sexta-feira, 6 de janeiro de 2023

O termo do Arnaldo Antunes

Terminar o inacabável, o impensável, o imponderável, o fortuito tempo sem termo assinado ou assassinado de viver como o tempo fosse foice a ceifar a vida. Foi-se. E voltar ao passado remoto e impróprio que o impropério esconde entre o cheio e o vazio d’alma, para o retorno ser mais claro e sentido. Saber ser sem sê-lo, virar carta sem selo, ouvir a música num cello perdido no meio da madrugada tragada na dor. Brincar de se afogar no vagar de um sonho inesperado. Ser samba e jazz. Assim, se valer de coisa qualquer, sentir os lábios da mulher, afagar os pelos da filha que habita o corpo em quatro patas e lascas de felicidade finda. Ser a vida linda e incrédula, depender da cédula suja de sangue e suor, cerzir o que ainda há de vir no próximo porvir. Ser o que ainda se quer ser na etérea e redonda cama. E brincar nas ondas de espuma na banheira quente e frenética que se esconde numa vicinal entre duas estradas e veias mil. Quem sabe depois alguém não passa de cor anil para fazer tudo rebrilhar outra vez. Ou haverá um esconderijo nas profundezas mais superficiais que habitam e coabitam o ser e estar. Daqui, entre goles de copo e Che vindo de um canavial, brinco de recriar trilhas e trovas entre falésias e fusões nucleares de molares a baterem. Talvez umas línguas em perfídia, pérfidas e banais pernas que se dobram impávidas ao colosso do amor. Num canto, à espera do fim, a mesma dor. Aquela que se desdobra profícua como abóbora num plantio infindo. Quem a haverá de comer? Quem sabe um poeta louco e roto a dedilhar, uma mulher a cravar têmporas e trovas nas trevas que a dor do outrem traz, um par de bonecos que alguém mexe com as mãos feito marionetes sem alma e sem vestes. Assim, quem sabe ao fim de outra peça sem pregas e portais, haverá um sentimento único e sem mais. Um limite entre a limítrofe saudade que a maldade da separação faz. Afinal, nada me apraz. Nem o sol, nem a lua ou a chuva que pinga incapaz. Talvez, quem saberá, no além-mar, chegue o alvará da soltura de ninguém. Ou, como diria o poeta, “a casa é sua, porque não chega agora... nem o prego aguenta mais o peso desse relógio”.

quinta-feira, 5 de janeiro de 2023

Jane Monheit, um show de cantora

Por Edmilson Siqueira

O disco começa com uma voz apresentando a cantora à plateia. Depois da apresentação, palmas e ela começa a cantar, a princípio sem qualquer acompanhamento. A música é um clássico: "Over The Rainbow" E. Y. Hairburg e Harold Arlen). A voz é segura e a interpretação beira à perfeição. Quando o acompanhamento se faz presente, melhora ainda mais. Se você está ouvindo sem saber do que vem a seguir, vai pensar, certamente, que se trata de uma ótima cantora e que o repertório será de músicas lenas, com violinos chorosos e uma performance vocal muito boa, mas parecida com outras cantoras que vivem da gravação de standards da música norte-americana.  


Mas, quando começa a segunda música, já dá pra perceber que toda a qualidade da primeira tinha algum significado: a cantora é Jane Monheit e seu repertório é ótimo. 


Gravado ao vivo para um DVD, no Rainbow Room, que fica no 65º andar do Rockefeller Center em Nova York, em 2003, de onde foi extraído o CD, já na segunda música, que começa com um contrabaixo suingado, Jane explora as possibilidades jazzísticas de "Just Squeeze Me" (Duke Ellington e L. Gaines), mostrando qualidade de improvisos das grandes cantoras de jazz. 


E, para quem gosta de jazz e já estaria admirando a performance anterior, a terceira faixa é covardia: Jane vai de "Chega de Saudade" (Jobim e Vinicius, com letra em inglês de Jon Hendricks e Jessie Cavanaugh), o famoso "No More Blues", acompanhada apenas do violão (muito bom, por sinal) de Rene Toledo e pelo contrabaixo de ninguém menos que Ron Carter. Um show. 

E Jane continua com a nossa música na quarta faixa, onde ela canta a letra de Ray Gilbert para a mús8ca de Jobim e Aloysio de Oliveira, a maravilhosa "Dindi". É outro momento marcante no disco. 


A quinta faixa é "More Than You Know" (W. Rose, E. Vincent, E. Eliscu e Youmans) mantém o clima de jazz e também serve para Jane mostrar suas qualidades vocais com alguns scats muito bem colocados.  


O disco todo acaba sendo, pra quem não conhece a cantora, uma grande e agradável surpresa. E para os brasileiros, ela volta a encantar na décima faixa. A introdução séria da orquestra, em tons graves, prepara o clima para o hit de Ivans Lins e Vitor Martins, "Começar de Novo". E ela canta em português! Outro show de interpretação que chega a emocionar. 

Além de alguns clássicos como o já mencionado "Over the Rainbow", há ainda "Tea for Two" (Vincent Youmans e Irving Caesar) e Cheek to Cheek (Leonard Bernstein, Betty Comden e Aldolph Green). 

Mas bom mesmo é quando, na décima-quinta faixa ela ataca de "Waters of March" de Jobim. Antes de cantar ela diz algumas palavras elogiosas citando Antonio Carlos Jobim, como uma reverência ao nosso maestro soberano. A interpretação de "Águas de Março" é de uma cantora com total intimidade com o a complicada letra e os mais complicados ainda caminhos da melodia, com suas modulações todas. Não fica a dever nada para as melhores gravações da música, inclusive com um final totalmente inesperado e diferente.   


Por fim, "Some Other Time"(Betty Comden, Adolph Green e Leonard Bernstein) fecha um disco sob aplausos demorados da plateia. 


Tanto o DVD quanto o CD ainda estão à venda nos bons sites do ramo. E o show pode ser ouvido e assistido na íntegra no YouTube em https://www.youtube.com/watch?v=1N3_s-dyRPs . 

quarta-feira, 4 de janeiro de 2023

Jorge Vercillo

Por Ronaldo Faria


Ser o que se é, brincadeira sabe-se lá do que. Talvez uma bruma perdida num oceano qualquer, um pedaço de infinito tão finito que brinca de ser real. E nos faz velejar como náufragos perdidos num mar que inexiste e nós, meros personagens de trama qualquer, nos subjugamos a remar. Apenas personagens em loucura multidimensional a cumprir um jogo qualquer, como um joguete que diverte sabe-se lá quem. E quando a pilha acaba? Acaba? Lógico que sim. Depende apenas do quanto o jogador se cansa de controlar vida alheia. Sejamos, pois, interessantes à trama. Personagens na passagem deletéria que tiver que ser.

“Nada mais é o amor do que o encontro das águas.” (Jorge Vercillo)

terça-feira, 3 de janeiro de 2023

Historinha de dois clássicos da MPB

Por Edmilson Siqueira 

Carlinhos Lyra era um jovem e exímio violonista, que vivia das aulas que dava às meninas de Copacabana (que dificilmente resistiam aos seus encantos, mas isso é outra história) e que conheceu o já consagrado poeta Vinicius de Moraes. Este, percebendo o talento do jovem, logo foi fazendo letras para suas inspiradas canções.  


Vinicius já era parceiro e amigo de Tom Jobim e, numa tarde, no início da década de 1960, depois de terminar uma letra para uma música de Lyra, embrulhou o papel que retirou da máquina de escrever, dobrou em quatro e botou no bolso de fora do paletó. E decidiu entregar também outra letra já pronta, pra Jobim, que botou no outro bolso do paletó. 


Seu plano era passar, primeiro, no apartamento de Lyra e, depois no de Jobim. O motivo do itinerário era mais geográfico - Lyra morava mais perto - mas era etílico também. Vinicius era fã de um bom uísque e, no apê de Jobim, o papo inevitavelmente seria mais longo e o estoque que lá havia, garantiria a noite toda, se preciso.  


Ao chegar no apartamento de Lyra, Vinicius foi logo tirando a letra do bolso do paletó: "Carlinhos, taí a letrinha pra musiquinha que você fez" (ele tinha a mania de, talvez para demonstrar carinho, falar tudo no diminutivo). "Enquanto você vê se está tudo certinho, vou preparar um uisquinho pra mim. Tem gelo?" 


Carlinhos pegou uma forma de gelo na geladeira, deu ao poeta, e partiu, com a letra na mão, para o sofá onde o violão o esperava. Vinicius ficou ao longe, ouvindo os acordes e sorvendo o scotch com o prazer de sempre. 

Depois de alguns minutos, quando Vinicius já estava pensando em reabastecer o copo, Carlinhos lhe disse: "Poetinha, eu não conseguindo encaixar a letra na melodia. Tá meio estranha a divisão, não tá dando mesmo." 

Vinicius estranhou, disse que havia feito tudo dentro dos conformes, e pediu para Carlinhos cantar em voz alta.  


Então Carlinhos começou cantar, tentando colocar a letra de Vinicius dentro da melodia. Vinicius levou um susto: "Não, peraí! Essa letra não é para você. É para um sambinha que fazendo com o Tonzinho." E tirou, do outro bolso de paletó a letra que havia feito para a melodia de Carlinhos, que chamou de “Minha Namorada”. Aí Carlinhos cantou, a letra toda perfeita, de uma das canções que se tornariam clássicas da bossa nova, que teve dezenas de gravações e até hoje é tocada e gravada por aí. 


A outra letra, do outro bolso do paletó, que Vinicius disse ser um "sambinha para o Tonzinho" era simplesmente “Garota de Ipanema”, a música da bossa nova mais tocada e gravada no mundo, rivalizando em vendas e gravações com grandes sucessos da língua inglesa como “Yesterday”, de Paul MacCartney e “Summertime” de George Gershwin. 

segunda-feira, 2 de janeiro de 2023

Tom do Zé para Zé

 Por Ronaldo Faria

Como é difícil largar tua mão com os dedos a correrem sem querer se largar. Se deixando e se agarrando, pedindo “não se vá”. “Não me deixe”. “Não me deixe te deixar”. A palma molhada, o coração a palpitar. Paixões passadas, presentes, pedintes, ausentes. À espera de um tempo que virá e verterá uniforme, único, sôfrego, escondido num canto qualquer do coração.

Por isso é difícil largar tua mão. Como é impossível não querer estar em teus lábios, entre línguas e afagos. Como é improvável dormir longe do teu corpo, a me esconder num velho e inacabado sonho louco. A ver que os dias passam voando, onde os segundos são nada e a eternidade soa como uma prostituta vestida de cetins e purpurina, como uma velha e pichada rima num muro da vida.

Por isso, lutando para ficar, a pedir tuas carícias, teu toque de dedos pequenos e rituais amenos, me vejo a grudar na tua mão sem querer mais largar. Entre carícias maldadas, olhares roubados, risos guardados, emoções desmedidas. Como poema feito num só fonema. Entre todo o vocabulário, apenas Zé. 

Talvez dobrado, como retreta em praça de interior. Na conta do que vier. Assim, um dia, nesta ou noutra “vida”, se prepare: não vou mais desgrudar das tuas mãos. Vou domá-las, vê-las ao meu corpo correr, me acariciar, tocar, brincar de dar prazer, gozar e chorar. A minhas farão o mesmo, como o disparo de um cavalo a levar-te nua em pelo. E nossas mãos serão uma única canção, nossos corpos verão o amor e a eternidade nos pedirá “tem dó”. Senão, irá apenas implorar: “Tenham dó por ser o amor maior apenas um só”.

sábado, 31 de dezembro de 2022

Feliz 2023...

 Por Ronaldo Faria


E lá se vai mais um ano. Lá se vão 365 dias rápidos, lépidos e quiçá, até, faceiros. Tempos de penumbras, trevas, trovas incautas, saudades mil, como beijos que não se fizeram molhados, retardados e retraídos como num cinema. Tudo à espera de algo se sabe lá o quê. E lá se vai mais um ano, desses que se esvaem desde que Nostradamus errou sua profecia. Um dia. Mais um dia. Outro novo dia. Como uma diáspora. Algo perdido entre uma esquina e outra, uma sina ou outra. Outrora seria apenas saudade do que foi e saudações pelo que ainda virá. Mas, o que há ou haverá? Saber-se-á... Talvez um final demente, desses que a vida nos devolve como semente. Senão, uma verdade que mente. Que se desmente a cada segundo que fica sempre para trás. Algo que ao algo apraz. Metástase de um tempo qualquer, para aquilo que vier. Senão, seja o que for e quiser. Num tanto faz ou se fez, faça-se aquiescência e frio, febris tormentos ou tormentas ao vento. Na ponta da navalha, qualquer lado vale estar sobre o fio. Entre esquinas e sinas, sinônimos do aquém, vamos a caminhar num delinear que se desfaz na desfaçatez que cobre rosto e resto para o porém do depois do amor, mínimo, maximizado no descompor de solidões e paixões que cabem num quadrado de uma cama qualquer. Na fé em descalabro o que há entre o inferno e o que de perdido se fez achado. Na ponta do machado, o alvo. E assim continuamos a viver: sínteses de luas que brilham, sóis que aquecem e chuvas que desaguam entre uma nuvem e a próxima canção.

sexta-feira, 30 de dezembro de 2022

Histórias de uma música

Por Edmilson Siqueira 


Ao invés de comentar um disco, vou contar duas histórias de uma mesma música, que se completam.  


Foi num programa chamado Starling Cast no YouTube que eu ouvi a história que se segue, contada por um de seus personagens.  Quem contou foi ninguém menos que Roberto Menescal e os outros personagens são "apenas" Elis Regina, Francis Hime e Chico Buarque de Holanda. A música que enreda essas quatro é a fantástica "Atrás da Porta". 


Aliás, antes da história do Menesca (apelido mais ou menos universal do grande compositor), há uma outra, sobre a mesma música, contada por Olívia Hime, mulher do autor da música. Diz ela que, depois de um almoço em sua casa, “os homens (Chico e Francis) foram para o piano para Francis mostrar uma melodia que tinha feito. A intenção, claro, era que Chico botasse a letra.”  


"Os dois tinham bebido bastante vinho no almoço e estavam meio de pileque", conta ela". "Francis tocou a música e Chico começou a escrever a letra. Ele estava em pé ao lado do Francis e quando chegou naquela parte que diz 'e me arrastei e te arranhei e me agarrei nos teus cabelos..." o Chico ia agarrando o Francis, desmanchando o cabelo dele e ambos morrendo de rir. Riram tanto que a letra parou ali, ficou faltando a segunda parte que Chico disse que depois faria". 

A segunda parte dessa história é a que foi contada pelo Menesca no Starling Cast. Diz ele: "Depois de um bom papo com Elis Regina, ficou decidido que eu iria produzir o novo disco dela. Músicas? Ela me disse: 'Quero duas do Jobim, duas do Milton, duas do Caetano, duas do Gil e duas do Chico, todas inéditas'. Eu perguntei: 'Você já tem as músicas?'  


Ao ouvir um "não" como resposta, Menescal lhe disse que seria muito difícil músicas inéditas desses compositores, pois eles estavam carregados de encomendas. Elis duvidou, tentou, ligou para todos eles e ninguém tinha música nova pra ela. Menescal então disse: "Deixa que eu arranjo".  Como produtor da gravadora, ele recebia umas dez fitas cassetes por semana, de novos compositores. Durante um mês ele selecionou o que achou melhor e foi levar pra Elis. Ela gostou de tudo que ouviu, principalmente uma tal de “Bala com Bala” de João Bosco e Aldir Blanc. 


A última fita era do Francis e ela não gostou de nenhuma. Só que começaram a conversar e não desligaram o gravador. A fita continuou rodando e, depois de alguns minutos, começaram a ouvir o Francis cantando: "Quando olhaste bem nos olhos meus, e o teu olhar era de adeus..." Os dois ficaram extasiados com a música, cuja segunda parte era só um lálárilálá, sem letra. Menescal ligou pro Francis que disse que a música estava com o Chico há uns dois anos pra ele terminar a letra. Ele foi então atrás do Chico. Chegou lá ligou o gravador com o Francis cantando. Chico reconheceu: "Essa é do Francis e minha".  


Ao ouvir Elis cantando, sem a segunda parte, Chico rasgou um embrulho de pão que estava por perto (ambos estavam na cozinha, pois o gravador estava sobre a geladeira, segundo Menescal), e começou a rabiscar ali mesmo o resto da letra ('Dei pra maldizer o nosso lar, pra sujar teu nome, te humilhar...") que ficou pronta em menos de um minuto.


No dia seguinte, Elis completou a gravação, que foi muito difícil, segundo Menescal, porque Elis, toda vez que ia cantar, começava a chorar, emocionada. Mas conseguiram. E o Brasil ganhou uma música sensacional e uma das melhores interpretações da melhor cantora que já apareceu nesse país.  


A entrevista com Roberto Menescal (com mais detalhes) no Starling Cast está aqui: https://www.youtube.com/watch?v=YPTHoKxT7DM&t=318s 


Já a magistral interpretação de Elis para a música de Francis e Chico, está aqui, no programa Ensaio da TV Cultura: https://www.youtube.com/watch?v=02VJ-Y1IXzI 

Cavaleiro solitário

 Por Ronaldo Faria O bar está fechado. Parece há tempo. Mas Hermínio não se dá por vencido. Enquanto houver uma sede por beber, beber-se-á. ...