quarta-feira, 31 de janeiro de 2024

Os Cariocas no calor

 Por Ronaldo Faria


Calor intumescido e jogado ao léu nos lençóis que mil sóis queimaram e suaram em corpos despidos de propósitos e ódios. Da janela vem um cheiro de mar e o barulho de pombas que, em arrulhos, namoram para novas pombas se aconchegarem em fios e árvores com o alvo certo nas cabeças dos transeuntes suados do inferno da estação tórrida chegado.
Enquanto mulheres de biquínis minúsculos e homens com seus frágeis músculos desfilam na avenida do litoral, o casal se aconchega no chuveiro que brinca de jorrar água fria com um vapor de dar dor. E mãos e lábios se percorrem e correm nos corpos lânguidos e lambidas que, úmidos, contrastam com os mil graus além que vêm invadir a cena do lado de fora.
Nos raios que chegam com luz própria, a imprópria mansidão que os impropérios de quem tem de vender chá mate e biscoito Globo na areia que ferve e serve de bolhas a sangrar pés e ilusões. Talvez em algum lugar haja um cantinho onde o tantinho de sombra seja sobremaneira rasteira que deixe os amores sem cheiros e odores de pingos num lavar sem dor.
Do ar-condicionado, aloprado por ter de mudar tanto clima que na China não lhe ensinaram a fazer, vem uma brisa fresca a brotar no quadrilátero que a arquitetura do amor dá. Nos morros que se dobram ao mar, um samba e cervejas serpenteiam em si, sós. No subúrbio, esse distúrbio que nem psiquiatra cura, a solução é morrer para a alma enfim respirar.
 
II
 
O poeta, ambidestro na magia de se enganar, sorve mais um gole e lembra que o Samba de uma nota só foi a única música dedilhada no violão na esperança de conquistar a morena que, no clássico musical, se fazia magia no entardecer do Leblon... Ao menino que desabrochava, ao menos imitar o Chico Buarque e Nelson Gonçalves na voz já estava de bom tom.


segunda-feira, 29 de janeiro de 2024

Chistes no xote em Visconde de Mauá

Por Ronaldo Faria



Prepare-se para o amanhã! Ele virá! Acredite que sim! Com suas dicotomias, seus opostos, postes prestos a abocanhar o próximo carro ou aquele que está fora de si. Depois, tresloucado, dar-se-á ao nada, fará numa farsa única e solitária a sua cena de cortina fechada. Irá cerrar o mundo detrás da coxia e não receberá aplausos mil sequer. A plateia está vazia. Mas, logo a passos dali, a alcateia urra por ser a verdade de algo qualquer.
Na viagem sem fim, mesmo sabendo que a chegada está logo ali, vamos à trilha de terra e poeira, cercada de covas de anjinhos do céu, a cercanear o que a sacanagem não deixa chegar. Na vida, essa coisa a que se dá, saber-se-á, vamos a cruzar os próprios passos num acordar, ser e dormir sem lógicas ou afins. Do alto do que a poesia mais altaneira pode vociferar ou sussurrar, o poeta profetiza de forma incisiva que há que parar.
 
II
 
Na estrada, dessas que são tão estradeiras que a gente nem vê, vão o homem, o jumento, a saudade e o bem-querer. Entre eles não há distinção. São todos um só. Visse um poeta a tal cena, diria que serão todos um único solilóquio. Senão, um desesperado e destemperado poço de prazeres que nunca se fizeram em camas molhadas de lágrimas, suores e beijos traçados e trançados de línguas e cópulas doidivanas e insanas.
Na cama, esse efêmero espaço de traços e trajetos que não sabemos dizer onde irão chegar, os corpos copulam entre copos e sinergias paralelas. E vêm e vão. No meio de tudo, a canção. A certeza de que a insensatez ouvirá a voz da incerteza do senão. E assim, no prazer confuso do dia a dia, as horas emergem do chão. Decerto, no momento que o vento traz a brisa noturna, a fuga da voz que inexiste como vivesse no porão.

sábado, 27 de janeiro de 2024

Com Gonzaguinha no ouvido

Por Ronaldo Faria


Visionário e atávico, homicida de si mesmo e crente de uma religião que não há, Juarez segue entre a avidez e a tez da amada, aquela procrastinada em não ser. Cavaleiro solitário, à espera do erário inexistente, desses que o avarento arranca junto com o dedo do lazarento, segue a perder a visão, o chão, o futuro, de antemão. No saber destemperado e desagregado que dá a candura, submerge em si e emerge em cada letra, sílaba e frase desconexa que se ligam entre brancos de papel ou tela atrelados em alguma sinergia que não há. Nas ruas, milhares de seres que se dizem nação gritam num berro que ninguém ouve. Talvez um bêbado enlouquecido de sua sórdida melancolia aflita e fugidia, um saudoso pai a beijar sua filha morta em cinzas, um poeta que profetiza a imaginária realidade que não há nessa vida. Entre recônditos de cada um de nós, entre nós que ninguém desata, no emaranhado de liberdades que estão presas em caminhadas sem pressa, o cidadão segue nas ruas e esquinas, reentrâncias do senão.

Penitente e ausente de si mesmo, num frágil invólucro que cobre a cada um de nós, louco desde nascença, exacerbado e cabisbaixo, no esmeril da sobrevivência diária, Juarez, sem julgar nem a si, segue passo a passo os dias que faltam. No asco da dívida que a dúvida traz, permeia a lucidez de um profeta e a ignorância de um asceta. Pernicioso e cioso da saudade de um dia ter sido feliz, sabe que agora não vale nem o quilo pesado de uma perdiz. Mas vai. Vai entre goles e golfadas, malversas colheitas do nada, perfídias de um coração que tão maltratado não sabe diferenciar axé de fado. No sonho bisonho interrompido na madrugada, essa coisa tragada da vida, a certeza de que o amanhã será de ignóbil perfídia. No poste, um cachorro urina feliz com a pata levantada. A olhar sem enxergar direito, com uma catarata que consome seu olhar, Juarez apenas diz: “Feliz do cão que cumpre seu ritual sem se preocupar com aquilo que a Dona Joana amanhã irá dizer da poça que defronte da sua porta se fez”.



quinta-feira, 25 de janeiro de 2024

A ouvir Tiê 2

 Por Ronaldo Faria


Dança esquizofrênica e frenética numa “casa de dança” de pais de santos tântricos, loucos de bebedeiras mil, enganadores do destino, simplórios em desatino e um ou outro que de lucidez não têm nada e nada têm. Logo abaixo, um oceano inteiro e uma cidade que olha o quanto é linda, entre ladeiras, paralelepípedos, epítetos mil. Sob o escuro da lua dorme um céu de anil. No quarto de pedras, que um dia foi celeiro de escravos ou cova de barris de aguardente, corpos ardentes e queimados de sol vivem o solstício de um algo qualquer. Homem e mulher. João e Maria, Petrônio e Andriele, Sebastião e Franciele, os nomes são somente um arauto do cordel que se esvai. Ambos sequer sabem por que estão lá. Fora, um bêbado canta algo que traz larilalá... Nos ladrilhos que o tempo tombou como da humanidade, um misto de pássaro que canta a saudade que lhe apraz. Detrás de tudo, segundos profetizam o istmo que há entre o amor e a ilusão. Ao fim, no fim, a solidão. A mansidão das ondas que quebram em sofreguidão na praia. Ao nada, olhares múltiplos e brisa quente que logo farão do sono um sonho caliente. Na esquina, o apaixonado carente cochila na Ladeira da Misericórdia e rola abaixo num frigir de corpo matinal.

terça-feira, 23 de janeiro de 2024

A ouvir Tiê

Por Ronaldo Faria


A vida passa rápido pra caralho. Uma dicotomia sem início preciso, meio efetivo, fim determinado. Uma ou outra visão. Quiçá, algum momento, efêmero. Nalgum momento. Juras de amor, beijos lânguidos e um eterno e terno adeus, num pouco depois que nunca chega. Tudo como um fotograma em filigrana qualquer. Na finitude de tudo, um homem e uma mulher. Um desespero feito enterro promíscuo e solícito, desses que um adeus já basta. Num quase muito e tanto nada. Quasímodo, o personagem sem papel permeia o tempo que está e que ainda resta, em réstia. O fim, uma promessa nunca cumprida, uma comprida trajetória que finda em lugar nenhum. No fundo do mar, uma concha ouve o barulho do vento que nunca terá. Na areia, a morrer de rir com o fim do seu tererê.


sexta-feira, 19 de janeiro de 2024

Cada um com seus poemas

 Por Ronaldo Faria

 

Como disse o poeta, cada um com seus poemas. Estejam eles com enfisemas ou não. Afinal, como qualquer anormal, que tenha na vida apenas um quintal para um improvável sarau, não existe muito que dizer. Todo homem, como animal, sobrevive de álcool, químicas ou algum floral. No subterfúgio fugidio do senão, todo o centeio colhido um dia vira pão. E virá. Na imaginação tresloucada da falta de razão, a ação que a parcimônia vira coisa homônima para tentar ser. Num correr de bar em bar numa tarde que salva a quase surda de deixar de ouvir, um renovar de surgir que em lugar nenhum chegará. A moça, de todos os santos e alegrias, não está afeita às alergias que a realidade dá. Nas culpas que a vida atroz dá, existirá depois da morte um lugar?

II
 
Comer? Pra quê? O prato defronte é obrigação ou lazer? Mais algum algo para lavar. No alvo da alva aureola, a desfaçatez de quem a tez nem ruboriza. Na incerteza reta sequenciada de curvas mil, a crença do abismo sufragado em urnas do tempo. Na sétima escritura, a ruptura com a realidade. A verdade virá mentira. A tira estreita entre o tempo do passado e o assado feito com as perdas do amor fica fincada como prego na areia perto do mar. Primeiro descem os espíritos poetas fodões. Criam, dão espaço aos meias-bocas. Esses, dispersos, logo escrevem e deixam os que são pouco nada ou nunca ser descer. Aí vira um imbróglio total. Como produzir algo geral? Sozinho, o aprendiz de poeta e cavalo fica a ver navios, longe do mais perto mar.

quarta-feira, 17 de janeiro de 2024

O nome, ao som de vários,,,

 Por Ronaldo Faria

 

Dambrowisky. Aonde seus pais arranjaram esse nome? Pro inferno, quem, em sã consciência, dá esse nome a um filho? E que escrivão, filho do caralho mole, deixou registrar? Ele não sabia como responder a si mesmo. “Depois reclamam que eu bebo que nem louco. Vai ter esse nome que ninguém sabe sequer soletrar, nem meu. Pimenta no cu dos outros é tempero”.
Pobre Dambrowisky, com nome de estrangeiro num mundo destrambelhado. Desde os poucos anos na escola as professoras o chamavam de Dam. Os amiguinhos nunca souberam da sua verdadeira versão. “Graças a Deus, senão...” – pensava. Ser com arritmia de nascença, mental e cardíaca, sobrevivia. Como um ET. E pra si dizia: “Foda-se o resto. Viverei até prescrever”.
Ninguém sabia que ele via, ouvia, vivia, sobrevivia, queria só orgia. Na verdade, ninguém ouvia seus pesadelos noturnos, seus turnos dobrados na fábrica de arame farpado, seus duplos saltos carpados a cada dia que vencia com medalha de ouro nunca vista. Do outro lado da linha, no orelhão há muito desabilitado, a mulher em questão só queria ouvir que era um tesão. Dambrowisky, que era um mero sobrevivente vivente, um erro da evolução humana, já não sabia sequer se queria responder.
Camelô de produtos do Paraguai, sonhava em comercializar o pó da Colômbia. “Todo mundo merece uma vida melhor”. Diante da Estação Leopoldina, abandonada à mercê, submergia nas promessas do amigo Charlie Brown. Queria mostrar o Rio de Janeiro a quem quisesse, e pagasse para isso, claro. De preferência em moeda estrangeira. Mas Dambrowisky sabia que a periferia (subúrbio no Rio) nunca chega à Zona Sul. Na quimera que ouvira algum dia, seguia seu trajeto de melancolia. Num canto de bar, um poeta clandestino chorava em desatino. “De que adianta fazer poesia marginal se ela não passa nem no sinal?” Do outro lado das redes sociais, quem via cagava e andava no destino...
 
Rápido e presto: Dambrowisky morreu sozinho. Num daqueles dias em que o dia se esmaeceu de nuvens sombrias e o sonho de um paladino. Na lápide sobre um chão calcinado de calor, não souberam escrever seu nome. Virou “algo com nome de uísque”. Aliás, a foto é minha, no Rio de Janeiro.

segunda-feira, 15 de janeiro de 2024

No som do samba

 Por Ronaldo Faria


O lamento do violão se sobressai com o pandeiro que emoldura a formosura que só sambista faz. Na roda que traz o som, o ouvido agradece e sublima o que só vem para bater na palma da mão o próximo dia de remissão. Mas a alegria sorvida a cerveja, persevera que a ilusão terá seu lugar na próxima procissão. Com exatidão, nem o melhor pagodeiro poderia trazer tal cenário. Na árvore, canta o ultimo canário que conseguiu a liberdade do cenário anterior de prisão. “Maria, a criança abriu a gaiola! Puta que me pariu!”. Na chamada, um orixá agracia o voo do ser alado ao além.
O sentimento do que o cataclismo logo chegará, inerente ao ausente de esperança, mesmo que Maria, diante da janela sem tramela e aberta ao mundo faça as tranças, vira troça nos dedos daquele que toca o cavaquinho. De cavanhaque, aquele que trata a cuíca com o carinho de um seio envolto nas mãos, faz o fundo musical que transborda no som do bordel. Nas notas que se denotam como um louvor, um raio de sol brinca de querer brotar. No lugar, esquecido do mundo e aquecido de dor, o recomeço de um começo que nunca sequer se foi. E agora, vale a pena a trilha seguir?
Ele se levanta da mesa, paga a conta de alguns litros sorvidos e segue ainda a ouvir o batuque que invadia o silêncio que qualquer tiroteio, logo mais, poderá calar. No céu, estrelas que brilham aqui como acolá são o quadro que se expõe. Nalgum lugar, na estratosfera que a maré da vida dá, as ondas arrebentam em desespero na busca de uma areia para amar. Na próxima espera, o desespero inexequível do novo amanhã. Na roda de samba, o partideiro diz que não deixará o samba morrer. Do alto, Deus aplaude e pede bis. No prostíbulo, um novo cliente ama a bela e virgem meretriz.


sábado, 13 de janeiro de 2024

Caetano e Jorge Mautner

 Por Ronaldo Faria



Na rua da periferia que corta entre vielas e casas de madeira quase podre o pouco de dignidade que resta, estão Zumbi e Isabel, um a comer o outro entre os olhos que se entreolham na finitude da eternidade que tem um canapé em mesa de esfomeados. E se devoram como se houvesse além. Favelados, quase casados do tanto que veem os corpos entrelaçados nesses trópicos, ambos, ambíguos e solapados de desejos, vão a tocar a pele do outro que, outrora, foi um esfomeado de pungentes gozos e gemidos na madrugada que agora foi tragada pelo tempo que não deixa pau sobre pau, ou pelo sob pelo. Mas, lá estão eles: vestes desnudas e canções de sobrevida a voarem no pequeno barraco que o ato faz. Transfixados por um poema simplório, vão a correr o lugar ilusório. Casório? Nunca! O mundo não lhes foi um leito provisório. Transitório, talvez. E assim, no casuísmo que a vida às vezes dá só pra sacanear os desamparados e parados na esquina à espera de um amor eterno, vão Zumbi e Isabel a divergir da inebriante brisa que rola da boca na beira do asfalto, naqueles que não esperam a fissura para queimar a alegria antes da larica. Apenas são. Um casal na sombria noite que se avizinha. Do lado, a vizinha da cena prefere ouvir os tambores que chegam do centro onde rola uma gira pra exu. Os gritos de prazer são demais para quem há muito não sabe o que é o lazer nos países baixos. Na cidade cheia de morros e atores tortos com réstias de tortuosas histórias, o casal perdido no alto de uma íngreme certeza vai vivendo em harmonia. No rádio, o político, em horário eleitoral, grita que acabará com a agonia. No seu partido se prepara a orgia para poucos, ou como diriam os poetas, “mata um, mata dois, não vai sobrar nenhum”. O gozo que chega serve para amenizar o que ainda faz rir naquilo que dói.

quinta-feira, 11 de janeiro de 2024

Os Mutantes em instantes, maestro

 Por Ronaldo Faria


Ultrapassagens e viagens, paisagens e métricas metragens. Coisas de sacanagem, homenagem de um ébrio que tenta viver entre uma e outra lucidez. Na avidez de ser, Clemêncio vivia, como o nome dizia, em clemência permanente contra a demência da ausência. Ao longe, na longínqua terra de Nunca Mais, a sagaz imperatriz Vitorina gritava, da latrina, com a serva que tinha esquecido o papel higiênico folha quadrupla e cheiro de rosas do campo. “Enforquem essa cretina! É uma ordem”.
Comiseradas e famigeradas rimas criadas só pra servirem de cova rasa, na brisa que não tem nem uma réstia de vento ou sopro de alquimia, são o palco da festa sem aplauso. Clemêncio, casto e castrado desde há muito (tentou flertar com a mulher de Gengis Khan), apenas sabia nada saber, enganador profissional. Já Vitorina, ninfomaníaca, governava como abelha rainha que mata o zangão como fosse essa a única sina. “Sem morfina nele. Cortem-lhe aquilo que não traz prazer para sua rainha!”
No som de um jardim elétrico, eletrocutado à força, Clemêncio segue “it’s very nice pra xuxu”. Só ainda não sabe se, ao perder a bússola da própria existência, esqueceu a lucidez ou se achou a demência. “Seu João, serve mais umas mil dessa, seja lá o que essa for.” Já no quarto cercado por mil guardas armados até os dentes, mesmo sendo a maioria banguela (no reiuno não havia plano de saúde), Vitorina pedia uma rima pra si. “Guilhotina no poeta, já que essa é a sina de quem se acha profeta!”
 
 No fim de tudo, arguto e sabendo que quem tem, tem medo, o escritor faz lobotomia em Clemêncio, dando-lhe nova alegria, e incentiva um golpe de Estado (feito pelos pobres e oprimidos) contra Vitorina. Estava forjada a sina. Vida longa aos loucos e mutantes!


terça-feira, 9 de janeiro de 2024

No Reino do Quebra-Mar

 Por Ronaldo Faria

 

Pisadas frias e rápidas no corredor que está repleto de pó e penduricalhos mil. Afrânio, conhecido como “O Sofredor I”, rei da terra inexistente de um dia por vir, caminhava em ávidas saudades e falácias fálicas e frágeis. Era o soberano tirano e o aldeão que vagava pela estrada na busca de um lugar para cair e ficar. O som dos seus passos era como percalços de uma história sem canção. No anoitecer que o céu deixava tecer, um tecido de nuvens escondia o desmazelo. Sem zelo, na inexatidão do tempo vivido, ia Afrânio afanar segundos para poder viver. E ver, sobreviver, rever, num reverso que só o verso maldito dá e sente. Com sangue e cheio de trovas e trotes a sim apenas.
Em trôpegas e infindas vazias letargias, ia o homem fatigado pelo tempo na busca de um lugar além do quebra-mar. Sem portos de onde sair ou voltar, navega entre sereias, monstros mil e loucuras de um ser senil. Entre um barco e outro perdido, com náufragos a nadarem sem rumo ou prumo, ia o almirante Afrânio. Conhecido como o “Grumete da Vida”, navegava de oceano em oceano a passar por tormentas e maremotos, corpos mortos e jogados ao mar que desemboca em nenhum lugar. No caminho dos afluentes que só os doentes de paixão sabem onde ficar, o homem balançava de embriaguez e, sem sensatez, beijava a tez que, em perfídia, aparecia no espelho da vitrine apagada.
Nas vertiginosas hostes que saber-se-á de onde surgem, corre e surge a tropa que seguirá aquele conhecido como o “Capitão sem Aptidão”. Na inexatidão da contemporaneidade, ele transitava entre loucos e bêbados, mulheres nuas e adventistas tristes. Perseguia um fugitivo que, sem saber, era ele mesmo. Com seus soldados maltrapilhos e famintos, famigerados famélicos de emoção, ia a ouvir um sambista que perdeu a mocidade, a sorrir. “Capitão, por favor, a tropa precisa descansar!” – gritou o sargento à base de unguentos. Desmemoriado, o homem, por fim, grita: “Paremos e sintamos o cheiro de jasmim!” Como peças de dominó, os comandados caem um por um, a sorrir.


sexta-feira, 5 de janeiro de 2024

Slow Motion

 Por Ronaldo Faria


“A igreja de pedras, benfazeja, bendiz quem é puritana ou meretriz?”, se questionou Tâmara travestida de beata. Na exata hora que saía a procissão, a cisão entre o entrevero e o esmero que surgiu horas antes, por causa de um reles diamante. “Afinal, quem te deu?” – perguntava incisivo o delegado gordo e careca que, sentado atrás da mesa ensebada, se dizia autoridade da festa. Na testa, restos do frango que comeu. Na boca, pedaços devassos de uma vida sem graça. Para ele, tanto fez, fazia ou fará o amanhã. Fosse um dos três mosqueteiros da literatura, nunca seria D'artagnan. Quem sabe um bufão. Senão, um pé de página de ermitão, desses que ninguém sabe, nunca viu ou verá. Mas, lá estava ele, alienado de tudo a perguntar. Tâmara, em sua tragédia que a comédia abarcaria sem pestanejar, não quer sequer rir. Para ela, a vida é apenas um chegar sem saber onde irá chegar. Na fé, certamente haverá algum lugar. No olhar daquele que na cena não está, talvez no colarinho que sobe há somente uma brisa de se viver. Quiçá, um rolê. “Daqui, no turbo freezer ligado para vencer o calor que se esparrama no horror, vou passando vontade daquilo.” Tâmara, tresloucada na sua loucura famélica, famigerada até o sol nascer, crê que os próximos capítulos irão capitular em sonoras Babilônias que se fuma do bom na sala de estar. No Baixo Leblon, a alternância de uma noite em noir francês e algo que só saberá quem falar inglês. No mundo que se espraia na praia, dois corpos prostrados ao amor maior se embrenham no briefing de nada escrever. “Não posso esquecer de que a vida é um mero transcender. Na próxima hora, talvez nem respire ou inspire na inspiração que a transição performática nos dá.” Para Tâmara, a pisar os pés na areia fofa que fosca lua deixa esgueirar, talvez algum passo vire prosopopeia em cafeína pura. Senão, quem sabe uma droga pesada no café esturricado da manhã. Todavia, entretanto e porém, nunca saberemos o que a vida nos trará. Em algum lugar da terra, um trator amassa o que alguém, há tempos, construiu para ser para sempre. 

(Com Rashid a rodar)


quarta-feira, 3 de janeiro de 2024

Com Toninho Ferragutti e Neymar Dias

 Por Ronaldo Faria


“Vixe Maria, pra que tanta picardia? Não bastava um alforje mequetrefe cheio de comida, corte barato e formoso de pano pra Maria, um tanto de resistência contra essa seca sombria?” A voz de Gumercindo, meio homem e outro tanto pequeno menino, fugia pela estrada logo depois do rio acima. Ao longo de tanta areia fina e seca perene, dessas que enganam a gente a crer que Deus esqueceu desse mundo para viver às margens de uma árvore frondosa, que nem em foto se vê, lá está a realidade que só a saudade, batedeira de coração, dá.
Senhor desses que a vida mostra que pouco falta, Gumercindo, comerciante anunciante do próprio eufemismo, proseia consigo mesmo, a esmo, a trilhar a trilha que o destino aproximou, feito um louco em desatino. “E se eu tivesse feito diferente? Se a minha única frase não tivesse sido dita como foi? A minha vaca teria dado cria do boi do Alcindo?”. E lá ia ele, rumo ao matadouro que uma mesa com pinga traz, ver o que o tempo, esse carrasco do vento que nunca virá, poderá lhe trazer na tragédia finda que lhe ronda o lugar.
 
II
 
À espera de Gumercindo está Eulália. Para uns era mera mulher. Para outros, uma divina dama que cruzou os mares vinda da Itália. Sorridente, mesmo à falta de alguns dentes reluzentes, ela transpunha aquilo que a quimera sequer saberia prever. Seu querer, acreditava como beata de terço e véu à beira de um altar, um dia chegaria sem carta para anunciar. Saber-se-á. Talvez num desses trens que teimam em sujar de fuligem negra as roupas penduradas no varal e o ar. Senão, quem poderá dizer, será avistado todo vil, moço e garboso num verso insosso.
Para Eulália, não havia diferença entre feijão e tremoço. O que descesse à garganta chegaria aonde tinha que estar. Na crença de que a ausência era a presença altaneira, se via brejeira a vestir vestido de chita e flores coloridas a untarem a veste que escondia seu desejar. No lugar, o cheiro de querosene, solene e perene, iluminava a alva áurea que fingia se achegar. No céu, como um escarcéu de nuvens e estelas, morcegos e corujas dividiam o que, para um poeta, seria a certeza de que o criador de tudo esqueceu de trazer a transcendência do breu.

segunda-feira, 1 de janeiro de 2024

Cambada de Minas

 Por Ronaldo Faria


O vento do ventilador ventila na noite quente que aquece e aquiesce o homem que dedilha a sua própria sina. No quadrilátero mínimo e ínfimo que um espaço arquitetônico dá à tônica do espaço, a sorte que um sortilégio não antevê o fim para logo. Em solilóquios afônicos, a voz que quase não sai. Os dedos ainda dedilham em frenético arquétipo o tépido desenrolar frenético que esgota o tempo que ainda virá. Perto, sentado no bar que espera que a esquina vire uma reta sem fim, Sebastião, vulgo Tião, teoriza sobre a vida em Bogotá. “Será que lá é como aqui ou acolá?” Faltava na mesa um colombiano para a tese corroborar. O jeito é compor algo mais para caber no parágrafo seguinte, como um pedinte da poesia distante.

Ambos, antropofágicos seres que os frágeis ditames da vida enterram a uma eternidade inexistente e pertinente, divagavam e vagavam nas letras e pensamentos que só o tempo traz. Na performance que só o teatro sem palco e plateia dá, vão transitando o cotidiano de cada segundo que o coração ainda dá. Em copos cheios e anseios de verem um seio a cair nas bocas rotas, num lambe-lambe que só o fotógrafo retrógrado dá, vão descortinando veredas e ansiar. No oceano distante e equidistante do além-mar, os versos e reversos de algo que segue adiante. Na metamorfose depois da fimose de batom, um frígido ouvir de vozes a buscar um caminho que, no fim, vai ser o próprio e mesmo indelével e sofrido enfim.

“Amigo, traz mais uma pro tempo destemperar”, disse Tião, proscrito homem e trabalhador. “Porra, vou ter de levantar de novo para buscar a cerveja”, pensava o poeta asceta que apenas queria escrever, sorrir ou chorar. No meio de tudo, quase em luto temporão, a noite brilhava no seu escuro colorido. “Quanto tempo ainda falta para o tempo terminar?” – perguntaram os dois. No derredor, gente que não conhece o fundo de um poço vazio e sem água que espera uma chuva em torpor. Quem sabe um louvor que ignora o horror que os pesadelos, em desmazelo, trarão logo mais. Na imensidão que esmera a sofreguidão, os portais sem abrem e se fecham à espera de mais um igual e desigual torpe e lindo amanhecer.

Zé Geraldo

 Por Ronaldo Faria A viola viola o sonho do sonhador como se fosse certo invadir os dias da dádiva que devia alegria para a orgia primeira...