sexta-feira, 30 de setembro de 2022

Para a Verônica Sabino, outra vez

 Por Ronaldo Faria

Escuridão à voz de Verônica Sabino parece um canto de acordar de um sabiá.

Não há muito mais a seguir pelo asfalto que esfria depois da quentura da tarde perdida e final. Mas o homem vai com um pé depois do outro a cruzar o que estiver pela frente. À fronte, um universo que se redime e se encontra num verso. Prosaico, o mundo se entrega às colchas e retalhos de uma cama onde dois corpos se refastelam em toques e ósculos. De óculos, o bêbado da cena enseja perder-se do depois. Do alto do prédio, uma mulher canta bossa-nova. A tristeza? À essa, uma ova! Nas reentrâncias do mar, entre uma onda dispersa e a pressa que para de correr, o barulho é só marulho, desses que o Rio de Janeiro traz aos ouvidos do mais insensato desejo brejeiro. Afinal, se não há mais nada a varar pelo infausto asfalto, que a vida morra à toa. Por aqui, no interregno da ilusão, um barquinho desmaia a deslizar...

quinta-feira, 29 de setembro de 2022

Os baladeiros

Por Edmilson Siqueira 

Muito antes que a palavra "balada" tivesse a conotação que tem hoje em português, ela foi usada (e ainda é) para definir um tipo de música dentro do universo do jazz. É aquela música mais lenta, geralmente com letra e que praticamente todos os grandes nomes, do jazz ou não, da música norte-americana gravaram. E, claro, tem gigantescos sucessos entre elas. 


E, tanto assim é, que uma série dedicada aos grandes artistas da música dos EUA, patrocinada pela GRP Records e distribuída pela Verve, produziu um disco chamado "Balladeers", com a fina flor dos cantores de jazz dentro da coleção "The Gold Score Séries". 


E abrindo os trabalhos, o maior jazzista de todos os tempos, Louis Armstrong. Ele canta "When It's Sleepy Time Down South" (Leon Rene, Otis Rene e Clarence Muse) com a grande categoria de sempre. E depois volta, na última faixa, com "The Lucky Old Sun" (Beasley Smith e Haven Gillespie).  


Nat King Cole, um dos maiores cantores não só de baladas, mas de tudo que se propôs a cantar, também nos oferece, na coletânea, dois de seus grandes sucessos. Primeiro, na segunda faixa, "This Will Make You Laugh" (Irene Higginbothan) e depois, na nona faixa, a deliciosa "Sweet Lorraine" (Cliff Burwell e Mitchel Parish). 

Na terceira faixa, Arthur Prysock canta "Don't Sleep a Wink Last Night (Roy Lee, Howard Biggs e Joe Thomas), um blues sensacional do qual o vozeirão do cantor se incumbe com grande competência.  


Na quarta e oitava faixas, quem canta as baladas é Al Hibbler. Primeiro "After The Lights Go Down (Alan White, Leroy Lovelt  Phil Belmonte) e, depois, 'Unchaimed Melody (Alex North e Hy Zaref).  


O grande Sammy Davis, Jr. também nos presenteia aqui com duas músicas de seu imenso - e ótimo - repertório. Na quinta faixa ele canta "Something's Gotta Give" (Johnny Mercer) e na décima faixa nos traz ""Hey There" (Richard Adler e Jerry Ross).  

A sexta e a décima-terceira faixa estão a cargo de Mel Tormé, considerado, simplesmente, um dos cantores mais completos de todos os tempos. Ele canta "That Old Black Magic" (Johnny Mercer e Harold Harlen) e September Song (Maxwell Anderson e Hurt Weill).  


Johnny Hartman, o único cantor que Charlie Parker consentia acompanhar, também aparece em duas faixas. A sétima - "Lush Life" (Billy Strayhorn) e a décima-segunda, "In The Wee Small Hours Of The Morning" (Bob Hillard e David Mann). 

Jimmy Rushing, um dos poucos que canta apenas uma faixa, aparece com "Sent For You Yesterday" (Eddie Durhan e James Russhing) com um fino detalhe: ele tem como companhia a orquestra de Count Basie.  


Trata-se, como se vê, de fina seleção de cantores e de músicas. Encontrei o CD ainda à venda em alguns sites, mas não o encontrei no YouTube ou outros sites de música. 

quarta-feira, 28 de setembro de 2022

No estertor da orquestra

 Por Ronaldo Faria

Melancolia antropofágica em cacófago. Sem saber se é ou se será. Comiserada de si mesma. Envolta em tragédias, falácias e palavras que ninguém entende ou lê. Como um carro que roda sem relê. Falácias entremeadas de sílabas e notas, todas dissonantes e caladas. Calcinadas de si mesmas. Benfazejas e encruadas dentro do peito. Como sonetos ou sonatas. Sob a batuta do maestro que rege o ensejo diverso. Ao autor, resta o verso. Um relembrar de mãos juntas e untadas de viver. Tristezas assassinadas pelo prazer. Pés que subiam o cadafalso como fossem à igreja rezar. À que Deus? Esse nem precisava estar. Quietos e senhores de si, em todos, desnudos e rotos, bastavam calar. Línguas em perfídias, passagens de mudar de lugar. Aos desejos, o largar. Um lagar infinitamente só. De fundo, um piano transforma suas teclas em valsas diversas. Há corpos que se transmutam corpóreos para o infinito tão perto do fim que parecem anjos ou querubins. Nas vestes, cetins que se jogam ao chão desnudos do que se for, por fim. Centelhas de mil azuis a cantarolarem a despedida finita e crível em cruz. No sorriso final, a certeza de que existe o mal. De bom, o bem que vai e volta, traz luxúria e revolta, se aconchega de bem-querer. No frio da certeza, a madrugada em açoite. A incerteza certa de que o amor nunca há de morrer. Na nota que vence os ouvidos trôpegos e torpes, a rítmica e sombria realidade da noite. Os carros que se arrastam sem saber aonde chegar, as chagas untadas de além-mar. Nos poros que secam ao degredo do tempo, unge de frescor o vento. A dissonante chegada dos minutos que se foram como aforismos da canção. No momento, o sentimento se embriaga de ilusão. Pensamentos como unguentos que nunca se irão passar. Agora, esbaforido de tanto correr e tentar, o poeta se aconchega em sopas de letras e rimas só para tentar rimar. À toda ilusão, cabe o vil sonhar.

terça-feira, 27 de setembro de 2022

O prazer de cantar de Betty Carter

Por Edmilson Siqueira 

Recentemente, o site da Rádio Eldorado de São Paulo atribuiu o Selo Eldorado de Qualidade à cantora norte-americana Betty Carter (16 de maio de 1929 - 26 de setembro de 1998). Depois de ler os elogios todos que justificam o mimo e que vou republicar aqui em parte, fui dar uma olhada na coleção de CDs e descobri que tenho apenas um disco dela. Mas, pra compensar, é uma coletânea, com gravações entre 1976 e 1988, período dos mais férteis da notável cantora, em que ela ganhou um Grammy de melhor álbum. E todo seu talento pode ser constatado nas 14 canções que compõem o disco. 


O texto da Rádio Eldorado que, infelizmente, não está assinado, diz que ela foi considerada por Carmen McRae como a única cantora de jazz que existia. Apesar do aparente exagero, outros grandes nomes do jazz consideravam Betty Carter sempre como uma das suas favoritas.  


O texto prossegue: "Aliás, sua voz era seu instrumento. Alcançava todas as notas com uma precisão única e por isso Betty era admirada por todos os grandes músicos de jazz: Dizzy Gillespie, Charlie Parker, Miles Davis e tantos outros que tiveram a sorte de dividir os palcos e estúdios com ela. (...). Mas. Betty Carter é a mais pura definição do jazz e por isso recebe, como todos os louros, o Selo Eldorado de Qualidade." 


A seleção feita para a série Compact Jazz da Verve é excelente, pois traz, além da fina flor do repertório da moça, com a intepretação ímpar que Betty imprimia a cada música, várias músicas de autoria da própria que confirmam seu talento de compositora e a participação de ótimos músicos, que completam o cenário de prazer que todo o disco proporciona. 


O encarte traz além da útil ficha técnica, com os músicos participantes de cada gravação, um texto com suscinta biografia e muitos elogios à cantora, assinado por Will Friedwald. O CD foi lançado em 1990 e a série Compact Jazz faz parte da promoção Bom e Barato, ótima ideia das gravadoras que colocaram muitos de seus discos a um alcance maior da população. 


"I Can't Help It" (Betty Carter) abre o disco e já dá pra perceber que as interpretações raramente vão seguir o figurino dos cantores "normais". Betty parece chamar cada canção para si, tratá-la como sua alma de cantora a sente e deixá-la escorrer por entre as cordas vocais ao sabor do seu talentoso improviso. É o que vemos, por exemplo, no clássico "My Favorite Things" (R. Rodgers e O. Hammerstein ). Não espere que a aparente e melosa valsa soe suavemente. Betty a domina de tal modo que a música parece ganhar vida própria e se soltar em todas as suas probabilidades. Ao fim, o ouvinte mais atento, ao ouvir os aplausos (a gravação é ao vivo) sentirá vontade de aplaudir também.  


E em todas as faixas, esse sentimento de satisfação a cada frase prossegue, já que Betty está sempre levando seu próprio prazer de cantar às notas todas. É assim com "Spring Can Really Hang You UP The Most" (T. Wolf e F. Landesman), com "All I Got" (Diane Cole) ou a música que ela compôs e marcou sua carreira, "Open The Door". 

Enfim, trata-se de um disco para se dizer "muito prazer", tanto em referência ao contato com uma visão geral da cantora, quanto à satisfação que ele nos proporciona.  


Não encontrei o CD para ouvir nos sites de músicas. No YouTube há muita coisa da cantora e o CD ainda está à venda nos bons sites do ramo. 

segunda-feira, 26 de setembro de 2022

Ao som do Tom

 Por Ronaldo Faria

Noite encruada de neblina e nada. Notívaga e vaga. Vagabunda e aflita. Metade realidade, outra desdita. Parcimônia e certeza inaudita. Ao som do Tom, a sonífera escrita...

sábado, 24 de setembro de 2022

Ao Eduardo Gudin

 Por Ronaldo Faria

Eduardo Gudin, o que nos separa nesta noite quase madrugada que se enquadra entre a vida e o céu? Uma mulher, um samba, um violão, um São Paulo de esquinas e sinas, um bordel? Olhos marejados e malfadados de tanto passado e falsa mansidão, cá estamos a criar na ilusão? Entre vozes femininas, verdades e anginas, cantorias e ilusórias meninas. Poesias trancadas em porões mil, coisas que se foram e não voltam que nem pingo de cantil, cândidas verdades num corpo quase senil. Quem sabe um samba redescoberto na certeza incerta da mansidão em ardil.

Grande poeta, em falsete e modéstia, ouça-me nessa brincadeira imodesta. Nem sei mais se aqui estou, mas suas trovas e rimas, notas e fonemas, tremas e mínimas a brincarem num papel em branco, estão a aqui, a creditar e crer que algo virá. A ir e vir entre caminhos e descaminhos paulistanos, insanos e tamanhos. Um cantinho aqui, uma cantina ali, um pedacinho milimétrico e tétrico dos filhotes em si. Se não pude mais dar é porque não tive mais no balacobaco e aí. Mas, acredite, Eduardo Gudin, se errei é porque tentei acertar. Um dia acerto minha sorte grande, mesmo que em além-mar.

sexta-feira, 23 de setembro de 2022

Um guitarrista cheio de jazz

Por Edmilson Siqueira 

Wolfgang Muthspiel. Conhece? Quem ama o jazz deve conhecê-lo. Ele já gravou 22 discos, o último em 2020 ("Angular Blues"). Eu tenho o segundo dele e gosto muito. Pra quem não sabe, Wolfgang é um respeitado guitarrista que começou tocando violino aos seis anos e depois mudou para o violão clássico e depois para a guitarra elétrica. Ele lançou seu primeiro disco, "Timezones", aos 13 anos. Durante dois anos, excursionou com ninguém menos que Gary Burton e o guitarrista Mick Goodrich, que era um de seus professores no Berklee College of Music.  


Em 1990, ele lançou o disco que estou ouvindo agora e cujo título é "The Promisse", que é uma das faixas. Para um segundo disco de um instrumentista, o time que ele reuniu é coisa de gente grande. John Patitucci, Bob Berg, Rich Beirach e Peter Erskine fazem parte do elenco reunido, sob a produção de Gary Burton. E, ainda mais, pelo fato de que, das nove músicas do disco, sete são de autoria de Wolfgang. As outras são "My Funny Valentine", de C. Rodgers e L. Hart; "The Promisse", de Gernot Wolfgang. 


Com Bob Berg no sax tenor, John Patitucci no contrabaixo, Richie Beirach no piano e Peter Erskine na bateria, o disco é de uma suavidade ímpar. No encarte que acompanha o CD, Gary Burton, em longo texto, diz que cada época, no jazz, tem um instrumento que se sobressai. E, com ele, um punhado de músicos acabam aparecendo também. Foi assim com o piano, depois com o saxofone e, agora (em 1990), "a ação aponta para a guitarra. Nunca houve mais guitarristas talentosos, liderando bandas, escrevendo músicas, gravando discos, definindo tendências e estilos do que na época atual."

Depois, ele acrescenta que recebeu recomendações de amigos e grande músicos para contratar Wolfgand para sua banda. E, ao fazê-lo, descobriu que, como um guitarrista, "Wolfgang tem uma formação inusitada, o que, eu sinto, aumentou muito suas habilidades como improvisador e compositor. Criado na Áustria, na cidade de Graz, não é de estranhar que tenha começado a sua vida musical como violinista. Com o passar dos anos de estudo, Wolfgang mudou para o violão clássico e durante esse período frequentou o conservatório de Graz e tocou concertos nesse instrumento." Depois do violão clássico, Wolfgang mudou para a guitarra elétrica, decidiu ir para a América e estudou no New England Conservatory e, depois, no Berklee College. Aí o jazz já era seu estilo de vida.  


O resto é uma carreira que, nesse segundo disco, apontava para um dos mais criativos guitarristas e compositores jazzísticos da cena americana. 

Esse disco que abre os trabalhos com "T.G.", é daqueles que você começa a ouvir e não para até a última música, pois, além do próprio Wolfgang mostrando uma guitarra já madura e cheia de improvisos inspirados, tem um time dos mais competentes que não deixa a peteca cair em momento algum. 


O disco pode ser ouvido na íntegra no YouTube em https://www.youtube.com/playlist?list=OLAK5uy_mXiwhB0MrzEBwlntmYpazjMHMPFXelAUE. E ainda está à venda nos bons sites do ramo. 

Zé Geraldo

 Por Ronaldo Faria A viola viola o sonho do sonhador como se fosse certo invadir os dias da dádiva que devia alegria para a orgia primeira...