quinta-feira, 31 de agosto de 2023

Torquato Neto de “novo”

Por Ronaldo Faria


“Que nova Tropicália ainda teremos de viver para sermos um Brasil?” Gumercindo pergunta a si mesmo sem resposta. Afinal, a posta de peixe com leite de coco transborda na borda de um prato branco mequetrefe pedindo para cair na mesa e frustrar os tantos cifrões pagos por ele. Mas, devagar, Gumercindo arruma com a faca o excesso de iguaria e ri como fosse marajá de qualquer país onde há de tudo, menos a prevista vida.

A reler Torquato Neto, meio bêbado e outro tanto feito feto, num gesto de afeto que pouco na vida viu, ele tenta ter coragem como Nara Leão cantou. Sabe que a vida, sem dentes e demente, não lhe dará muito. Mas, com a velocidade já pregada pela Semana de Arte Moderna em voga, pouco sobra ou sobrará. No imaginário de uma louvação, quem sabe talvez a altivez do louco que espera o muro do manicômio pular.

Avoé, Torquato, que esteja onde estiver a cheirar gases e fases, possa encontrar um universo por aí. Daqui, nesse mundinho cada vez mais mundinho, vamos a sobrevier, sobremaneira, no fundo limítrofe que há entre o global de algoritmos e o quase extinto jornal. Nos teclados que vociferam tempos e têmporas, falências mil. No balde que descansa na área de serviço, um submisso pano arrebata desejos e ensejos da mulher em lírios.

terça-feira, 29 de agosto de 2023

Dick Farney outra vez

Por Ronaldo Faria


Ao longe e perto o Morro Dois Irmãos se enche de raios de sol. Ao pisar passos poucos e trôpegos na areia do Leblon, Afrânio, que não é de Mello e nem de Franco, vê os raios fulgidos e fugidios da manhã brejeira se entremearem em casebres e ruelas. Ele sabe que a providência divina, essa que ensinam nos púlpitos perversos e sem versos de religião qualquer, não há. Por isso caminha já sabedor que a busca da felicidade não permeia a cidade. Quem sabe um copo de cachaça, uma mesa quadrada de madeira, cadeira perto do mar não refaçam a esperança de não ter vindo a este mundo em vão? “Se eu vim, o que eu tenho ainda a pagar?”

Mão levantada e dedo em riste pede o cardápio. O velho patrício haverá de servi-lo. “Traz uma gelada, uma porção de batatas com queijo, uma do alambique”. Pedido anotado. “Espero que tudo venha do meu agrado” - pensa. No céu, uma aeronave passa em luzes brilhantes e barulho de turbinas. “Queria estar nele, fosse para onde for”. Chega o pedido. Tudo OK. O que poderia agora dar errado? O celular toca. “Não vou atender, foda-se”. Uma chuva breve e molhada cai do alto. E como chegam lembranças, andanças, catanças de emoções.

Do asfalto, como fosse um assalto de querências e tristezas em perfídias, um casal briga pelo fim que não deveria ter acontecido. Por que as pessoas rompem laços efêmeros e lascivos? Saber-se-á. Também, se não soubermos, que causa terá? Não sabemos sequer o segundo que virá, quanto mais o destino dos outros. Outrora, se amaram, se tocaram, uniram corpos, carne e sonhares. Hoje, nem soníferos dão o parágrafo letal. Barulhento, um ônibus leva pessoas na busca do lar. Nalgum momento o tormento em acalanto pedirá para, enfim, chegar. 

sexta-feira, 25 de agosto de 2023

Lúcio Alves

Por Ronaldo Faria


Carlito sai da repartição cabisbaixo. Sabe que não há muito a comemorar. Para no Amarelinho e pede um chope. “Porção?” – pergunta o garçom solícito. “Não, obrigado. Mas não deixe a serpentina esquentar. Muitos mais virão”, responde de forma educada e branda.

Seu dia foi redundantemente repetitivo. Mesmas coisas, mesmos horários, honorários iguais. Nada aconteceu de novo. Mesmo da janela taciturna da repartição nada que valha lembrar, além dos pombos a cagar sem parar e arrulhar para uma pomba ou outra mais.

“Que merda! Vale a pena estar aqui para vivenciar este fim de vida? Podia estar no São João Batista ou no Caju que não faria a mínima diferença”, pensou. Aos poucos as luzes da noite se sobrepõem ao entardecer. No entremeio de tudo, um sorumbático e vil viver.

“Garçom, traz outro!” A voz de Carlito, como a mãe em vida o chamava, sai como um brado. O operário dos desejos de bêbados e afins logo cumpre o pedido. Defronte ao bar, os poucos pombos que não dormiram buscam quirelas pelo chão de pedras portuguesas.

No relógio do tempo e no biológico, ambos sem lógica, as horas vão vivendo minutos argutos que correm pelo esgoto. Um cheiro vem do Aterro do Flamengo com jeito de mar e orgia. Na mesa solitária, Carlito parece aflito num conflito eterno de não querer viver...

E o tempo cronológico verte tão em desespero que se esvai. O garçom, solícito, solicita que ele deixe o lugar. “Por favor, vamos fechar. Até Madureira é muito trilho pra andar”. Carlito paga a conta. Agora é saber-se-á o que virá. Urina no Monumento aos Pracinhas...

“Perdeu! Perdeu!” Com um revólver apontado para si, Carlito levanta as mãos. Diz que restam poucos centavos, que vá buscar com o garçom. Não cola. Três tiros de um 38 enferrujado. Cai exangue numa poça de sangue. Amanhã, pela hora, nem pé de página será.

quarta-feira, 23 de agosto de 2023

Maysa

Por Ronaldo Faria

Ano: 1950. Voz: Maysa. Música: O Barquinho. Tempo de reprodução: 2:19.

 Arnaldo caminha na areia de Copacabana. Ao lado carros passam voláteis e rápidos. Na Avenida Atlântica prédios ainda respingam luzes sob a noite quase madrugada. Prostituas e travestis disputam o calçadão. Um ou outro sedento de amor, seja qual for, para ver preço, apreço, presumidos sonhos de um solitário qualquer. Há um ou outro também a correr, passear de mãos dadas, a dar suspiros antes dos respiros prolongados que os corpos em sexo dão e se darão.

Para Arnaldo não há muito o que ver. A amante de sempre já não existe, os imbróglios de se fazer dois já não brilha nem sequer o poste queimado antes do Posto 6. Alhures, haverá uma rua sombria, com seus botecos e bares a envolver urinas madrigais, cheiros de creolina, poesias rasgadas nos guardanapos usados. Mas ele segue sonolento e lento na busca do seu quarto e sala onde deitará o corpo envolto numa manta fina. Afinal a janela ficará aberta e a brisa irá chegar.

Arnaldo sobe no elevador onde grades ainda fecham a porta e abre a porta do apartamento 1020 jogado de frente para outro prédio triste. Ouve tosses mil. “Como é foda morar num edifício lotado de velhos”. Abre a geladeira, sonha que o gelo esteja com os centígrados de uma geleira e pega a cerveja. Senta no sofá rasgado e, de bom grado, toma, sôfrego, um gole que acaba em arroto. Põe um disco na vitrola. Maysa, com seus olhos verdes, canta uma bossa que não é nova.

Para Arnaldo, pouco importa. Há muito o tempo inexiste. Triste, olha pela janela o que parece ser a briga de um cafetão com sua propriedade. Respira o ar que vem com cheiro de mar, olha para o céu e uma lua sobremaneira pungente lhe dá boas vindas. Mais um dia a menos, Outro dia a mais. Ele sabe que pouco lhe resta. Vontade já não há. Menino eterno, põe o corpo, a crer que viver é sonhar.

 Quão bom é crer sem acreditar...

segunda-feira, 21 de agosto de 2023

Noel Rosa e Cazuza

 Por Ronaldo Faria


Beijo a pedidos. Não que antes não tivesse tido milhares e outros tantos tivessem depois. Mas a imagem ficou perpetuando o que, no fim, não foi. A mulher que pediu a foto certamente nem mais existirá. Ou não... Se tivesse sido o fato remido se cravado, de que forma teria sido? Quantos bacorinhos? Quantas perdições e traições perpetradas na estrada da vida? Morar no subúrbio? E o dilúvio que sempre traz a verdade de ousadas ossadas escondidas num quintal que tem goiabeiras e vendaval? Noel se perguntaria com que roupa iria ao próximo sonho de lembranças mil? Vil, o poeta se deixa numa mesa rodeada de saudades e copos a relembrar o lugar. “Quem acha vive se perdendo. Por isso agora vou me defendendo.” Como um samba em feitio de oração, vale a fantasia da melodia. Afinal ainda é dia.
 
II
 
Poeta da geração de 1957, até quando? Quantas mais, serviçais que somos de nós mesmos? Temos, em tese, ambos paridos no mesmo calendário, coisas iguais a viver: ano, cidade, zona (depois minha ao sul) e pensar sobre o nunca mais, exagerados. A próxima dose, em overdose de criação, virá como um beija-flor. A beijar bocas do passado e esperar disparos de canhão, ao acaso, viajo em mim mesmo. Como diria Caju, penso amar quem ama só a si e, ensimesmado, sigo brasileiro. Afinal, o tempo não para. Com arranhões mil, vamos a seguir letras, versos, sílabas, notas musicais, coisas mortas, momentos pensados e impensados, passado. Quanto à ideologia, eu sempre ainda quero uma pra viver. Ou, menino na época que saiote era unissex, brinca de que um dia feliz poderei ainda ser.


George Gershwin

 Por Ronaldo Faria


Rhapsody in Blue. De um tal de George Gershwin. Para um amanhã que não haverá, summertime. E que a vida persista em saudades, esperanças e frases finitas e infinitas...

sábado, 19 de agosto de 2023

Tim Maia

 Por Ronaldo Faria



No ritmo louco das canções nunca cantadas, a verdadeira epopeia que a loucura permeia.

 O que é eternidade? A saudade que inebria e contagia, contamina e dá sonho acordado? Ou a simplicidade de saber que tudo se foi, nas sombras de uma madrugada que chega fatigada e fatiada em minutos e horas, aonde a escuridão chegou mais cedo num inverno sepulcral e fatídico, desses que a gente nunca lembrará. Coisas partidas e sofridas, esquecidas e aquecidas em doses de um ou outro trago. Talvez seja brincadeira de alguém além de nós que, sem eira e nem beira, diz apenas que não vale a pena ter pena de ninguém. Ínfimos no planeta e num universo disperso, não há nada a fazer...

 Sílvio seguia sem rumo na madrugada de poucas luzes difusas em lembranças confusas. Apenas seguia. Tinha soluços num prenúncio deletério, mas já sabia a solução: água quente pra dentro. “É batata! Para na hora.” Ou seja, dos males da loucura, o menor estava solucionado. Os outros? Estes o perseguem desde o primeiro berço ou respirar fora do ventre materno. Não têm solução. Nunca terão. Irão acompanhá-lo para o sempre, como fossem pesadelo constante.

-- Boa noite, Sílvio. O de sempre?

Sebastião, garçom que sempre o recebia com um sorriso pródigo, desses que não se esquece, sabia que era a hora de trazer uma gelada, uma quente e preparar o bloquinho para anotações mil. Até jogar água no chão e usar um rodo como aviso, o cliente ficará solitário a rever coisas mil.

-- Boa noite, Bastião. Manda ver o de sempre. Consegui viver mais um dia. É pra comemorar!

Nas ruas ao redor, a redondeza parece nem saber que uma vida padece de parecer. Os poucos que ainda circulam e não copulam estão a viver suas próprias ilusões. Alguns, poucos, com tesões. A maioria com senões.

-- E aí, Bastião, te valeu hoje viver?

-- Faturei legal com os dez por cento. As pessoas voltaram a descobrir que um copo e um bar salvam existências. Portanto, acho que valeu.

-- Que bom. Grana faz parte. Sem ela não há arte de consumo, de poder chegar num bar e encontrar gente como você. De poder extravasar, largar os grilhões do tempo, achar que um momento embriagado pode tudo esquecer. Bastião, um brinde pra você!

Nas mesas vazias e próximas, o eco da voz vocifera como fosse uma eclosão de quase nada. E era. Afinal, o que é um único homem a falar de si numa vastidão? De uma janela qualquer, ainda acesa e vivente, Tim Maia cantarola para acender o farol. Mas, perto dos ouvidos dois carros colidem de frente. No saldo do Samu, três mortos e cinco feridos. Vai dar página par nos jornais de amanhã... Tem coisa mais importante para se reportar.

quinta-feira, 17 de agosto de 2023

Os Cariocas...

Por Ronaldo Faria

 Amanhã promete ser de 26°C. Dia quente para um inverno que no passado fazia fumaça sair dos lábios e nariz. Dia a mais, ademais. No calendário sedentário, dromedário a caminhar num deserto que há muito acabou. Só falta o beduíno de uma Copacabana qualquer entender.


A voz escrita mostra que o que foi ficou para trás. As vozes na vitrola, em quarteto vocal, mostram apenas que a noite é a porta aberta para mais uma embriaguez, dessas que chegam depois de um tempo que nem mesa de bar acredita ter existido. No calçadão, o homem dá adeus à mulher e entende que o vaticínio daquilo que vai escorrer nas ondas do mar é a maior verdade. Com o destino não há como lutar.

-- Mas, por que Carmem?

-- Sei lá... a vida quis assim. Talvez o destino também quisesse. Acho que nos faltou entender. Saber que a vida é volátil. Acho que foi isso. O real se foi.

-- Mas que real? E o sentimento, onde ele fica?

-- O sentimento é só poesia. A realidade é que manda na vida. Quer saber: foda-se o sentimento! Se lamento? Lamento. Mas tem uma realidade a seguir. E essa é o nosso porvir.

Antônio larga o chope na mesa, paga a conta e sai na madrugada a pisar a areia da Zona Sul. À frente não vê o Dois Irmãos, o Vidigal ou o que seja na escuridão do morro que cobre a subida da Niemeyer. Anda sem destino, em pleno desatino de quem sabe que amanhã terá uma ressaca que não virá do mar. As ondas continuam iguais no seu ir e vir desigual. Espuma a mais ou não. Tanto faz.

Ao caminhar na sua própria ilusão se dá ao absurdo de crer que a felicidade um dia virá. Mas, ao cair no mínimo de lucidez, sabe que o fim de tudo será um caminho em descaminho, uma inércia temporal que cabe em cada bonança que chegará após a chuva despencar em violência na leniência final. Trôpego, Antônio chega até a ponta do Leblon. E agora? Voltar até o Arpoador ou seguir até onde der? Sem resposta presta, deita na areia e olha para a lua que brilha silenciosa no céu. E agradece o que viveu, padece a ilusão que o tempo dá e se doa ao tempo que ainda resta. Num canto da Delfim Moreira um louco de fumo dá um grito cenográfico: “Que o que sobra não sejam sobras de um sombrio meio fio!” Depois, chapado, deita na calçada no frio...

terça-feira, 15 de agosto de 2023

Pavilhão 9 em dois

 Por Ronaldo Faria


Grilhões e celas a enjaular e virar o lar. A poucos que sobreviveram aos pipocos. Às idas ao hospital e, no caminho, falecer. Que tiveram esperança, querência, conjuminância entre ser e poder ser. Coisas mínimas e atípicas, trapizonga de si mesma. Quem sabe uma pele escura, a curra da existência, a cura errática e imprevisível daquilo que nem sofrível é. Ao longe, a longitude de trilhos de trem, ruas de terra, esmeros que sucumbem a cada alvorecer. Um tanto de contas a pagar, filhos famintos a afagar, prenúncios de violência explícita que jornais nunca detalharão. Quem sabe um poeta do rap lembrará a cena – tiro primeiro e saber por que estava ali depois. Só que aí, largado num buraco em terra, sem nome ou quimera, nada mais será. Sem adeus, sem história, sem foi ou será. Como disse o poeta, gente boa, gente má, gente inocente. Muitos gementes. O que, ao final, terão dito?


sexta-feira, 11 de agosto de 2023

Pavilhão 9

Por Ronaldo Faria


Aonde irá parar a violência que nem a ciência da mais próspera chegança dá?

 Ele caminhava quieto e único na via empoeirada e escura que vai dar nas quebradas. Pouco pensava. Sua cabeça endoidava a cada puxada. A brisa exalava o pouco que restava da rua, na moral. Casebres de poucos metros quadrados enquadravam as cenas que nunca serão guardadas nos olhos de quem não enxerga além das pálpebras. Em cada espaço há vidas, ávidas de serem reais além das páginas policiais.

Na estrada que se faz estardalhaço em um 190 qualquer que põe a sirene a gritar, passa um camburão que carrega preconceitos e balas prontas para disparar. Ele não estremece. “Nada devo, ou se devo não sei. Aperte o play”. Vai devagar, com um passo a cada próximo passo que pesa nos pés. É foda seguir os rumos em desaprumo que a vida dá. Mas ele segue. Exangue, cumpre a complacência de cada dia no bagulho.

Logo estará a chegar. Mas, a qual lugar? Se tiver onde deitar, largar o corpo cansado e passado, já está bom. O dia foi marrento, quase sangrento. Ponto a bater, salário mínimo a ver, esperança de virar o jogo a perder nas quatro linhas do crer. Mas não há que se desistir. Algum dia o vir há de vir. Acreditar é preciso, assim como retirar o siso nunca nascido e que um dia irá apodrecer e doer feito filho pródigo e nascituro.

Assim, nessa chegança qualquer, avista a casa de reboco à vista. “Um dia termino a obra”, pensa pra si mesmo, a esmo. E acelera o passo, quase descalço do chinelo grudado com prego. Sabe que um dia o dia amanhecerá distinto. Senão, basta apenas olhar no horizonte, naquele monte de nada que se vê. O importante é seguir a rima, o rumo, o prumo. Como diz a rima, cabeça vazia é a oficina. Quero somente uma vacina.

Ao chegar, abre a porta. Entra no quadrado presto, quieto, sombrio e funesto, Acende a luz, abre a geladeira a gelar poucas cervejas e algumas coisas rasteiras. Acende um do bom e dá boas vindas para a próxima jogatina. Sabe que pouco haverá amanhã. Mesmo acordar, ônibus cheio igual, patrão filho da puta a achar que faz tudo na moral. Antes de apagar, ora aos santos e exus e pede apenas que Deus exista ao menos no final.

quarta-feira, 9 de agosto de 2023

Na pedra azul do Paulinho

Por Ronaldo Faria


O rio corre quieto nos vórtices que a natureza dá. E brinca de viver entre as pedras que tanto pingaram que até furaram. Nos atabaques que batem sob o tocar forte que sangra as mãos, se fazem frenéticos os amantes que buscam onde trilhar na estrada de veias e sangue que o coração dá. Quem sabe uma sala de cinema onde mãos buscam os seios sedentos de mãos, o sorver de línguas que saem das bocas para parear outras línguas famintas, a incerteza do limite entre a morte e a vida.

Vestida de branco, a mulher se despe na pele mais branca e branda ainda que lhe cobre o corpo desejado. E sorri como se o amanhã não pudesse chegar ou se aconchegar no corpo do amado. Como uma febre que nos toma a cada noite e faz os cheiros mágicos da poesia florescer, a branda chave que fecha o coração para novas emoções se quebra e, inodora, junta harmonia e tardia centelha a fugir entre rimas e réstias. Quem saberá se amanhã, em ressaca, não abreviaremos o retorno?

No torno que dá acabamento às letras o poeta perpetra a orgia que um dia teve. E lambe pele e pelos, suga sons perdidos em camas que recebem milhares de desamores e brinca de algo qualquer. À sua lembrança, a mulher. Na inocência da pueril incerteza, a leveza da vida. Essa coisa triste que tem início, meio e fim. Como uma pedra azul a rebrilhar fulgurante no desejo do amante a ser. Do seu canto finito o poeta antevê a brincadeira sem graça que é viver para poder somente sobreviver...

segunda-feira, 7 de agosto de 2023

Astor Piazzolla sobre Vinos y Sonidos

Por Ronaldo Faria

La noche en la calle es breve. Tal vez un auto que pasa con sus faros reflejando uno que otro cuerpo borracho que insiste en mecerse aquí y allá. Tal vez un sonido que brota de cualquier casa de tango, en un bandoneón que recuerda a la amada desvalida llorando en brazos de otro amor. Una lluvia frágil y trágica que lava el asfalto que brilla entre las luces de los postes de neón. De lo contrario, solo el destino demostrando que, a duras penas, rige la vida de cada uno de nosotros. En brazos perdidos, indefensos de tanta soledad, la inmensidad de un mundo que ya no existe. Quién sabe, tal vez en otro mundo, en otra esfera, en la tragedia de una pareja que baila sola en un salón oscuro y vacío, volverá la esperanza. En la mesa repleta de copas de vino, las botellas sorbiendo el aire interior antes de llenarse, el hombre cree que el futuro no pospondrá la llegada del fin. Inolvidable, seguro, finalmente traerá el final definitivo. La imponente verdad que no seremos capaces de ver, sentir o desmentir. Por lo tanto, nos bastará con ser...

sábado, 5 de agosto de 2023

À Sivuca

Por Ronaldo Faria


Um pássaro passa rápido pela ravina. E vem e volta feito saudade que não tem sol e nem sina. Voa como uma nota se denota na música que ecoa perdida nos ouvidos da vida. Brinca de coisa rara, errática, e se espalha pelo espelho que é somente passado a se reviver. A ver o que não foi e aquilo que restou, o homem pensa em chorar mais uma vez. Mas qual, não há o que dizer. A dissonância não cobre a grama seca de fogo e nem o carcará sangra a ovelha que pasta na ravina. O mundo não muda à vontade divina.

No curral, o gado olha bovinamente o povo que passa por detrás da cerca. Longe de lá, mas acerca do problema, o padre pede que a chuva se espraie além do céu para chegar à terra onde o barro escurece a flor morta de um tempo que não floresce. Quantas paixões não deixaram de se embrenhar entre corpos e carícias por causa de uma rapsódia que a orquestra do destino se negou a tocar? Deitado no alpendre, o cachorro velho e fraco vê seus últimos dias ultimarem aquilo pouco que o universo lhe deu.

Mas, na casa de farinha, dedos, suor e braços amparados na grande colher de madeira ceifam de futuro a mandioca ralada e branca que crispa de calor sobre o tacho onde a lenha grita sua última dor. Nalgum lugar um vaqueiro grita para o bezerro fugitivo e cheio de medo voltar. E corre entre árvores secas em que espinhos tentam furar o couro que o protege. Com o bucho a agrar nas esporas, o cavalo segue sua sina. No embate em penumbra que ilumina o resto de luz solar, a saudade de um ou outro, do mesmo lugar. 

“Vem, volta logo, meu corpo e minha sede de beijos te esperam num só esperar.”

Grito de Maria, na caça de pau a pique, a acender o lampião que tenta apenas alumiar e ser...

quinta-feira, 3 de agosto de 2023

Na rapadura e no forró

 


Hoje (ontem para os muitos sonolentos sedentos de cama) foi dia de São João? Bem provavelmente foi. Portanto, uma cerveja de rapadura após tantas transgênicas nada melhor. Em flor, a frágil e frígida dor parece sumir. Talvez um destempero que só o melhor tempero faz surgir num urgir de pouca lucidez e tanta ignóbil rigidez de emoções. Quem sabe um forró de pé de serra, mesmo sabendo que a serra foi serrilhada do mapa. Talvez uma sanfona em desarmonia com a vida, a tocar um baião de saudades mil. Uma certa incerteza cândida e fragilizada como a flor no cabelo da morena que se banha no rio seco que no passado levou o avô que só queria um carneiro para comemorar seu amor de décadas atrás.

Hoje, na oração que junta coração e canção de ver alguém que nunca foi humanamente ninguém, vou cantar o futuro que o tempo não tempera com pimenta e nem lamenta ter deixado partir. Talvez um cavalo desembestado a correr nos pastos cheios de fuligem de um fogo que veio para fazer a vida renascer. Senão, um senão entre o que existe e aquilo que nunca existirá. Talvez um roçado verde e cheio de comer para o gado, um cemitério vazio de anjinhos carregados feito fardo que pesa mais do que a vida possa prever. No antever de algo que volatiliza como fosse apenas um pelo a mais naquilo que pode se lamber. No sorver do futuro, o útero de uma vida que ainda acreditamos poder viver e acreditar. 

Somos seres eólicos e alcoólicos. Tragicômicos e icônicos, restos de esperanças e vestimentas que trajamos para não andarmos nus como rei de fábula nenhuma. Daqui, apenas espero juntar saudade e algo a ser para um momento onde sanfona e folia estejam além da saudade.

Zé Geraldo

 Por Ronaldo Faria A viola viola o sonho do sonhador como se fosse certo invadir os dias da dádiva que devia alegria para a orgia primeira...