segunda-feira, 31 de julho de 2023

Na noite da música, em Amazon

 


Um batuque batuca e cutuca a cutícula que avilta a cena entre o noturno e o velho soturno que tenta dormir para fugir da vida que foi além daquilo que ele sonhava ou ansiava. Pares parecem permear a prosaica sensação entre o ser e estar. Em meio ao canavial, a eterna dúvida entre o bem e mal. Afinal, há diferença ente o racional e o animal?

 

A escola descia a avenida premida entre o tempo e o vento que vinha do sudoeste. Em presto, o diretor de harmonia harmonizava o furor dos passistas ao pouco tempo para romper a película que passava na televisão. Na visão do casal que dormia no sofá, o sofisma maior era apagar na cama ou tomar outro café. No aparelho 4K o narrador pregava: “Unidos da Manjedoura, vai na fé!”

Na epistola de Paulo (se é que é que ela exista), deve haver algo sobre o gingado da preta a bailar. Seu corpo, em torpor sensual, vaticina algo que possa existir entre ser mulher ou menina. Se nada houver (pensará seu amado na arquibancada), bastará ser muita sopa para pouca colher. Talvez um pouco mais de asfalto, um tanto mais de luzes de neon, quiçá uma ladeira de Olinda a subir.

Nos instrumentos que vertem sobre os excrementos que cada dia nos dá, existe um vórtice que vaticina a felicidade de um domingo à tarde, como a vida fosse brinquedo de contratempo que ainda temos de ver vazar. Nas velas que correm a brisa do mar, a cor que cora o rosto da primeira amada a ver as mãos do amado tocar seus mamilos róseos e incautos, abertos ao primeiro gozo que surge e urge.

Na noite dominical poucos conseguem sobreviver ao manto branco de vestir logo mais. Mas o que fazer se é só no silêncio da noite que se consegue sobreviver a essa mentira apocalíptica que se é viver? Quisera a poesia surgisse com os primeiros raios de sol, mas como soltar as emoções se nem as micções diárias se fizeram provar? O frigir dos ovos do Sol são a escuridão que ilumina a poesia e a solidão.

sexta-feira, 28 de julho de 2023

Fora da Caixa (no Music Amazon Prime)

 


Sem eixo, como um seixo no rio que corre entre dois leitos, o homem rompe o hímen com sua língua que vocifera à vida que ainda existe algo riste que resiste à febre e a cistite. Na noite que brinca de frio e fobia, a fálica orgia solitária se desdobra nas dobras que dobram qualquer esquina como fosse esta a sua derradeira sina. Diante de si, uma vagina, uma próxima angina, uma inebriante mulher, ou apenas Gina. Na cama que se desforra para ir à forra do tempo que se entristeceu, há um limite entre o limítrofe que anda no fio da navalha entre a sanidade e idade imprópria à memória desmemoriada e lacrada para novos amores. Odores perfumam a performance que à nuance do tempo transbordam o tempo que ainda falta se viver. Tudo como uma janela fechada, a ver...

Na insípida perfídia que perfaz cada caminhada de cão sem ninhada, um ninho de pássaro sem ovos a criar passa despercebido a cada olhar. No lugar, um ar rarefeito, feito paixão não correspondida, se interpõe às mesas que trocam brindes e brincadeiras de tocar. Nelas, as mãos se embaraçam de dedos, desvelos, vestes invadidas, toques promíscuos e malversações. No lugar não há lugar para o bem e o mal. Há bons e maus a trocarem sevícias, carícias, lascivas promessas imersas em trocares de olhar. Ao longe, decerto, existirá um pedaço de mar, uma onda a areia a tragar, uma boca a língua a untar. E todos estarão, uníssonos, a gritarem que a vida só vale se for para se a amar. Nalgum lugar possivelmente um ser ausente saberá onde, perdido, ainda chegará...

quarta-feira, 26 de julho de 2023

Ao rediscover do Gil


 

Amadeu, de quem o amor a Deus esqueceu, vai entre as vielas a violar nos ouvidos o som de violão que dedilha numa trilha qualquer que o morro dá. Assimétrico na métrica que a linha utópica e reta dá para não cair, cambaleia e volta, volteia e se enlameia a cada queda. Mas, logo lá em cima, ensimesmado, chegará na birosca do Zé, o português que, com o lápis ágil, marcava duas cervejas para cada pedida com direito também a uma pinga.

Amadeu, a quem a vida nunca se ateu, cantarola um samba desconexo onde o versículo acalanta a falta de verso. E segue tomate e mamão. Sobremaneira, da maneira que um bebê sem dentes suga a mamadeira, olha para o céu de bruços, no chão. Se levanta, lava-se na poça que sobra na pocilga de um barraco em obras, e transpõe a pequena ponte que se equilibra sobre um riacho que corre coberto de lixo, lombrigas e dejetos em amplexos.

Amadeu, senhor que sabe onde ficam a felicidade e a dor, diz a si mesmo, a esmo, que é melhor estar vivo já morto do que morrer e deixar de viver. “E o amigo que nem sequer quer mais estar junto contigo? É amigo mesmo ou só mais um buraco de umbigo?” Cheio de dúvidas, endividado no morro quase todo, vai pé pra frente depois de meio pé para trás a ver que a lua se escondeu numa nuvem para dormir depois da Terra ter que girar.

Mas Amadeu é isso: um homem a mais. Um derradeiro ser disforme, desses que vira estatística em cada informe de tevê. Que é apenas um número a mais, sequer um úmero a segurar braço qualquer. Falta-lhe um abraço, um maço de cigarros, um amasso na mesa de bar. É somente quem mente a si para crer que vale a pena viver. Amanhã, decerto, terá uma ressaca que nem a maior das ondas do mar traz. Mas, sabe, valeu poder sonhar.

Amadeu, ser andarilho à espera que um trem o atropele, mesmo sabendo que no morro não há trilhos, chega enfim ao fim de sua trilha. Mexe nos bolsos vazios na busca da chave que tranca a porta sem tranca e lembra que é só empurrar a madeira para ver se no seu interior ainda há alguma anca. Deitada na cama, Esmeraldina à luz da lua se descortina no zinco rompido do teto, tem as tetas expostas como postas a se comer. Por fim, vem o fim.

sábado, 22 de julho de 2023

Desterro

 Por Ronaldo Faria


O homem começa a piscar de um olho só. Mas, para onde foi o outro, sorrateiro na noite? Talvez esteja desterrado e enterrado num soneto qualquer. Senão, quem sabe, ainda brincará de moleque solitário e quaternário nos tempos dos anos 60/70 que ninguém hoje sabe sequer se existiram. Talvez na coberta de tacos, esquálido ser a se esconder, pequeno ser, possa sobreviver. Senão, a insana futurologia que de nada possa valer. Anos de crença, saudades, luta, amores, pudores, arroubos desses que faz a gente digitar (datilografar no meu mundo) errado e acertar. Daí eu penso como seriam Vinícius, Drummond e Bandeira se pudessem reescrever in loco suas alegorias mil. Maiores do que aquilo são? Certamente não. Impossível crer que Fernando Pessoa, por exemplo, tenha um heterônimo igual, tão substrato de algo ser hoje em mim pouco poético e desigual. Mas, daqui, na sandice que existe e some no momento certo (há momento lúcido a esperar?), fica apenas a pena enlouquecida e vendida ao sabor da poesia, da rima, da sangria que ainda existe no pouco de vida que exangue em sina. 

(A ouvir Dominguinhos Iluminado)

quinta-feira, 20 de julho de 2023

Com Fé na Festa do Gil a rolar

Por Ronaldo Faria

 O som rola enrolado na voz do cantor e se arrasta num arrasta-pé que viaja na noite fria e famélica de emoções que brotam no coração que espera o São João. Quando virá? De fato chegará? Quem sou eu para prever?

 


O homem quase garoto, garoto ainda menino, infante e libertino, olha sua amada a rodopiar na fogueira, livre e tardia, com os seios a balançarem na roupa de chita e colorida feito o pássaro que passeia no céu e proseia com a solidão para ela acabar.

Depois a vê dançar num terreiro largado em Pernambuco como fosse um capuco daqueles que a criança carrega no carro de boi de madeira que se esgueira na terra carcomida da seca. E vai a rumar sem prumo àquilo que o futuro nem sabe se um dia existirá.

Agora, como uma rês que se afugenta naquilo que nem ela sabe para onde irá, longe de seu rebanho, o homem, hominídeo há milhares de anos, está desamparado, esquartejado, vivo apenas por memórias insanas e bêbadas, coisas desconjuradas em si.

E o frio? Ele apraz? Se desfaz? Viaja como andorinha em busca do novo ninho, com uma cadela a vociferar? Quem poderá responder? O rio defronte da fazenda matou o avô que tirava bicho de pé do neto sob a luz do lampião que tem cheiro de querosene e canção.

Agora eu vejo o pequeno poço que sobrevivia à seca e trazia no lombo de um jumento a água para o mínimo da casa fazer. Vejo ainda o mandacaru que nunca deixou de brotar e sinto o cheiro que invade os poucos neurônios que teimam em ficar e se interligar.

Ouço também o enxame de abelhas africanas a passar milímetros acima da morte certa. Um zumbir ou zunir em suas asas negras e rápidas. Ávido de algo ser, o menino nunca esquecerá essa cena obscena e cenográfica, nunca captada em lentes ou mesmo sofreguidão.

Sinto o cheiro de farinha na casa onde um tacho quente a faz virar comida e percorro trilhas de cruzes de anjinhos nunca nascidos. Tudo como a descoberta incerta de brincadeiras de alguém que acredita ser um defunto de férias pronto para somente descansar enfim.

Na dança que se encanta na noite sem lua, o aluar de uma saudade que nunca findará. E o pasto esquecido no quarto do milho colhido e seco. A certeza incerta de uma marcha que vai de um lugar a outro qualquer sem nem saber se existirá quando a lucidez voltar.

Hoje, agora, sem aforismo e festa, apenas a incerta certeza de que o que se foi nunca voltará. Sem odores e visões. Tudo apenas como quânticas alucinações em insana lucidez. Com certeza de que uma vela acesa na capela conseguirá em si virar algo que valha lembrar.

terça-feira, 18 de julho de 2023

Sertão em flor junina

 Por Ronaldo Faria


A noite no sertão nordestino traz rimas e lástimas, criaturas mansas ou não, feridas calcinadas e perfídias tresloucadas, todas prontas para uma camisa de força, dessas que forçam a saudade a fugir do peito e ultimar a distância entre a seca e as ondas que beijam a areia do mar. Certamente haverá um altar em algum lugar. E se não houver, a ferida existirá.

Perto, a mulher abre os braços em abraços frígidos e frágeis. Certamente já sabe que o homem, perdido em si mesmo, ensimesmado, se perde entre trilhas e pés trilhados por um andar que nunca sequer sabia que em algum lugar chegaria. Noutro canto, um vaqueiro vigia sua vaquejada, arfada de tanto caminhar rumo à morte que nem sabe que logo chegará.

Embriagado e largado o homem se bole para não dormir na mesa, cheia de garrafas e copos, restos de amores nunca vindos, advindos daquilo que o poeta acha que seja verdade. Mas esta haverá? O que existirá de fato no fátuo resto de infaustos que chega entre cheiros e esgueiro? Saber-se-á que o toque denota outro tocar? Quem, em sã consciência, concederá ao amor a fogueira que arderá para sempre numa metáfora que só a própria pena incendiará?

(Ainda a ouvir São João Carioca)

sexta-feira, 14 de julho de 2023

Santo Antônio

 Por Ronaldo Faria


A fagulha se espalha no céu e emparelha com as estrelas perdidas e ardidas feito xote ou baião. E haja xaxado. No terreiro, casais se acasalam antes de acasalar corpos e desejos. Há ensejos, decerto. Mas antes que o deserto da solidão de faça final há a faca do amor, letal, a dor despudorada e desprovida de uma canção qualquer, insana unção que junta zabumba e triângulo, sanfona e cantoria.

A árvore de gravetos, antes viva, agora carvão torrando no fogo, desarvora a desandar em pares emparelhados que logo serão um só, unidos entre beijos e ensejos, trejeitos inúmeros entre corpos e úmeros colados e deitados, num sobe e desce indecente para crentes que não sabem o que é viver. Na noite fria, frígidas mulheres pedem a Santo Antônio o amor que nunca chegará nem aqui ou acolá.

A festa que incesta e se presta ao único calor que vem de corpos e copos de quentão, mistura homens e mulheres num desvirginar de clarividências e cadências, todas harmônicas com as notas que enchem ouvidos e elimina pruridos que ainda possam existir. No frigir da quase madrugada, uma mandrágora floresce entre pântanos e enche ânforas que irão derramar suor e acalantos calados no futuro chegar.

A rebolar, a morena faz do gingado o afago desnecessário. O frio, senhor de tudo, une e junta, unta, casais que se aconchegam a fugir dos tremores que invadem corações e cópulas tardias, vazias, prontas para se achar. Loucas para achegar, chegar, chorar juntas, uníssonas, sobremaneira fatais. Assim, quiçá bisonhas, aninharão sonhos e corações. Do altar, Santo Antônio pede o fim de tantas orações vãs.

quarta-feira, 12 de julho de 2023

Seu Lua, Luiz Gonzaga

Por Ronaldo Faria

O bom da vida às vezes é sequer relembrar seja o que for que tiver de lembrar.

 No rádio de galena à base de gerador a gasolina, onde o som saía sei lá em que rotação, à luz de um lampião de querosene que cheira inesquecível, a saudade de uma infância que hoje até parece nunca ter existido. Do brincar com um carro de boi em que os sabugos de milho compunham as parelhas de oito. E como era bom buscar na casa do milho, depois de debulhar, aqueles que eram quase vermelhos, “bois” pintados. Como era felicidade ter oito, cada um com seu nome, a correr nas trilhas feitas por pisadas na terra calcinada e sem nada dar. Depois, um caminhão de madeira puxado com corda e embalar pão a correr pela imensidão. Senão, o odor inebriante da bosta de gado, das queimadas para fazer a vida rebrotar, do fogão de lenha a crepitar. Os banhos de cuia, as cuias para o banho que foi aquecido nas chamas de vida morta, a rede onde o corpo descobria que dormir sem pesadelo até que é bom (e como é), O amanhecer do gado que pasta sem mundo, do galo cantando, do despertar entre um gosto de achocolatado e leite de peito da vaca que nunca mais vi. Talvez, até, do carro de boi de verdade com seu chiado a transpor as estradas cravadas pelo suor de sertanejos que marcaram e demarcaram um universo paralelo, que até hoje faz lembrar e chorar, coisa atávica e cravada numa eternidade que não há. Como alguém nascido nos Anos 50 e meio preso na temática da alma do brasileiro que se perdeu sabe-se além em que momento. Sem lamento, me resta apenas rever algo que poucos viveram ou viverão (cada um com seu cada qual). Ou um lugar sem luz elétrica, sem água corrente, sem “internet”, sem celular ou algo mais pode ser lugar? Creiam e acreditem, do que existe hoje era bem melhor...

 No bailar do mundo, faça-se apenas uma imortal vaquejada.

segunda-feira, 10 de julho de 2023

Já que é junho, que venha Fulô de Mandacaru

Por Ronaldo Faria

 


A quebra da taça de vinho mal usada (culpa de um DVD) em pleno junho de festa nordestina e sertaneja é mau agouro ou a bênção de que algo novo vai chegar? 

Na madrugada tragada de faíscas e ciscas de fuligem que permeiam beijos e lábios sedentos o casal roda em volta da fogueira revoltada por ter sido morta para virar carvão, para ela com certeza em vão. Mas, creiam, os amantes nem sequer ligam e bebericam línguas e rodopios, pé de lá e de cá, sorvem de si mesmos o líquido que precisam para a vida. No vai e volta que revolta o forró para quem não conhece a prece de quem sabe tracejar suas pernas e bofes.

No meio do dia que a noite faz escurecer para saber que pode clarear, o homem olha ao longe a amada que ainda não é ou nunca foi. E se esbanja de desejos e falta de amor, fornica em pensamento com a menor formiga que corre desesperada para o formigueiro e vê, ao longe, o sertão calcinado e queimado como fosse certeza a finita prece de ser feliz na mansidão. Lá longe da colina o vaqueiro busca o gado perdido do patrão que vocifera na sua escuridão.

Mas na cidade que se ilumina de lampiões de querosene há o cheiro de festa, zabumba, sanfona e triângulo. Tem o limite entre a crença e a certeza, entrementes, quem sabe, da própria vida. Meio perto e saber-se-á na trilha, bêbados se juntam numa mandrágora em que o fim é irreal. Mas ficarão sons, zumbidos, cheiros e tons urdidos, ardidos, coisa que crava no coração e caminhadas em perfídias tresloucadas e ensandecidas no candeeiro sem luz.

Por fim, se algum fim existe entre o começo e o derrear, ficam o som do carro de boi, o aboiar do vaqueiro, o acordeom a tocar defronte o casario, o tomar de banho em cuia, a areia branca do rio que morre e mata a cada estação, a sensação de paz, encontro e solidão que permeia até hoje. Senão, existirá a chama que se inflama em quadros que percorrerem neurônios e insônias, como um junho de notícias infames e felizes de forrozar em algum efêmero lugar.

sábado, 8 de julho de 2023

Celso Fonsequeando 3

 Por Ronaldo Faria

 


Como será o amanhã? Que ressacas serão? Terão nome de mulheres, paixões, emoções, dores de cabeça ou apenas desaparecerão? Comerão um meia-lua no bar que não mais existe? Andarão em andrajos e pés trôpegos nos sonhos calcinados? Brincarão de dois num corpo só, solitário e em sofreguidão? Saberão ou saber-se-ão? Sei lá...

Quem de fato, ser fátuo, saberá? Será como o sopro de um saxofone no meio de uma música do Chico? Ou apenas um verso requenguela, daqueles que cai da página pela janela? Como o jogador maior de futebol de mesa dedicado à iugoslava que no continente era alemã? Na verdade, essa vida é só mera esfera de sequer poder brincar?

Por que vivemos numa vivenda esférica de onde a água não cai se sequer sabemos quando cairemos quicando para um mundo melhor? A pedir logo à madrugada que se esfalfa para chegar fechamos um saco de lixo reciclável para sermos um ser a mais afável ao mundo que não depende daquilo que acreditamos sermos nós no logo após.

 

Na foz da poesia, a azia se faz profana, ainda mais para quem nem vesícula tem mais... Obrigado Celso Fonseca por ser eterno e terno professor.

quinta-feira, 6 de julho de 2023

Celso Fonsequeando 2

Por Ronaldo Faria


Quem faz bem a quem? Estará tal ser aqui ou no além?

O homem, na aquiescência que o abstrato no substrato de nós dá, caminha nas areias de Ipanema como se fosse na eternidade um simples fonema. Algo que brinca de tracejar pra lá e pra cá aquilo que não sabe denotar de par. Já andou por sobre trilhos de trem, escapou de pivetes, correu ladeira abaixo de um ladrão do Méier, vagou embriagado onde o diabo jogou o pão que amassou, se escondeu em colcha de retalhos para crer que não seria estraçalhado. Foi, fortuito, fugitivo, famélico de querer. Quem sabe, quilombola de um quilombo perdido nas perfídias de história qualquer, encontrou, por fim, sua derradeira mulher. E deitou quieto, aquietou num lugar apócrifo e, creiam, sequer vomitou. Foi apenas ele, enlouquecido e aquecido de goles ou roupas do Vietnã. Foi viajar na Jamaica, baseou seu universo num pedaço de papel o seu véu e se esvaneceu de porvir seu por vir numa data inusitada da menor fé.

O homem, menino na verdade de quem quiser crer, até acreditou pudesse domar os ventos, a foz do rio, falar com Deus. Mas qual, era apenas ínfimo ser, sem palco, orquestra e vocal. No desterro do fugaz enterro frugal, a fragilidade que sequer a maldade sabe desenhar ou desdenhar. Afinal, qual será o lugar final e fetal? À espera da próxima música, a versejar, o aprendiz a sonhar descobre que nem o mais pobre dos mortais se enternece da noite clarear.

Celso Fonsequeando

 Por Ronaldo Faria

 


Venham sombras da noite e os açoites que nos percorrem em pesadelos sem zelos num tentar dormir em paz. Cheguem, porém, na aquiescência da vida, generosos e zelosos. Deixem-nos, ao menos, memorizar em mármore de carrara a fugaz fervura de algo ser. Afinal, quantos anos, dias ou minutos mais? De quanto tempo a eternidade se perfaz?

No canto do bar que se derrama na esquina onde qualquer quina serve de anteparo para um bêbado trôpego poder viver, o pranto não tem lugar. Talvez saudades travestidas de mulheres vestidas de lingerie e toques de almíscar a esvoaçar nas nuvens que esperam gotas de chuva chegar para parirem seu viver.

-- Tocar violão de ser bão. Tentei aprender para viver o mundo de uma morena clássica. Não consegui. Hoje resta babar por quem sabe fazê-lo...

Na imensidão que um quadrado dá, sob a luz de milhares de pontos de uma tela esteta, o pseudo poeta vai a vomitar saudades, calamidades e chamados vãos, em vão. Quem sabe um dia uma nova anestesia não permita tudo esquecer, reencontrar o rabinho peludo a balançar, saber que nada mesmo há de saber.

-- Cantar, como é bom cantar. Desopila o fígado, tira as rugas do rosto, oxigena a frágil mente, deixa a gente a crer que vale a pena ser.

Na ilusão premente que cada um mente pra si, os dormentes de um trem que nunca chegará na falta de casais a chorarem o despedir, na loucura daquele que busca o vagão de onde chegará seu repente, quiçá réquiem e refém. E assim, assintomático, em sofisma, vamos a ouvir quem nos diz que ela é carioca...

terça-feira, 4 de julho de 2023

Paulo Freire e São Gonçalo

 Por Ronaldo Faria

 


Com a lua cheia no céu, seara qualquer, num canto recôndito São Gonçalo faz abençoar o violeiro que dedilha sua música e seu cantar. Num lugar onde o lagar e só o largar da pinga goela a dentro, adentro a vida como fosse fermento a ver o bolo sovar. Como fosse um ébrio que se desgarra da reta e cai, soberbo, num meio fio que apenas frio tem. Tênue, o homem busca o hímen notívago que não existe e persiste solitário riste e firme. Como um marujo perdido no derradeiro cais do porto. Talvez um atávico ser que tenta apenas, a duras penas, sobreviver com altivez. Senão, um inócuo binóculo que apenas enxerga entre lentes, vidros e frigidez.

Mas a lua cheia que se esgueira no céu escuro se faz calada, sob uma árvore caiada e quase caída, de branco, sombreia a luz que o luar irreal derrama na terra onde brota o impassível amor. Em flor, as plantas transplantadas em fulgor se espalham no chão que espelha o rosto da moça mais fagueira que a figueira centenária viu. Como um socó que dorme e ressona na copa esverdeada, o sonhador olha para o céu e vê pequenos pontos de luz, clarões esparsos e dispersos como disparos de um bacamarte qualquer. Não muito ao longe, o rosto avistado da mulher. Lívida, quieta, faz-se presta ao violeiro que anuncia o amor altaneiro, primaz e primeiro.

Contudo, creiam, a lua de São Gonçalo haverá de reaver a fé na infinda e benfazeja crença do novo alvorecer. Quem sabe não existirá um louco a gritar nalgum lugar feito profeta de um esteta a voar e revoar seus incertos incestos entre a poesia e o jogral que desvanecem na voz do imberbe que crê no mero flerte. Na praça onde o coreto deixa a banda tocar, um bêbado lança seu olhar além-mar, mesmo que as ondas batam somente milhões de pés após. E pensa o escrevinhador: “caberá apostrofe só para rimar?” No dedilhar da viola, formosa moda se faz em corda. E lá onde o mundo se acaba a festa e se refastela de crenças, descrenças, inhambu chitão e xororó.

sábado, 1 de julho de 2023

Nordestino Jovino Santos Neto

Por Ronaldo Faria

Ah, meu Nordeste... por quê estás tão longe milimetricamente se existe em mim na carne que ainda bate simultaneamente? Onde estão teus cheiros, esmeros, fontes de água límpida e risos destravados de dor, como imagina o filho desterrado de cá?

 


Embriagado de desejar ser e estar, a vagar, Juvêncio corre entre árvores mortas, capim seco, cabeças de gado já descarnadas por carcarás, pequenas covas que guardam corpos de gente que nem vingou. Seu cavalo percorre picadas, foge de espinhos que sangram o mais forte dos vaqueiros, vira sem eira e nem beira à vontade das mãos que o chicoteia. Para ambos, uma estrada à vista, onde a vista anseia caminhos nunca trotados, tratos nunca criados, vontades nunca feitas. Em cenas refeitas e desfeitas, a fresta de uma porta esconde a mulher posta em trejeitos nus e beijos perdidos e urdidos, ardidos, feito a ferida que vislumbra, translúcida, a certeza de nunca sarar.

Mas Juvêncio não para. Segue em frente sempre, fronte molhada de suor e rasgada de rugas profundas que lhe correm a face. Sabe que em algum momento, nem que seja em lamento, seu destino chegará. “Ave Maria de lá”. No alpendre da fazenda deixada para trás, o pai dorme na rede dependurada de acordo com o lastro de sol. No poço logo perto, de água salobra e quente, os animais matam a sua sede de querer na Terra ainda ficar. O vento traz uma brisa tênue e fugaz. Em algum lugar deve haver o nunca mais. Resta somente saber se será aqui e agora ou para depois de algo que se esvai. Na crina molhada do cavalo descem gotas que abrandam a chegança mansa.

Feito ser imperfeito, Juvêncio trilha um universo onde há de tudo, menos verso. Talvez sílabas soltas, rotas, feito louças que se quebram em translúcidos cacos que cortam o quase anoitecer. O sol lhe queima os olhos, a poeira traz uma névoa dispersa que parece ter pressa de dispersar. Seu cavalo, único amigo de agora, corre enlouquecido nas derradeiras forças que restam. Mais um pouco, cairá decerto. Feito decreto divino de algum feitor, roubará os últimos minutos, nas notas de uma canção dedilhada em anginas mortais, desfará as certezas que nem o maior ébrio do lugar poderia crer. Cansado, depauperado, Juvêncio para seu animal e, descrente, nada mais anseia.

Lembra o passado, sua filha a buscar os raios da manhã, num olhar distante de quem sabe a morte infame e sórdida logo chegará. Seu mundo desgarrado, destratado e desamparado, partido entre meios, entremeio atado, parece um poema que nem em prece perceberá ser sagrado. Untado de pó marrom e segregado, Juvêncio já não cavalga. Apenas senta, encarquilhado, e vê as primeiras estelas chegarem. Achega-se a si mesmo e, a esmo, dilacera o que, além da serra, pode se ser vida ou vastidão. E apenas fecha os olhos, chora seu mundo final e descobre, afinal, que tanto trilhar termina sempre, invariavelmente, num escuro, infértil, inexistente e inócuo lugar.

Zé Geraldo

 Por Ronaldo Faria A viola viola o sonho do sonhador como se fosse certo invadir os dias da dádiva que devia alegria para a orgia primeira...