sexta-feira, 29 de março de 2024

Sob vários graus acima do normal

 Por Ronaldo Faria



Calor infernal, dramático, atávico, caudaloso, suarento, bastardo, deplorável, ignóbil, destruidor de vidas, maldito, real.
Para esquecê-lo (não aquecê-lo), Caetano em Jóia (no tempo que acento havia).
 
Na escuridão dos bares clareados pela lua e luzes de postes e faróis, o homem caminha em busca de ficar trôpego ou se reconhecer, quiçá. Na aquiescência que nem a loucura que logo chegará dá, ele segue no retumbante momento em que celular não havia. E as fichas de orelhão eram até motivo e roubo. A espera de uma carta (espera trágica e demorada) era o querer saber aquilo que a amada estaria a dizer e responder. Era um tempo em que as emoções não mudavam aos segundos. O querer como que se perpetuava na lambida do envelope, na lambida do selo, nas mãos do carteiro que, sabe-se lá como, num momento entregaria a emoção tardia.
Nos ruídos mil de um bar, entre olhares e desejos, afagos e tragos, sonhares e parecer poder, um ou dois se lançavam nos mares de revoltas tempestades e calmarias entre lençóis e blasfêmias. Revoadas de pássaros e toques nas coxas, seios e cabelos descabelados e loucos. Entre as pernas da mulher, mata de pelos num triângulo que se despenteava à língua ávida de prazer dar e ter. Um ou outro carro se bandeava nas ruas desertas e pérfidas. Um bêbado ou outro caía no asfalto e levantava para cair de novo. Na longitude entre o tempo e o vento, a esperança de acordar no dia seguinte sem ser pedinte de uma outra vez a tocar e olhar o rosto que desperta ao lado ínfimo.
No olhar do céu em seu negror involuntário de lua nova, a saudade déspota de emergir na espuma que vem do fundo do mar. Nos lábios molhados da virgem há muito desvirginada e aplacada em seu mundo, o efêmero porvir que só quem ama conhece. Como um universo onde o verso é apenas apêndice da leitura de jornal matinal, abstraído de rotativas, jornalistas sonhadores e boêmios, bravatas de quem acredita que ao outro possa informar. No mundo afora, que roda sem parar (e desde há milhões de anos é redondo), o ofegante e perdido amante pernoita em seus sonhos bisonhos e trôpegos. Ao fim do dia, diásporas serão o derrear de algo ou nada a ser...

quarta-feira, 27 de março de 2024

Transição musical

 Por Ronaldo Faria

 



O silêncio, esse mestre do aprendizado, chama a chama que ainda possa existir no poeta que submerge em si. E amplifica passagens que só ele viveu, transmuta corpos nus em imagem nenhuma, passeia nas paisagens que o desejo do ensejo maior não traz mais. “Garçom que não pedirá os dez por cento, espere. O copo ainda está a transpirar e uma espuma a brindar.”
O que emerge entre um e outro gênero musical? Há um santo metafórico e onírico que faz a junção de notas e versos? Ou o próprio som que envolve o quadrado pequeno e senhor de si mesmo, alcoolizado, faz seu ritmo no lugar? Quisera saber para eu mesmo entender no criar. Infelizmente, a resposta nunca terei.
-- Obá de biabá caô, obe obá!
Um piano demove sons de seu dedilhar. Na voz feminina, no passado ranzinza que não quer querer ir embora, a aurora ainda tem muito para chegar. E relembra amores mil, corpos jogados em si, entrelaçados e untados de desejo e torpor. Na dor da separação, a unção de sonhares e lumiares. Na cozinha, a geladeira grita que o gelo chegou. “Como beber cerveja presa em si agora?” Na sorte dos notívagos, ela jorra no copo feito fosse cachoeira de paixão. No crer que o passado pode voltar, a voz se atira no fim de qualquer peça que nunca foi aos palcos. Cadafalsos ficaram no caminho. Nos cheiros que se perderam, um bar se embriaga de delírios e letras escritas num guardanapo qualquer. Faz-se princípio e fim. Dorme numa esquina dos confins. Sai, enviesado, pelas estradas dos confins. Vira tudo e coisa chinfrim. Mas fica onde está, no emaranhado de um coração sem razão. Que sobrevoa as décadas efêmeras que deixaram de ficar, sobreviveu em universos em que éramos o rei e o vassalo, parou no tempo que não se deixa derrear. Nos segundos profundos, aquilo que nos coube ser.
-- Tenho sede a embalar sonhos...
Agora, sem ágoras e palanques, sem redes sociais a viajar por todo o mundo, vou apenas, a duras penas, relembrar aquilo que se foi. E acabou.
 
II
 
Cadê você? Cadê eu? Cadê nós? Onde deixamos o universo se tornar o verso final? Em que esquinas rompemos o juntar que se deu depois? No erro que não há como recuperar, do poeta romântico e parnasiano, daquele que nada sabia da vida (e agora sabe?), a dizer vá. Só que a história de cada um de nós não deixa parágrafos a escrever. Dá um ponto final. Sem final. Ao menos no que se foi. Na imensidão da ilusão, a certeza de que não existe servidão...
 
III
 
A ouvir Márcia Castro que eu um dia comprei o CD e nem sabia que o tinha. Certamente, se a venda de CDs exististe ainda, talvez tivesse comprado de novo por não saber tê-la. Como ela mesmo canta: “Chupa e agradece”.
 
IV
 
Só, somente só. Arriba nós! Que o próximo segundo nos livre de nós de uma senhora ou mais. Abre a porta e janela e vem ver o sol nascer...

segunda-feira, 25 de março de 2024

Família Caymmi

Por Ronaldo Faria

 


Cair em Caymmi é navegar nos mares da Bahia. É voltar aos revoltos tempos sem lumiar. É se banhar num istmo que se envolve de águas salgadas e doces e adocicar a tristeza feito ela fosse algo que nunca no corpo morou.
Se envolver em Caymmi é como entrar de novo no cinema onde o escuro esconde a mão que se põe sobre a mão da menina que o destino de loucos não deixará nunca juntar. É fazer dia onde a noite cobriu o sol da esperança.
Ouvir Caymmi é trazer o passado ao presente que se ressente de nunca ter visto o futuro que poderia ser. É reviver sem sequer viver. É dormir sem deitar na cama, é acordar num universo em que o verso é somente voltar a ter.
Catar Caymmi entre tantos milhares de CDs é correr o milharal antes do sabugo colher. É olhar a semente que um dia irá ser flor e secará esturricada na seca do fim. É tirar cheiro do alecrim. É comer com a mão a solidão do porvir.
Cantar canções de ninar de Caymmi é balançar na rede que faz um vento quieto que se embaralha com o cheiro de lampião que o querosene traz. É ouvir o mugir do gado a chorar o bezerro desmamado no brilhante luar.
Beber ao som de Caymmi é cair num poço que está cheio de medos e sonhos que se misturam num vai e noutro vem. É correr os caminhos que se foram no desdém. É beijar bocas sedentas e secar nas sedes de outro alguém.
Morrer em Caymmi é amar a nostálgica estrada nunca trilhada, os amores que se deixaram sem fim, um enfim ensimesmado de perfídia e sim. É escrever no derradeiro e sincero esmero de sangrar em veias dos meros confins.
Escrever em Caymmi é saber ser de Humanas e até hoje não conseguir fazer conta. Os contos e poemas tomaram o pouco espaço no cérebro que restou. Enfim, ser Caymmi é acreditar que um dia o nosso dia ensolarado virá.


sábado, 23 de março de 2024

Na companhia de Muleke do Banjo

 Por Ronaldo Faria

 

“Samba é pra levantar o astral. Senão, de que vale bailar na avenida vazia, sem vida, sem a morena a rebolar?”
A voz de Genovésio na mesa do bar, cercada de garrafas vazias de cerveja por todos os lados, ecoa na viela que se entorta na subida do Morro da Pedra Caída. Defronte ao boteco, para alguns apenas uma birosca a mais, o barraco de Jovelina, sem ter sequer pérolas negras, está iluminado. Malfadado seja, pois, o tempo que desagua na estrada de pó e terra entre ruelas pequenas e cheias de gatos que iluminam a madrugada ou servem de tamborim no Carnaval.
“Seu Juvenal, mestre dos petiscos de além-mar, traz mais outras Brahmas pra gente esvaziar. E anota pra depois de amanhã.”
O pedido de Genovésio é logo atendido. E alguém puxa um cavaquinho, outro saca uma caixa de fósforos e mais alguém surge com o pandeiro. “Agora fodeu”, pensou o trabalhador braçal que, logo perto, desperto, queria poder dormir. Aos poucos, vozes entoarão forte o samba esquecido há muito, sentirão saudades do poeta que se foi, brincarão de rimas e sustenidos para ver aquilo que o universo fora do verso não dá. Quem sabe um bloco não será formado logo depois, no após que o apocalipse da vida dá.
“Alguém sabe que horas são? Para! Pode parar! Aqui ninguém vai saber. A vida é só uma. O pagode não pode esperar ou se esmerar no dia raiar.”
Malandro no mundo da ilusão que só a vida dá, Genovésio puxa um samba novo e outro antigo. Antípoda de si mesmo, a esmo, como quem toca banjo sem saber sequer dedilhar, levanta o dedo e manda descer mais litrões. “Se é pra morrer logo ali, vivamos as ilusões que são o negror da noite que nunca mais vai rebrilhar igual.” Num ou noutro barraco, desses que na primeira chuva forte pode descer o asfalto, o som reverbera feito gérbera que cresce em qualquer lugar.
“Seu Juvenal, fugitivo de Portugal pra descobrir aqui que o melhor é sair de onde o povo se acha mais do que é, manda uma porção de calabresa pra forrar.”
Na esquina que pouco existe numa favela, o pai de santo deixa a oferenda para Exu e Pomba-Gira. Marafo e frango cortado no pescoço com sangue a esvair, farofa e vela, esperança do futuro melhor, e o destino entra em desatino no perder das raras horas. “Oxalá, meu santo maior, meu Omolu que me dará a morte tranquila, minha Iansã que derrubará as águas para lavar o mal, sejam bem-vindos”, pensou Genovésio. Ali perto, no alto de onde o morro vê o mundo girar, um casal se enrosca na cama entre orgasmos e magros rebentos. Os ventos servem apenas para envolver o teatro do acaso.
“Vamos lá, moçada, faltam as dez últimas saideiras antes da derradeira. Vamos deixar rolar que sexta-feira é só uma vez em cada sete dias.”
Genovésio, o inverso do verso nunca cantado na escola de samba que não sai do grupo pra subir para algum grupo que está longe do sambódromo entrar, solta o verbo. E vem a saudade da índia do Pará, com seus cabelos lisos e negros, que se refugia no asfalto do subúrbio e sabe-se lá se viva está. Onde vive é difícil até para ele voltar à estação de um trem que morre do lado da avenida proscrita em seus cubra-libres e gins com tônica. Tempos de amores mil, telefonemas em fonemas, bichos de pelúcia, batas, quando ainda era preciso sinal pra discar, soberba do passado perdido e urdido, desses ardidos que nem a pimenta que se derrama na linguiça dá. Nalgum lugar existirão outros lábios de mel ou fel.
“Que porra é essa que parece brilhar no céu? Quem chamou o sol pra ele acordar? Puta que pariu, porque a vida não nos deixa viver? Por quê?”
Revoltado, Genovésio bate forte na mesa de metal quase a cair de tanto enferrujada. Seu companheiro de birita se irrita e diz apenas: “Genê, dá pra segurar a onda e a loucura? A cura está aqui na mesa. Quer destruir a receita do doutor da ilusão que ao menos deixa a gente esquecer que tem outro dia pra acordar e viver?” Genovésio entende o recado e cai na real. É preciso abrir a roda pra deixar o coração participar. Levanta o dedo, pede outra e olha para o céu em cores a derramar e se redescobrir na madrugada fria que virá se aquecer. Ao redor, um cachorro urina no poste, o ajudante de padeiro desce o morro para cumprir seu labor, uma sirene de carro de polícia vem atender outro defunto perfurado de balas a descansar no asfalto. O mundo permanece igual. Tal e qual.
“Ô português, obrigado por nos deixar sonhar! E viva a Light que deixou a geladeira gelar.”

https://open.spotify.com/intl-pt/artist/7ibgQjp6BEnmUo3WOwuDXE


quinta-feira, 21 de março de 2024

Testamento ao som de Marcos Assunção

Por Ronaldo Faria

10/11/2023


Estou bem perto do fim, ou do começo. Eu sei. Talvez só mais um passo, quiçá um tropeço. Um respirar sôfrego, a batida descartável do coração. Decerto, não dará tempo sequer para uma oração. Mas, também, não sou de orar ou pedir e as poucas vezes que o fiz não fui atendido. Talvez, aos mortais, o desejo de um milagre não seja permitido. Mas agora tanto faz.. Aqui nesse mundinho nada mais me atrai ou apraz.

Hoje levei minha filha para passear comigo. Ela estava na frente como sempre, no seu canino rebolar. Ninguém a via, com certeza. Aos olhos do mundo ela estava invisível. Mas eu a via. E conversava com ela. Quem tenha visto talvez tenha se apiedado do velho já caduco, desses que conversam consigo mesmo ou com amigos imaginários. No meu caso, era com uma filha peluda que pisava o asfalto já quente da manhã.

Amigos, já não os tenho em profusão. Na verdade, nunca os tive. E os que restavam já não estão. Fazem falta? Não. Afinal não tenho mais a mínima vontade de interagir com ninguém. Por isso, tanto faz como tanto fez estar aqui ou não. Na verdade, quando este texto estiver no site, em 21 de março de 2024, talvez seja só mais um escrito de quem já se foi sob as chamas de um crematório, agora em cinzas com sua filha.

O certo é que perdi o medo da morte. E para consegui-lo é fácil: é só não ter mais motivos para estar vivo. Se o fim é certo e escrito desde o nascer, não há porque temer. Talvez tenha uma saudade de escrever, beber uma cerveja gelada, ouvir uma boa música, ser. Mas essa saudade logo passará. Onde estiver, “vivo” noutro plano ou em total finitude como deverá ser, estarei com minha Nina, e isso é tudo que faz da morte um renascer.

Mas, se vivo ainda estiver, vamos tocando o tempo que, por ventura, restar. Na procrastinação da eternidade um solilóquio diário há de haver. E novos passeios com a filha sob o céu de um sol escaldante, a revisitar postes e árvores que temos ainda que cheirar ou urinar. E seguir seus passos para onde ela quiser ir. Enquanto não chamarem a ambulância de um hospício para pegar o velhinho da cadela invisível, caminhar...

terça-feira, 19 de março de 2024

Barata, Halloween e Rita

 Por Ronaldo Faria


De repente, uma barata imensa surge do nada, em plena noite de Halloween. No som, Rita Lee. Na junção, a filha de quatro patas. Rápida, a sola do chinelo bate firme. Na primeira porrada, a barata cai no chão. Vem a segunda, mais forte e certeira. Foi-se. Ficou, porém, a gosma no subwoffer. Toalha de papel molhada para limpar. A mesma que cata os restos mortais da Periplaneta americana. Descubro então dos riscos de esmagar este ser. Mas, já Elvis. Esmagada está. E desceu a latrina quieta e calada. O mundo? Esse permanece para quem tiver seu barato de poder em si mesmo viajar.


sexta-feira, 15 de março de 2024

Baiano novo e velho

 Por Ronaldo Faria

 


Mística imodéstia, dessa que parece não querer holofotes ou xotes nunca dançados, faça-se história e retórica. Estoico a escrever nova palavra que vocabulário nenhum aceita, retórico na verborragia e na magia de não saber de onde vem a inspiração, faço-me astro e pusilânime coadjuvante. Na mira daquele que enxerga além do mirante, o ausente e perpétuo, delirante e claudicante escriba que nada sabe. Aos sábios que se esfalfam de pronomes e nomes, antônimos e sinônimos, regras mil de saber escrever, minhas loas eternas. Afinal, sei que algum colou por aqui para procrastinar a grande mentira que há décadas estamos a contar.
 
II
 
Severino, que não é nordestino qualquer, segue na subida da rua a brincar de alguém ser. Ri e branqueia a lua com seus dentes de dentadura de porcelana. Pagou a última parcela no mês que já se foi. E agora, na brisa quieta e branda que corre as esquinas, sobe a ladeira para parar no seu único lugar: um barraco simulacro de vida e largar. Logo, irá se largar no sofá que não há. Irá dormir, talvez, a sonhar com a tez da amada, mesmo sem saber se ela existe. Talvez, num momento inerte no seu mundo e inexistente na mente, far-se-á pródigo e biltre. Frágil em suas dúvidas e forte nas suas andanças nunca feitas. A driblar desapegos e criar chamegos (mesmo longínquos), Severino sobe no seu caminhão cheio de paus e araras e rima felicidade com saudade. A espantar mosquitos proscritos à vela que queima, vai a marchar feito fosse um marechal. E brinca de bola jogada num pasto ressecado, transita claudicante nas trilhas findas, passeia como quem anseia a última ceia. Ele sabe que a morte se aproxima e, ensimesmado, naufragado e prostrado na varanda que não existe, apenas anseia um seio para dormir neste dia.
 
III
 
De repente a ausente bate a porta para perguntar se há incenso para cheirar. Nessa hora se pensa: porque não pode se viver em outro lugar? Afinal, como o som repete, “besta é tu”.

quarta-feira, 13 de março de 2024

Caetenado e antenado

 Por Ronaldo Faria

 


Voltar ao passado, já tão antepassado que parece ter sido assado na fogueira, mistura de crença de vida e esmero, é revirar lençóis e tropéis de bar em bar à busca da insalubre beira-mar. Dessas que se anda na molhada chuva e vagueia num tempo imemorial, sem correr, enxergar e parar.
Voltar ao passado, carcomido de lembranças atávicas e mágicas, dessas que levam a gente a lugar nenhum, na batida de um atabaque circunscrito a um quadrado místico. De pratos comidos entre paixões e prantos. Nos imemoriais e tradicionais pontos hoje mortos e notívagos do suar.
Voltar ao passado, intrínseco e seco rio que levou o avô para depois da vida que há, é correr na areia fina e infinda, branca e branda feito ultimato de um mundo sequer. O cheiro do cavalo a suar e o sonoro silenciar de um vento que traz a troça queimada para a lembrança intrínseca e sem nenhum luar.
Voltar ao passado, travestido de pensares mil, mulheres livres e entregues às trevas que amanhecem o amor, junta a imensidão da poesia e a heresia da solidão. Intrínseca seca que é uma tempestade de letras e frases. Vozes diáfanas que sopram o verso final. Sentença oral e quase marginal.
Voltar ao passado, revisitar o teatro da vida que morre no próprio tablado. Ser ator, autor e diretor da pantomima que se desenrolará décadas após. Cortar cenas, reescrever finais, cobrar ingressos a cada peça nunca estreada, responder às críticas insuspeitas com a frase do palco vazio: “Merda!”
Voltar ao passado, brincar de solitário cavaleiro num cavalo branco que o derrubará logo depois. E cheiro de bosta de boi, lenha queimada no fogão, milho debulhado, da flor que não há na roça esturricada. Mistérios que nós e a própria vida desconhecem no emaranhado que é a nostalgia.

segunda-feira, 11 de março de 2024

Itamar eterno Assumpção

 Por Ronaldo Faria


O poeta manda a mulher esquecer seus cotovelos, que devem estar prostrados (creio) sobre a mesa. Na luminária que brinca de sombrear retinas, rotundos e redondos homens a desejam, mas têm medo de decifrar seus medos diante dos seios que sobressaem do vestido vermelho, revestido de tafetá. Era para ser uma noite a mais, dessas que bronzeiam o sol de tanto luar e torneiam corpos despojados e despejados nas camas traquitanas e infinitas. Nos sonhos hediondos e irrisórios não há lugar para tardes vazias ou poesias. Talvez um navio perdido no mar que seca a cada paixão. Senão, a mágica farsa de sobrevoar o deserto de cada ilusão. Antropofagia diária rumo à morte que fica mais perto a cada minuto diminuto no cuco que há muito deixou de cantar ou contar novas e priscas eras. Na mesa, um manjar quieto e quente a derreter vira sobremesa nenhuma. No espanto de quem se esconde em cada canto ou pranto, a noite fria se esparrama na fórmica da cozinha. Na gélida saudade forjada em feridas, a certeza incerta de que muito há que chegar para depois se perder. Sob a volúpia da bebida mais barata para sobreviver no mês que se fará seguinte na sequência entre a fuga e a demência, o poeta perpetua sua presença, furtiva de si e amiga maior. Em tom de dó, mas sem dó daquilo que se foi, o cantor traça o andor sobrevivente e vivente da própria desgraça pouca. Rouca, a voz interior vocifera. Feito rima, a sentença brinca de ser eterna. Mas falta a perna que se alisa e se aperta quando quilômetros correm rumo ao prazer.

-- Senhor que inexiste, esteja em riste na porta do paraíso para conter o encontro do homem e da filha/cadela antes de, juntos, se unirem em cinzas. Conto com esse mistério etéreo para que a treta que hoje existe frutifique.


sábado, 9 de março de 2024

João Gilberto em canção

 Por Ronaldo Faria


Desatino entre os amantes deixa o contrabaixo solitário a tocar. Nas mesas ao redor, na rotativa retórica da vida, um astrolábio ou uma bússola teriam enlouquecido no frenesi sem cessar. Talvez o revés que há na contradição do amor e da dor, uma gargalhada hilária que sobrevive plúmbea na efêmera felicidade que, já dizia o poeta, é uma pluma. Senão, a rotina hedionda que faz dois corpos viverem ao longe, entre cópulas postergadas e copos vazios. Na ânsia demasiada da fala que cala, o sorver de trôpegos beijos, benfazejos, quiçá. O tocar de peles, no alisar da penugem que se agarra entre o limiar e o prazer. A discrepante nostalgia tardia que existe quando o sonho de juntar é somente um inseto a brincar na semente que brota. E ele sabe, no seu voar desandado e desvairado, irá morrer antes mesmo da flor brotar. O fruto, este perecerá sem o gosto que a língua molhada traz e refaz a cada beijo. Mas, no desatino cretino que traz o choro para regar de lágrimas a despedida nunca finda, o poema se renova e dá sombra àquele que, na ilusão derradeira e fagueira, ainda crê que viver requer ser feliz. Na esquina escondida pela luz queimada do poste, uma prostituta acena de volta...


quinta-feira, 7 de março de 2024

Entre Dominguinhos e Ferragutti

 Por Ronaldo Faria

A vida é uma brincadeira efêmera e etérea como a fêmea a parir seu inferno que jorrou em sangue e placenta na urgência que a chegada da nova vida dá. E voou, revoou, fez revoada e louvor. Passeou entre trilhas, caminhou em andrajos, fez-se pedaço de terra esturricada e inclemente, trouxe cheiros rotineiros e bem-vindos, todos ouvintes de um mistério que nem nós mesmos sabemos qual ser ou mesmo o que será.
Na mesa que nunca foi farta, a fátua certeza que o universo de versos não dá. Na solidão que a imensidão faz parecer finitude em inócuo desamor, uma estrada de pássaros que não cantam, cigarras mudas, mútuas brincadeiras sem meninos e meninas, num mundo onde as cores esqueceram o que é primário ou secundário. Na sanfona, o antônimo que o anônimo tresloucado e apaixonado não sabe se faz ou refaz.
Ter que fechar a janela ínfima do cheiro da noite para que o inseto de asas e corpo imensos não se bata e morra à luz artificial, uma fantasia que luta contra a insanidade que a idade traz. Voltar, nada volta, mesmo que em volteios e sortilégios egrégios que a loucura traz. Agora é fugir do mau agouro que na lucidez sempre se faz.
Raízes do Nordeste que o pior cabra da peste perfaz. Apenas a saudade de um menino que, em desatino, descobriu no sertão que o senão é melhor do que o portão eletrônico e afônico a anteceder a ilusão. No carro carregado por bois que deixaram de morrer para sofrer, cancelas e selas a esquentar o corpo de cheiro bom suado.
A brincar de sobreviver, a parca felicidade que a idade deixa transparecer. Quem sabe um ser se fará. No lugar que a mandioca vira farinha que se come sem dó, o tacho está cheio de esperanças nunca chegadas. A chegança da realidade é apenas mera mentira. Não caberá a nós, meros e mortais, saber a verdade de nada ser.
 
II
 
Incrédula célula que um dia irá se transmutar e matar a pouca vida que há, quem te mandou nesses corpos viajar? Quem te fez refém de outro mundo que sempre foi infindo e surdo às maldades do mundo? Quem te introduziu e te omitiu da saudade sem maldade que o louco sonhava ser verdade? Na ilusão de nada saber sobre este ser que nunca fomos, dicotômicos e encefálicos (fálicos quiçá), viramos espelhos de nós mesmos à espera de um dia morrer. Na essência do nada nadaremos no oceano que inexiste por tão seco de emoções ser. 


III
 
Boa noite à noite. Essa coisa dúbia e inútil, fértil e cristalina. Criadora de amores e dores.  Cheia de canções e unções. Cancioneiro próprio de quem só escreve pra si. Na artimanha de um convite da melhor estirpe, a certeza de que o jornalista sobrevive. A gente é cabaço e bobo, mas tem décimo sentido...

terça-feira, 5 de março de 2024

À música de raiz enraizada na gente

 Por Ronaldo Faria


O rio parece seco. E está. Suas areias, alvas e em pequenos grãos, se espraiam no canto onde raízes de árvores viram lugar pra apenas se deitar. Numa dessas raízes um avô de pele morena e terno branco descansou para o sempre. No sempre que nesse mundo pode haver, um cão morreu de fome e sede a lhe esperar. No sertão carcomido de seca e esperança, a anca da mulher mostra que outra cria está para chegar e se aconchegar ou no berço de madeira barata ou no chão de terra que cobre o caixão tão pequeno que até uma criança pode levar. No solstício da lua, a fogueira brilha nas fagulhas que se espremem para no céu chegar. Mas qual, morre antes mesmo de esfriar o pouco de fogo que a fez surgir na morte do graveto púbere e cortado, roçado a foice afiada. Feito tocar de sanfona e alumiar breve e quente, desses que fazem dois corpos acasalar. Que une beijos e braços, acalanta no acalento o que só o acalanto dá. E esquenta na junção de carne molhada e requentada no calor que somente os corpos dão. Senão, que venha o espocar de fogos de artifício, no seu ofício de iluminar e clamar paixões. Daqui do chão, enfurnado em si, o poeta profetiza seu fim. No afim de um menino que se atira às tiras que são cortadas no carneiro que geme a morte vinda e jogada na gamela, o ruminar de um tempo envolto de cheiros e choros, gozos e afoitos poemas sem rima e fonemas. Todos famintos de retintos textos, escritos de sangue e saudade infinda. Na cacimba que faz o burro urrar de dor, a infértil poesia. A brincadeira declarada e descarada, descartada e arrotada de perfídias e pútridas flores que deixaram de nascer e ver o sol ungir de vida a mais escondida erva de esquina. Talvez no futuro, esse que não há, o choro das letras derramadas na tela que brilha far-se-ão meras feridas. Ganidos de cães e lágrimas de seus pais, na espera das cinzas se juntarem para o sempre que nada mais é do que um nunca mais.
 
II
 
O assovio que o vento traz, no pio da coruja enfurmada no seu toco que resiste à sana do homem devastador, rouba o silêncio que é excrecência da essência do milagre da vida. Quem sabe num canto qualquer o bêbado esteja agora a beber a infinda sede de nunca ser.
O cheiro que a madrugada denota, entre notas que flutuam ouvidos e vitrais abertos ao chegar, faz o fastio de uma fome intrínseca e seca secar. É certo que o amante irá beber sua sede de descobrir-se em mil copos que a cópula faz antever como o âmago do prazer.
O toque que o escuro denota perpétuo e obscuro é o descobrir que faz gozo e esperma escorrerem pela perna escondida no cobertor de um Opala de quase 50 anos atrás. Na pedra preciosa do sorriso da índia carioca, a oca do menino ainda só aprendiz e brejeiro.
O pensar de um além aquém de quem sabe ser algo que voa e avoa feito a vida diária e embriagada de inútil talvez e coração, foge de si. Afinal, sabe que só há passado entremeado de salpicos de presente dormente por saber que nunca será o futuro de si mesmo.
O ouvir de um porvir cansado de esperar seu chegar apenas brinca de parquinho. Do alto, um anjo chamado pelos poetas de anjinho bate as suas asas arquejadas do lumiar. Daqui, na vazia promessa que esquece a pressa, apenas verte um rio calado de ser real em versejar.


sexta-feira, 1 de março de 2024

Ao Quarteto Maogani

 Por Ronaldo Faria



 
Espera, esperança de que a esfera sem começo e fim eternize um dia o final enfim. Na beira da praia que se espraia feito conjunção de planetas e réquiens, homem e mulher se refazem de distância e inconstância terrena e extrema, coisa de poesia e paixão que não conjumina com a sina fatal. Nos acordes do violão, a canção altaneira prevê março de um 2024 que ainda não chegou. À chegança que a dissemelhança dá, balanço de ondas e o voar de areia fina se esgueiram feito peito nu ao vento nas falésias que veem de longe os peixes que se amam num reproduzir de barbatanas e guelras. As guerras, sem sentido, deixem para os ensandecidos de loucura a navegarem em portos extintos e retintos de sangue exangue de veias e vozes. Quem sabe um deles, bêbado de paixão, não se entregue à velha mulher de vestido abaixo dos pés que pede um dobrão para satisfazer o que marés e correntes marítimas não brindaram de rum e mezcal. Piratas de si mesmos, a esmo nas rotas que sereias e cobras imensas de um mar pequeno dão, a viajarem em pilhagens que nada mais são além de dobrões de prata e prantos de esposas e viúvas absortas nas luas que se esgueiram no céu e nas ruas que se desdobram feito véu negro e nenhum. Aqui, dois não é certeza de um mais um.
Espera, permanente hiato na sapiência que um algo chegará como interregno do amor maior, traz vazios inertes feito tesouros obscuros e soturnos, inenarráveis invólucros que anseiam apenas um seio para sorver e dormir sob a fronte saciada de prazer. A ver, a vastidão que nem mesmo os mapas mais corretos, feitos por astrolábios e sábios, podem delimitar fronteiras e continentes, entes surreais que brincam de forjar em si mesmos à mesmice da descrença crente e demente. “Nunca mintas para mim”, diz o navegador na dor de quem viajou continentes e nunca se encontrou nos cais que jogava as cordas de um barco há muito adernado. Com a luz das velas que morriam para dar luz à cena, a dançarina, quase menina em corpo de mulher, ria às gargalhadas a cada golfada que o poeta em festa da loucura dava. E revirava as pernas à mostra, arrumava descaradamente o vestido que teimava em cair e mostrar seus mamilos róseos e duros. No palco, na parcimônia que a amônia dá junto com o fumo de uma folha esverdeada queimada em delírios e rios de prazer, os músicos seguiam sua labuta. Na rima inconsequente que a poesia dá, alguns chamavam de bolero da p.... No exterior que o estertor da criação deixa, casais e maltrapilhos sem amor seguiam ladeira abaixo. Da plateia alguém grita: “Falta um baixista nessa baderna!”
 
II
 
Uma ostra, já morta e taciturna em seu velório próprio, no invólucro apropriado, guardado entre a areia e os corais, não vê o vento que envolve a vulva e o toque ereto do amante, arfante por dar prazer à amada. Feito fada, a lua faz prosa com a prosopopeia que o escritor nem sabe do que se trata. Nalgum lugar, a tragédia de alguma volúpia tratante do amor, estará a rezar seus terços e deixar suas troças a descer a rua onde paralelepípedos se unem para ver pés em frevo e beijos em enlevo, desses que a primeira vista dá mas não avisa daquilo que, anos mais tarde virá. No vórtice de algo qualquer, a mulher volteia suas saias mil, seus pudores, detratores da canção em unção da ferida que nunca fecha, na espreita da incólume fresta, a festa de pernas e chamegos, abraços suados e aconchegos, o descrente que faz da incógnita o final da inglória batalha sem fim. Mas, para a ostra que no seu ostracismo plúmbeo da morte nada sabe ou antevê, apenas no sal do mar e um ou outro peixe a nadar seu começo do limiar vê, tudo já se foi. Talvez seja esse o mistério etéreo da existência: a crença de se saber dono do seu nariz...

Zé Geraldo

 Por Ronaldo Faria A viola viola o sonho do sonhador como se fosse certo invadir os dias da dádiva que devia alegria para a orgia primeira...