quarta-feira, 4 de janeiro de 2023

Jorge Vercillo

Por Ronaldo Faria


Ser o que se é, brincadeira sabe-se lá do que. Talvez uma bruma perdida num oceano qualquer, um pedaço de infinito tão finito que brinca de ser real. E nos faz velejar como náufragos perdidos num mar que inexiste e nós, meros personagens de trama qualquer, nos subjugamos a remar. Apenas personagens em loucura multidimensional a cumprir um jogo qualquer, como um joguete que diverte sabe-se lá quem. E quando a pilha acaba? Acaba? Lógico que sim. Depende apenas do quanto o jogador se cansa de controlar vida alheia. Sejamos, pois, interessantes à trama. Personagens na passagem deletéria que tiver que ser.

“Nada mais é o amor do que o encontro das águas.” (Jorge Vercillo)

terça-feira, 3 de janeiro de 2023

Historinha de dois clássicos da MPB

Por Edmilson Siqueira 

Carlinhos Lyra era um jovem e exímio violonista, que vivia das aulas que dava às meninas de Copacabana (que dificilmente resistiam aos seus encantos, mas isso é outra história) e que conheceu o já consagrado poeta Vinicius de Moraes. Este, percebendo o talento do jovem, logo foi fazendo letras para suas inspiradas canções.  


Vinicius já era parceiro e amigo de Tom Jobim e, numa tarde, no início da década de 1960, depois de terminar uma letra para uma música de Lyra, embrulhou o papel que retirou da máquina de escrever, dobrou em quatro e botou no bolso de fora do paletó. E decidiu entregar também outra letra já pronta, pra Jobim, que botou no outro bolso do paletó. 


Seu plano era passar, primeiro, no apartamento de Lyra e, depois no de Jobim. O motivo do itinerário era mais geográfico - Lyra morava mais perto - mas era etílico também. Vinicius era fã de um bom uísque e, no apê de Jobim, o papo inevitavelmente seria mais longo e o estoque que lá havia, garantiria a noite toda, se preciso.  


Ao chegar no apartamento de Lyra, Vinicius foi logo tirando a letra do bolso do paletó: "Carlinhos, taí a letrinha pra musiquinha que você fez" (ele tinha a mania de, talvez para demonstrar carinho, falar tudo no diminutivo). "Enquanto você vê se está tudo certinho, vou preparar um uisquinho pra mim. Tem gelo?" 


Carlinhos pegou uma forma de gelo na geladeira, deu ao poeta, e partiu, com a letra na mão, para o sofá onde o violão o esperava. Vinicius ficou ao longe, ouvindo os acordes e sorvendo o scotch com o prazer de sempre. 

Depois de alguns minutos, quando Vinicius já estava pensando em reabastecer o copo, Carlinhos lhe disse: "Poetinha, eu não conseguindo encaixar a letra na melodia. Tá meio estranha a divisão, não tá dando mesmo." 

Vinicius estranhou, disse que havia feito tudo dentro dos conformes, e pediu para Carlinhos cantar em voz alta.  


Então Carlinhos começou cantar, tentando colocar a letra de Vinicius dentro da melodia. Vinicius levou um susto: "Não, peraí! Essa letra não é para você. É para um sambinha que fazendo com o Tonzinho." E tirou, do outro bolso de paletó a letra que havia feito para a melodia de Carlinhos, que chamou de “Minha Namorada”. Aí Carlinhos cantou, a letra toda perfeita, de uma das canções que se tornariam clássicas da bossa nova, que teve dezenas de gravações e até hoje é tocada e gravada por aí. 


A outra letra, do outro bolso do paletó, que Vinicius disse ser um "sambinha para o Tonzinho" era simplesmente “Garota de Ipanema”, a música da bossa nova mais tocada e gravada no mundo, rivalizando em vendas e gravações com grandes sucessos da língua inglesa como “Yesterday”, de Paul MacCartney e “Summertime” de George Gershwin. 

segunda-feira, 2 de janeiro de 2023

Tom do Zé para Zé

 Por Ronaldo Faria

Como é difícil largar tua mão com os dedos a correrem sem querer se largar. Se deixando e se agarrando, pedindo “não se vá”. “Não me deixe”. “Não me deixe te deixar”. A palma molhada, o coração a palpitar. Paixões passadas, presentes, pedintes, ausentes. À espera de um tempo que virá e verterá uniforme, único, sôfrego, escondido num canto qualquer do coração.

Por isso é difícil largar tua mão. Como é impossível não querer estar em teus lábios, entre línguas e afagos. Como é improvável dormir longe do teu corpo, a me esconder num velho e inacabado sonho louco. A ver que os dias passam voando, onde os segundos são nada e a eternidade soa como uma prostituta vestida de cetins e purpurina, como uma velha e pichada rima num muro da vida.

Por isso, lutando para ficar, a pedir tuas carícias, teu toque de dedos pequenos e rituais amenos, me vejo a grudar na tua mão sem querer mais largar. Entre carícias maldadas, olhares roubados, risos guardados, emoções desmedidas. Como poema feito num só fonema. Entre todo o vocabulário, apenas Zé. 

Talvez dobrado, como retreta em praça de interior. Na conta do que vier. Assim, um dia, nesta ou noutra “vida”, se prepare: não vou mais desgrudar das tuas mãos. Vou domá-las, vê-las ao meu corpo correr, me acariciar, tocar, brincar de dar prazer, gozar e chorar. A minhas farão o mesmo, como o disparo de um cavalo a levar-te nua em pelo. E nossas mãos serão uma única canção, nossos corpos verão o amor e a eternidade nos pedirá “tem dó”. Senão, irá apenas implorar: “Tenham dó por ser o amor maior apenas um só”.

sábado, 31 de dezembro de 2022

Feliz 2023...

 Por Ronaldo Faria


E lá se vai mais um ano. Lá se vão 365 dias rápidos, lépidos e quiçá, até, faceiros. Tempos de penumbras, trevas, trovas incautas, saudades mil, como beijos que não se fizeram molhados, retardados e retraídos como num cinema. Tudo à espera de algo se sabe lá o quê. E lá se vai mais um ano, desses que se esvaem desde que Nostradamus errou sua profecia. Um dia. Mais um dia. Outro novo dia. Como uma diáspora. Algo perdido entre uma esquina e outra, uma sina ou outra. Outrora seria apenas saudade do que foi e saudações pelo que ainda virá. Mas, o que há ou haverá? Saber-se-á... Talvez um final demente, desses que a vida nos devolve como semente. Senão, uma verdade que mente. Que se desmente a cada segundo que fica sempre para trás. Algo que ao algo apraz. Metástase de um tempo qualquer, para aquilo que vier. Senão, seja o que for e quiser. Num tanto faz ou se fez, faça-se aquiescência e frio, febris tormentos ou tormentas ao vento. Na ponta da navalha, qualquer lado vale estar sobre o fio. Entre esquinas e sinas, sinônimos do aquém, vamos a caminhar num delinear que se desfaz na desfaçatez que cobre rosto e resto para o porém do depois do amor, mínimo, maximizado no descompor de solidões e paixões que cabem num quadrado de uma cama qualquer. Na fé em descalabro o que há entre o inferno e o que de perdido se fez achado. Na ponta do machado, o alvo. E assim continuamos a viver: sínteses de luas que brilham, sóis que aquecem e chuvas que desaguam entre uma nuvem e a próxima canção.

sexta-feira, 30 de dezembro de 2022

Histórias de uma música

Por Edmilson Siqueira 


Ao invés de comentar um disco, vou contar duas histórias de uma mesma música, que se completam.  


Foi num programa chamado Starling Cast no YouTube que eu ouvi a história que se segue, contada por um de seus personagens.  Quem contou foi ninguém menos que Roberto Menescal e os outros personagens são "apenas" Elis Regina, Francis Hime e Chico Buarque de Holanda. A música que enreda essas quatro é a fantástica "Atrás da Porta". 


Aliás, antes da história do Menesca (apelido mais ou menos universal do grande compositor), há uma outra, sobre a mesma música, contada por Olívia Hime, mulher do autor da música. Diz ela que, depois de um almoço em sua casa, “os homens (Chico e Francis) foram para o piano para Francis mostrar uma melodia que tinha feito. A intenção, claro, era que Chico botasse a letra.”  


"Os dois tinham bebido bastante vinho no almoço e estavam meio de pileque", conta ela". "Francis tocou a música e Chico começou a escrever a letra. Ele estava em pé ao lado do Francis e quando chegou naquela parte que diz 'e me arrastei e te arranhei e me agarrei nos teus cabelos..." o Chico ia agarrando o Francis, desmanchando o cabelo dele e ambos morrendo de rir. Riram tanto que a letra parou ali, ficou faltando a segunda parte que Chico disse que depois faria". 

A segunda parte dessa história é a que foi contada pelo Menesca no Starling Cast. Diz ele: "Depois de um bom papo com Elis Regina, ficou decidido que eu iria produzir o novo disco dela. Músicas? Ela me disse: 'Quero duas do Jobim, duas do Milton, duas do Caetano, duas do Gil e duas do Chico, todas inéditas'. Eu perguntei: 'Você já tem as músicas?'  


Ao ouvir um "não" como resposta, Menescal lhe disse que seria muito difícil músicas inéditas desses compositores, pois eles estavam carregados de encomendas. Elis duvidou, tentou, ligou para todos eles e ninguém tinha música nova pra ela. Menescal então disse: "Deixa que eu arranjo".  Como produtor da gravadora, ele recebia umas dez fitas cassetes por semana, de novos compositores. Durante um mês ele selecionou o que achou melhor e foi levar pra Elis. Ela gostou de tudo que ouviu, principalmente uma tal de “Bala com Bala” de João Bosco e Aldir Blanc. 


A última fita era do Francis e ela não gostou de nenhuma. Só que começaram a conversar e não desligaram o gravador. A fita continuou rodando e, depois de alguns minutos, começaram a ouvir o Francis cantando: "Quando olhaste bem nos olhos meus, e o teu olhar era de adeus..." Os dois ficaram extasiados com a música, cuja segunda parte era só um lálárilálá, sem letra. Menescal ligou pro Francis que disse que a música estava com o Chico há uns dois anos pra ele terminar a letra. Ele foi então atrás do Chico. Chegou lá ligou o gravador com o Francis cantando. Chico reconheceu: "Essa é do Francis e minha".  


Ao ouvir Elis cantando, sem a segunda parte, Chico rasgou um embrulho de pão que estava por perto (ambos estavam na cozinha, pois o gravador estava sobre a geladeira, segundo Menescal), e começou a rabiscar ali mesmo o resto da letra ('Dei pra maldizer o nosso lar, pra sujar teu nome, te humilhar...") que ficou pronta em menos de um minuto.


No dia seguinte, Elis completou a gravação, que foi muito difícil, segundo Menescal, porque Elis, toda vez que ia cantar, começava a chorar, emocionada. Mas conseguiram. E o Brasil ganhou uma música sensacional e uma das melhores interpretações da melhor cantora que já apareceu nesse país.  


A entrevista com Roberto Menescal (com mais detalhes) no Starling Cast está aqui: https://www.youtube.com/watch?v=YPTHoKxT7DM&t=318s 


Já a magistral interpretação de Elis para a música de Francis e Chico, está aqui, no programa Ensaio da TV Cultura: https://www.youtube.com/watch?v=02VJ-Y1IXzI 

quinta-feira, 29 de dezembro de 2022

Tijuca com Tim Maia

 Por Ronaldo Faria

Tijuca. Som de soul. Cercania de morros e montes, balas tracejadas, trajetos de Zona Norte em mistura de cadências, esquinas e sorte. Tijuca minha, do Tim que nasceu do lado, da loucura da Maria e da doideira do Maia. Um monte de edifícios erguidos nas décadas de anos que se perderam nos idos dourados de antigamente. Ruas agora encravadas e cravadas nas favelas que acendem velas para os mortos das febres vermelha e amarela, entre tiros de AR-15 e baforadas de um cachimbo de crack, cheirada antevista, fumaça ao léu.

Tijuca berço meu, de brincadeiras sem medo, pontapés sobre o gol e nada de chamego. Bairro de praças mil, de bandeiras, Afonsos e Saens, todas hoje dignas de pena. Berço de cinemas, sanduíches de atum frio, viagens loucas entre sussurros e fonemas, lambidas e edemas. Cataclismos juvenis, prédios gigantescos de apenas quatros andares, amores e limiares, mães de santo visitadas para dizerem o que a Leila há muito havia dito e dava certo. Salve Maria Conga! Tomara os tambores do passado voltem a bater no mesmo ritmo...

Tijuca de craques do futebol de mesa, de peneiras que nos anos 70 traziam gênios por muito pouco ou nada quase (tristeza que tão pouco também tivesse). Oblack, minha benção a ti, maior atleta de minha vida. Mais de mil gols marcados. Tijuca de incêndios de papel higiênico, de pesadelos malversados, de cobertas de taco, de um caminhar a colégios públicos e mágicos, quase imaginários. Tijuca de um garoto cabeçudo e burrinho, que foi crescendo e aprendendo meio solitário e outro tanto sozinho. Que por lá virou rato de apelido, líder de arrimo, garoto em desatino. Pequeno de tamanho, de sonhos e esquinas a cruzar. Um tijucano que pouco via o mar. Que até os 14 anos era um ser da Zona Norte, entre a perseguição sobre telhados ao Cara de Cavalo e a morte insone e sem nome.

Tijuca, berço e manjedoura. Agora digitada com o pouco de lucidez que ainda me afaga. Ao fundo, Tim Maia. Nosso, meu e teu transverso mundo. Em passos de soul para buscar mais vodca no congelador. Tu és, eu sou. Tijuca carioca. Agora cortada por metrô, para mim ainda algo distante da infância, retrô. Com seus cachorros de bronze, talvez chegada do bonde 11. Daqui, no calor abafado que te preenche na bacia preenchida de morros, nos uivos dos cachorros a mostrarem que o bonde quer subir na bala o ponto do senhor da favela de tal, te saúdo. Tijuca, começo de tudo. No fim de quase nada, lembrei de ti, figura guardada no meu coração, escondida no meu submundo. Onde o gigante, adormecido, te guarda entre esquinas e parques, entre feiras livres e charques.

A ouvir, quase em alfa, o Tim Maia.

quarta-feira, 28 de dezembro de 2022

O jazz caribenho do genial Michel Camilo

Por Edmilson Siqueira 

Michel Camilo, sobre quem vou escrever hoje, nasceu em Santo Domingo, na República Dominicana. Estudou durante 13 anos no Conservatório Nacional obtendo o grau de professor catedrático de Música e aos 16 anos tornou-se o mais novo membro da Orquestra Sinfônica Nacional de seu país. Ele se mudou para Nova York em 1979 para continuar seus estudos na Mannes and Juilliard School of Music. Desde sua estreia no Carnegie Hall em 1985, ele se tornou uma figura proeminente, apresentando-se regularmente em festivais e salas de concerto nos Estados Unidos, Europa, Japão, Ásia, Oriente Médio, América do Sul e Caribe.  


Embora tenha muitas músicas dele no computador, pinceladas aqui e ali, e ele já tenha gravado, até 2019, 27 discos, tenho apenas um disco dele, gravado em 1988, três anos depois de sua apresentação no Carnegie Hall, cujo título é apenas "Michel Camilo". Foi o terceiro da carreira. Nem me lembro onde comprei ou se ganhei de alguém. O certo é que ouvi muito seu vibrante piano, sua técnica arrojada e sua sensibilidade de grande compositor.  

Todas as músicas são de sua autoria e o CD que tenho foi, primeiro, um LP, sobre o qual Jeff Potter, escreveu, na contracapa transformada em encarte: "É difícil rotular o som de Michel. A base da música é o jazz, para o qual Michel traz suas raízes caribenhas com toques de funk. Neste álbum, o lado um nos permite saborear ingredientes separados do molho, voltando-se mais para o elemento jazz, desde a fumegante e direta "Crosswords" até o alto lirismo de "Nostalgia". O lado dois apresenta uma performance mais vigorosamente mexida, onde os ingredientes se sobrepõem com bom gosto, culminando com a peça central do álbum, "Caribe", o tipo de som mais próximo de Camilo que estimula o êxtase balançando e agitando o público a seus pés." 


Michel também deve ser também fã da música brasileira. A sétima faixa se chama "Pra Você" (For Tanai Maria) e se trata de um rasgado baião, com algum toque de sofisticação caribenha. E a faixa seguinte é "Blue Bossa", outra referência às coisas nossas, que, pela sua fortaleza e ritmo remete aos afros sambas de Baden Powell 


Além das músicas já citadas, o disco traz ainda "Suite Sandrine Part 1", que abre os trabalhos; "Dreamlight", Sunset (Interlude/Suite Sandrine); "Yarey" e "Caribe". 


Se você conhece apenas os mais recentes trabalhos de Michel Camilo ou não conhece nada desse ótimo artista, esse CD é uma boa pedida, para ficar por dentro do seu sólido início ou para perceber que ali estavam todas as raízes de uma carreira promissora numa terra onde a concorrência é enorme e, quem vem de fora, tem de ter muito talento para se firmar, como o é presente caso.  


O disco está ainda à venda por aí, nos bons sites do ramo. Não encontrei para ser ouvido, mas uma boa mostra da grande arte de Michel Camilo pode ser conferida nessa sua apresentação do grande sucesso "Take Five", de Paul Desmond, lançada e imortalizada pelo The Dave Brubeck Quartet: https://www.youtube.com/watch?v=ezkrkxg536o . 

Cavaleiro solitário

 Por Ronaldo Faria O bar está fechado. Parece há tempo. Mas Hermínio não se dá por vencido. Enquanto houver uma sede por beber, beber-se-á. ...