mundo depois do início da Segunda Grande Guerra.

O som das big-bands era a música oficial dos soldados no front, a felicidade nos momentos de pausa entre um combate e outro, o ritmo da saudade dos que ficaram, a inspiração para os adolescentes, a trilha-sonora dos namorados. Hollywood logo percebeu o potencial do gênero, que não tardou a aparecer em 90% dos filmes produzidos na época. 

A explosão das big-bands logo formaria uma geração de estrelas no mundo da música. Nomes como o compositor, arranjador e intérprete Duke Ellington, talvez a maior unanimidade surgida até hoje no mundo do jazz. Outra foi Frank Sinatra, que iniciou carreira solo depois de ser crooner em duas famosas big-bands americanas.


Estrelas como Carmem Miranda e Bing Crosby não tardaram a aparecer nas telas ao lado das big-bands. Quando às grandes orquestras se juntavam nomes de astros consagrados, como Billie Holliday, Ella Fitzgerald e as Andrew Sisters, o resultado eram milhões de discos vendidos. No auge do sucesso, poucos eram tão estrelas quanto os band-leaders, que lideravam as orquestras. Instrumentistas como Benny Goodman, Tommy Dorsey, Artie Shaw e Harry James eram verdadeiras celebridades. Entre eles o maior foi, sem dúvida, Glenn Miller. Seu sucesso era tamanho que o governo americano se recusou a alistá-lo durante a guerra - preferiu enviá-lo com toda sua orquestra para o front, para divertir os soldados. A fama de Miller cresceu tanto que historiadores apontam seu desaparecimento (num avião que sumiu rumo a Paris, em 1944) como o fim da era de ouro das big-bands." 


Como se vê, a história das big bands é muito rica e está escrita em vários livros. E para que você conheça ou ouça novamente o som dessas incríveis orquestras, a pedida é esse CD "A String of Pearls", que faz parte de uma ótima coleção chamada "Jazzterdays". Ali estão as principais orquestras que fizeram a fama nos EUA e no mundo durante cerca de 40 anos, com alguns de seus principais sucessos. São elas: "Artie Shaw & His Orchestra"; "Glen Miller & His Orchestra"; Tommy Dorsey & His Orchestra"; Les Brown & His Orchestra"; Harry James & His Orchestra"; Count Basie & His Orchestra"; Claude Thornhill & His Orchestra"; Charlie Spivak & His Orchestra; Stan Keaton & His Orchestra"; Benny Goodman & His Orchestra; The Chick Webb Orchestra & Ella Fitzgerald; Duke Ellington & His Orchestra; Jimmy Dorsey & His Orchestra; Andy Kirk & His Twelve Clouds of Joy; Jimmie Lunceford & His Harlen Express"; Erskine Hawkins & His Orchestra.  


O CD que tenho foi editado pela JTD, de Portugal, é importado, mas está à venda nos bons sites do ramo. Há várias músicas das orquestras citadas no YouTube, mas esse CD não encontrei para ser ouvido na íntegra. 

segunda-feira, 21 de novembro de 2022

Pro Zé Geraldo

 Por Ronaldo Faria

Um dia deixarei de ser um zé ninguém à beira de uma praça para ser o pombo. De lá, do meio do nada, voarei ligeiro para lugar qualquer. Asa batendo entre asas, a arfar cantares do cantar. A vencer metros e quilômetros, hidrômetros e versos, aboios e terras de Bizâncio. Sem ânsia de buscar a felicidade, saudade, maldade. Sem vilipêndios, compêndios, adendos e sentimentos loucos. Somente corpos transgênicos e soltos que se bastem de fato e se catem entre suores e odores, vozes e sonhares. Coisa de louco a se fazer translúcido no luar, à beira do mar. Mecânico e filho da Macedônia a comer macadâmia e se melar. Senão, um jogral qualquer a se delimitar no corpo da mulher. E brincar de brincadeira maldizente, premente, presença de algum lugar. Entre viver preso e se largar. Qualquer coisa que se desfaça a criar. No deixar de ser zé ninguém, entre a vidência da finitude e a loucura de não se ter. Nação à beira do mar, mendigo a pedir esmola no mesmo lugar. Ela lá, eu aqui, nós por lá. Sem melodrama, sem ritmo de sol, lá, si, dó e lá. No néctar derramado, sonho sofismado, insólita despedida carcomida de presente e passado. A foda, o feto, o fato. O fátuo. A inglória desventura da aventura que se faz num quarto qualquer, entre quatro paredes e um sol que vem do céu, seja ele cinza ou azul, na rua ou no bordel. Se assim não for, que não seja. Nem tudo é o que a gente enseja. Às vezes um prato simples, uma breja. Quem sabe um brejo, um beijo, um baixo em sustenido e mi bemol. Senão, só eu e você. Piloto a dirigir um avião perdido na tempestade sem ter brevê.

sábado, 19 de novembro de 2022

Seu Jorge e Carlinhos Brown

 Por Ronaldo Faria


O som solidifica a fina forja de solfejos e apegos.
Pego a mínima réstia animal de frases e fatos, coisa seminal.
Não me resta muito a fugir ou a tecer.
Queria, agora, somente ser o Ser.
A todos é dado o direito de descer na última escada da vida.
- Frígida és tu, tuiuiú...
 
Sambar.
Âmbar de sândalos e verve.
Vida.
Coisa de veste e cântaros.
Âmago.
No meio do nada e no centro de tudo.
Pirajá. 
Um santo a baixar.
Bar próximo de ser o sonhar.
Ar.
Coisa a respirar e soltar.
Verter...
Vasto cérebro dicotômico e atômico.
Trajeto travestido de cômico.
Sônico.
Mistura de samba e canto afônico.
Creio sê-lo - e sou.
Bastardo e maldizente.
Maldigo de esferas.
Jogado às feras findas.
Infinitas no sepulcro final.
Há eternidade afinal?
Terna dúvida irreal...
Resumo.
Revista entre o único e o húmus.
Resto de terra e fezes.
Falta de esqueleto e gueto.
Fazer.
Fé e grotesco a passar.
Rever.
Ter ou vislumbrar o ser.
Reaver.
Desastre.
O ato do artista em Marte.
Mística.
Mistura de ínfimos credos.
Crer.
O ridículo real...
Vicejante, enfastiado, leniente.
Nada e tudo.
Tudo e nada.
A fada afaga e intumesce de gozo a vagina.
A angina se sobrepõe à derradeira frase…
A fase é lunar.
O sol esquenta os dias.
O suor escorre e forja o quadro. 
Quiabo...
Quase não há tempo para o porre.
Vê-se, de qualquer canto, que a água não escorre.
A sentença final.
A morte.
Sorte de quem não a tem por mote.
O Norte é tudo.
O mar amiúde.
Quisera, ao menos, ter saúde...
Que o dragão da música não mate a poesia derradeira.
De uma maneira ou outra, me farei imortal, sobremaneira.
Na madrugada, a todos é dado o direito de dizer besteira.
A asneira é o discurso de quem cabula eternidade à sua maneira.

sexta-feira, 18 de novembro de 2022

"Secos & Molhados": uma pequena revolução

Por Edmilson Siqueira 


Quem não era mais ou menos jovem naqueles anos de 1973 e 1974 talvez não consiga imaginar o que foi o surgimento e o sucesso do grupo "Secos & Molhados". O Brasil era bem careta, apesar de já ter passado pela explosão da Jovem Guarda, pelos festivais da Record e da Globo e, principalmente, pelo Tropicalismo. Aliás, foi esse último que abriu as portas para manifestações artísticas que fugiam de um nacionalismo arcaico que ainda pairava na cultura brasileira. A bossa nova já andava pelo mundo, quase desconhecida aqui. A Jovem Guarda era uma tentativa de fazer rock juvenil imitando conjuntos ingleses e americanos de sucesso (muitas músicas eram péssimas versões em português) e os festivais, bem os festivais expuseram uma geração com um talento gigantesco que até hoje está por aí e que teria acontecido com ou sem festivais. 


Sobrou a Tropicália que queria dizer que o Brasil poderia sim se abrir - ao contrário do que a feroz ditadura da época dizia e mandava - que bom gosto e novidades podiam andar juntos e não existiam necessariamente só por aqui.  


A ousadia do Secos & Molhados vem na esteira dessas novidades e invenções das artes brasileiras. Quatro rapazes (depois três) despiram-se de suas identidades, pintaram o rosto de maneira extravagante, se vestiram com roupas diferentes e criaram um conjunto que aliava tudo isso a uma ótima música. O primeiro disco deles estourou a ponto de, em uma semana já ser o mais vendido no eixo Rio -São Paulo que é o que valia para as gravadoras à época. A música "O Vira" (João Ricardo e Luli) uma mistura do ritmo português com baião, tocava a toda hora em todas as rádios.

O grupo, então formado por Ney Matogrosso, João Ricardo, Gerson Conrad e Marcelo Frias, assustado com o sucesso, saiu fazendo shows pelo Brasil. Eu assisti a um deles, no ginásio do Tênis Clube de Campinas. Eles entravam, cantavam todas as músicas exatamente como estavam no LP, faziam um bis de "O Vira" e, cerca de 35 minutos depois do início, não tinham mais nada para cantar. Recebiam os aplausos e de despediam. E a plateia delirava. Uma plateia que estava um tanto quanto alheia à música mais engajada politicamente que ainda se cantava por aí, oriunda dos festivais. E também não suportava o que havia restado da Jovem Guarda. Chico, Gil, Caetano e Milton, por seus talentos que iam muito além da média, continuavam na tal crista da onda. Mas havia um público enorme ávido por novidades boas como o Secos & Molhados. 


O segundo disco veio no ano seguinte, 1974 e, quando ele foi lançado, o grupo já estava separado. E sem Ney Matogrosso para cantar, não poderia haver outro grupo com o mesmo nome. Mas o repertório do segundo disco, também com 13 músicas, é tão bom - e há quem julgue até melhor - quanto o primeiro. João Ricardo e Gerson Conrad bem que tentaram, mas não conseguiram repetir o sucesso e acabaram se perdendo por aí.

 

Já Ney Matogrosso virou o que virou: um dos melhores intérpretes da MPB até hoje, aos 80 anos, fazendo shows e demonstrando ótima vitalidade. Sua ousadia, sua ambiguidade sexual, suas fantasias, sua ótima escolha de repertório e seus shows tecnicamente irrepreensíveis fizeram dele um grande artista que sempre será lembrado muito mais pelo que foi depois do furacão "Secos & Molhados". 


E para quem quiser conhecer o que foi esse furacão, a Continental/EastWest lançou, em 1999, um CD que reúne os dois LPs do grupo, numa série chamada "Dois Momentos". Ali está toda a obra dos "Secos & Molhados", tal qual foi gravada originalmente, "remixados diretamente das fitas originais por Charles Gavin (Titãs)" como diz um destaque na capa do CD.   

Dá para ouvir o CD completo em https://immub.org/album/serie-dois-momentos-apresenta-secos-molhados e ele ainda está à venda nos bons sites do ramo. 

Cavaleiro solitário

 Por Ronaldo Faria O bar está fechado. Parece há tempo. Mas Hermínio não se dá por vencido. Enquanto houver uma sede por beber, beber-se-á. ...