quinta-feira, 31 de março de 2022

Desassossego, um disco perfeito de Bel Padovani

 Por Edmilson Siqueira 

Há muitos artistas campineiros que andam fazendo boa música por aí. Quando eu escrevia a coluna Farol, na revista Metrópole, domingueira do Correio Popular, muitos textos foram dedicados a artistas locais, nascidos aqui ou aqui radicados por força da Orquestra Sinfônica, do curso de Música da Unicamp ou mesmo pela vida noturna da cidade e seus bares com música ao vivo. 


Uma dessas artistas, campineira da gema, é Izabel Padovani. Só que, ao contrário de muitos, sua carreira se começou por aqui, se desenvolveu mais na Áustria, onde viveu dez anos. Quando voltou, participou, em 2005, do consagrado e sério Prêmio Visa de Música Brasileira. E ganhou. 


Além de uma boa grana (110 mil reais) o prêmio deu a ela a gravação de um disco pela Gravadora Eldorado. Um disco com rica produção, com repertório sem restrições e com quinze músicos participantes.  

E Bel não deixou por menos. O resultado foi Desassossego, consagrado pela crítica e, se não chegou às "paradas de sucesso" e ganhou discos de platina por aí é porque o mercado brasileiro é feito de outras coisas, não necessariamente de qualidade, não necessariamente belas e que se desmancham no ar antes de completarem um ano de vida. 

Já Desassossego é eterno, mercê não só a enorme qualidade da cantora, mas também pelo excelente repertório e pelos arranjos perfeitos e ousados. Arranjos esses devidamente assinados por Ronaldo Saggioratto, contrabaixista (e que tem acompanhado Bel nos discos e apresentações) e Marcelo Onofre, pianista e também presença constante nos trabalhos da cantora. 


A qualidade que esses dois grandes músicos acrescentaram à voz cativante de meio-soprano de Bel é coisa de gente grande. Exemplo disso é o que foi feito na segunda faixa do disco, um samba de Paulinho da Viola e Elton Medeiros - Onde A Dor Não Tem Razão - onde usaram um conjunto de saxofones (soprano, alto, tenor e barítono) para dar uma massa sonora inusitada - e de alta qualidade - ao tradicional samba.   


Antes, no disco, Bel já nos encanta com sua versão de Circuladô de Fulô, resultado da incursão de Caetano Veloso no livro Galáxias, de Haroldo de Campos, onde os textos figuram sem qualquer título e as páginas são preenchidas do começo ao fim, sem divisão de versos ou parágrafos e sem pontuação.  


Cada música do disco, mercê a qualidade do resultado, acaba sendo uma agradável surpresa ao ouvinte. A estranha e difícil letra de Pés no Chão (Mário Laginha e Maria João) flui pela voz de Bel como se já se conhecessem há muito tempo. A parceria que ela faz com o ótimo cantor Renato Braz (que já foi tema de um artigo aqui), em Dueto (Chico Buarque) não fica devendo nada ao original gravado pelo próprio Chico e Nara Leão.  


A Permuta dos Santos também alia a qualidade da interpretação com um arranjo sensacional, misturando instrumentos e vozes no acompanhamento.  

Lagrimas de Oro, de Mano Chao, é a música pop do disco, com arranjos de guitarra e palmas que se completam.  


Depois de passar novamente por Chico Buarque e Edu Lobo com Frevo Diabo, surge uma espécie de surpresa no disco. Com um arranjo completamente diferente de tudo que se ouviu até agora nessa música, Bel canta Retalhos de Cetim, de Benito de Paula. O resultado é impressionante. O popular samba foi agraciado com um inusitado upgrade. 

Song for Denise (Reinhard Micko), Ensolarada (Luiz Felipe Gama) e Um Samba na Suíça (Janet de Almeida e Haroldo Barbosa) completam o disco. 


O disco pode ser ouvido no Youtube neste endereço: https://www.youtube.com/playlist?list=OLAK5uy_l8-DpuMK8IUZlUZVss8XWCrfHy-qzrXSg 


E também pode ser comprado nos bons sites do ramo. 

quarta-feira, 30 de março de 2022

À Dona Ivone Lara

Às vezes o meu Rio de Janeiro volta incerto e brejeiro. Com rodas de umbanda, corridas na praia, porres sem saber. Um tanto de amanhecer e até ver o poeta maior, outro pouco de entardecer por detrás do morro que se enche de vidas e vozes.

Às vezes o meu Rio de Janeiro se entrega em cheiros de creolina, odores de bares, fragrâncias da amada. Com rodopios e pios do santo que baixa e sobe a cada cantar. E uma maresia que sobe e fica, se larga e passa, entre o fim e a alegoria.

Às vezes o meu Rio de Janeiro se desvanece e se entorpece de relíquias mil sob um céu de anil. E pede a contradança à mais bonita mulher que pode ser par. E roda, rodopia, ginga e se joga para cada esquina infinita e finda que não sabe acabar. 

Às vezes o meu Rio de Janeiro nem sabe quem é. Talvez seja uma cidade ou, senão, apenas o corpo de uma mulher. De Deodoro a Marechal há muito a seguir. Do Leblon até o Jacaré tem quem dá adeus e quem nunca aceita dar sequer uma ré.

Às vezes o meu Rio de Janeiro me deixa entregue ao léu. Meio Maracanã em dia de Flamengo, meio saudoso do dengo da índia que vivia depois do Irajá. Afinal, a Cidade Maravilhosa não tem muito lugar. É em cima do morro, no asfalto e ou só acolá.

Às vezes o meu Rio de Janeiro surge em novembro, fevereiro ou dezembro. Pouco importa, desde que haja entrada e, na saída, uma porta. Daqui exilado, não troco o samba pelo tango, mesmo a ter todo o respeito pelo som imortal de um frevo.

terça-feira, 29 de março de 2022

Um intérprete chamado Paulinho da Viola

Por Edmilson Siqueira 

Paulinho da Viola, como todo mundo que gosta de boa música sabe, é um desses gênios do samba, cujas músicas já se eternizaram na memória brasileira e, daqui a cem anos, continuarão sendo ouvidas e gravadas. Seus maiores sucessos são de músicas que ele compôs sozinho como Foi um Rio que Passou em Minha Vida, Pecado Capital, Rumo dos Ventos, Meu Violão, Jurar com Lágrimas, Sinal Fechado ou Bêbado Samba, entre muitos outros. 


Mas Paulinho é, além de um grande cavaquinhista, também um grande intérprete. Em todos os seus discos, ele canta músicas que fez em parcerias ou músicas de outros autores, como Sei Lá Mangueira (música que ele colocou em versos da Hermínio Belo de Carvalho) Mas Quem Disse que Eu te Esqueço (Ivone Lara e Hermínio Belo de Carvalho), A Maldade Não Tem Fim (Armando Santos), Ame (com Elton Medeiros), Alento (Paulo Cesar Pinheiro), O Ideal É Competir (Candeia e Cascatinha) e dezenas de outros.  


Pois é esse lado de intérprete que vou comentar aqui, já que Paulinho juntou num só disco composições de outros autores que ele gravou e que recebeu o nome justamente de "Paulinho da Viola - Intérprete".  


O CD que tenho é de ótima produção com uma bela foto na capa. E, na contracapa, Paulinho está sendo numa cadeira de balanço, imitando uma famosa foto do grande Pixinguinha. Um encarte com todas as letras e a ficha técnica, também bem cuidado, completam o trabalho. 


As gravações abrangem um período que vai de 1968 a 1973. Paulinho, como se sabe, sempre foi ligado a grandes sambistas, conhecidos ou não do grande público e sua generosidade levou a gravar alguns grandes sucessos desses amigos, fossem eles de que escola de samba fossem, mesmo que seja ele um portelense raiz.  


E essa amizade até lhe causou problemas. O lindo samba Sei Lá Mangueira, que Elizeth Cardoso eternizou, é uma parceria sua com Hermínio Belo de Carvalho. Pois seus amigos da Portela entortaram o nariz ao ver um dileto portelense louvar as belezas da escola rival. Pois Paulinho, para mostrar que seu amor pela azul e branco continuava incólume, escreveu Foi Um Rio que Passou na Minha Vida, voltando aos braços e abraços de sua escola. O samba é, talvez, seu maior sucesso. 


O disco com Paulinho só de intérprete é uma dessas joias que devem ser ouvidas sempre. Algumas das músicas se transformaram em sucessos do rádio na época em que foram lançadas, outras têm ótimas melodias e letras. Todas com arranjos bem-feitos e a sempre correta e agradável interpretação de Paulinho. 

As gravações são as originais e é muito bom ter em mãos essa coleção de bons e ótimos sambas que Paulinho eternizou.  


A seleção é das mais primorosas e, assim mesmo ouso dizer que muitas que mereciam estar na seleção ficaram de fora. Simplesmente as que foram gravadas depois de 73, de outros autores, já dariam pra fazer outro disco. 


Logo de cara, somos brindados com Nervos de Aço, a música que Lupicínio Rodrigues escreveu em 1947, quando encontrou seu grande amor - Iná, de quem fora noivo - casada com outro.  


Acontece, de Cartola, a segunda faixa do disco, teve em Paulinho a primeira gravação, em 1972. É um daqueles sambas emblemáticos de Cartola: linda melodia, letra perfeita. E, claro, grande interpretação de Paulinho. 


Mente ao Meu Coração (Francisco Malfitano e Pandia Pires) vem a seguir, seguida de Nega Luiz (Wilson Batista e Jorge de Castro), Mal de Amor (Raul Sampaio e Benil Santos), Duas Horas da Manhã (Nelson Cavaquinho e Ary Monteiro), Nova Ilusão (Paulo Caetano e Claudionor Cruz), Não Quero Mais Amara a Ninguém (Zé da Zilda, Cartola e Carlos Cachaça), Pra que Mentir (Noel Rosa e Vadico), Lenço (Monarco e Francisco Santana), Sentimentos (Miginha) e Doce Veneno (Valzinho, Carlos Lentine e M. Goulart). 

Como se vê trata-se de um repertório da mais alta qualidade, com boa parte da nata do samba brasileiro misturada a compositores que, se não tiveram sucessos perenes, escreveram pelo menos algumas grandes obras que Paulinho teve a sensibilidade de gravar. 

O disco inteiro pode ser ouvido neste endereço: https://www.ouvirmusica.com.br/paulinho-da-viola/710291/#album:interprete-2005 . E, claro, ainda está à venda nos bons sites do ramo. 

segunda-feira, 28 de março de 2022

A ouvir Macalé

Panificadora partida entre pães e bolachas, ou biscoitos. Há um forno crepitando maluco e um padeiro meio tarado e meio eunuco a correr entre fumaças e odores, flores despejadas na rua e um cais a borbulhar de ondas os brocados das saias das mulheres a comprarem bolos e sonhos. O tintilar de moedas e voo de notas denota que a tarde chega tardia para a noite que a envolve de luzes e cores. No asfalto, de fato, a fotografia delimita a orgia futura. No caixa, o português dono de tudo, grita entre cifras e cifrões. “Tenho aluguel para pagar, seus sem colhões!” No verbete que vira verbo na porta da padaria, o lembrete de que o tempo não para e quente é melhor de comê-lo. Defronte do prédio, dois moleques que têm na rua o seu lugar vêm para sentir no nariz que a fornada chegou. 

Jards Macalé é um dos caras, talvez o cara. Ps.: Antes de flamenguista, tijucano, sou americano, como Macalé.

sábado, 26 de março de 2022

À Roberta Sá

Pandeiro a tocar seu ritmo arrítmico diante da madrugada malfadada que me apraz. Um pedaço de arremedo. Um incansável e inefável sofrer. A dor que bate no pinho o dedilhar que o punho segue os dedos e se refaz. Uma voz a soar a sina. O sonho de um lábio molhado onde o arcanjo voraz sorve sua sede de pecado. Quem sabe a imensidão dos impropérios etéreos que se desdenham nas notas de um mascarado poeta na quarta-feira de cinzas a se desdobrar entre ser ou não ser. Um embriagado viver de memórias inenarráveis e o futuro que não existe por não ter. Há muito a se ver. Brincadeiras de asneiras e as ladeiras de uma Olinda finda no subir e descer. O inglório desdenhar de pesadelos em desmazelo, o zelo de cuidar do que resta de você. Cancioneiro de notas deletérias e etéreas. Um desgrenhado mistério que se joga em sobras devagar. A vagar me faço sem ser.

sexta-feira, 25 de março de 2022

O internacional Sergio Mendes

Por Edmilson Siqueira

Sergio Mendes é um desses artistas brasileiros que, a partir de sua ida definitiva para os EUA, se tornou universal. Fez sucesso em várias partes do mundo e, principalmente, nos EUA, mais do que outros ícones da MPB. Isso porque ele soube fazer mixagem perfeita entre a música brasileira e o pop e jazz norte-americano. Pianista dos bons, já tinha passado pelos EUA, mas de volta ao Brasil, no início dos anos 1960 produziu ótimos discos. Um deles, comandando o Bossa Rio, é antológico: Você ainda não ouviu nada! é o ousado título (ousado para 1964). Nele, Sérgio Mendes juntou Tião Neto, Edison Machado, Raul de Souza, Edson Maciel, Hector Costita e Aurino Ferreira. E nos arranjos, além do próprio Sergio Mendes, estão nada mesmo que Moacir Santos e Antonio Carlos Jobim. 


Aliás, é Jobim o autor de um dos textos que acompanha o LP original. No trecho final, escreveu nosso maestro soberano, sobre Sergio e sobre o disco que ele ajudou a fazer: “Além de ser um intuitivo é um estudioso. Coisa rara, pois, geralmente, os intuitivos ficam só intuitivos e os estudiosos seguem estudiosos. Agora tive oi prazer (e o sofrimento) de colaborar com ele neste disco. E foram mil noites sem dormir e café e cigarros. Depois eu ia levar Serginho até a Praça XV. Comprávamos os jornais do dia enquanto vinha chegando a barca que o levaria de volta à sua Niterói. Não sou profeta, mas creio que este disco, produto de muito trabalho e amor, abra novos caminhos no panorama da nossa música”. E abriu mesmo.  


Mas esse disco fica para um próximo artigo. Hoje, vou falar sobre outro, mais recente, de 2006, quando Sergio Mendes tinha 65 anos (tem 81 hoje), onde ele junta a bossa nova, a boa MPB com o pop-rock, o hip rock e o jazz, num caldeirão que só o bom gosto e o talento de Sergio Mendes poderiam transformar num som agradável e num excelente disco. 


O título é Timeless. E nomes como The Black Eyed Peas, Eryka Badu, Q-Tip, will.i.an, Jill Scott, Mr. Vegas, John Legend, Pharoahe Monch, Justin Timberlake, Chai 2na, Debi Nova e Black Thought estão todos lá, mostrando versões próprias de antigos sambas e bossa novas, dando uma nova (e boa!) roupagem a sucessos que conhecemos e amamos. 


Mas, além desses nomes todos, que podem soar estranhos ao amante da MPB, temos também Gracinha Leoporace (mulher de Sergio) cantando maravilhosamente Berimbau e Consolação, com a participação ainda de ninguém menos que Steve Wonder. E na faixa Fo'Hop (se você leu Forró, é isso mesmo...), a presença do autor, nosso grande Guinga. E a música é um forró mesmo, delicioso por sinal.  


Depois desse disco, Sergio Mendes gravou mais cinco e, aos 81 anos, continua fazendo planos de novas apresentações e gravações, pois continua sendo um artista requisitado em várias partes do mundo. 

Timeless é um disco que, de certa forma, marca uma fase importante na música de Sergio Mendes, através dessa aliança com a música norte-americana dos guetos que estourou no mundo inteiro. Mas é, principalmente, um excelente disco pra se ouvir a qualquer hora. Afinal, Sergio Mendes tem provado, ao longo de mais de 50 anos, que tudo que faz tem qualidade, bom gosto e muito talento.  

O álbum completo pode ser ouvido no YouTube, inclusive com um clip da primeira música, nesse endereço: https://www.youtube.com/playlist?list=OLAK5uy_nTcu86Mttj2FbnyvtT8VZR0NLvS7IkqkI 

Zé Geraldo

 Por Ronaldo Faria A viola viola o sonho do sonhador como se fosse certo invadir os dias da dádiva que devia alegria para a orgia primeira...