segunda-feira, 9 de outubro de 2023

Viola e insônia crua e encruada

Por Ronaldo Faria


Na viola do violeiro, o esgueiro de um som que foge entre os ouvidos e olvida ser maior do que é. Na insônia crua e encruada na madrugada que é tragada pelas horas, a histriônica história inglória de Jesus Aldo, filho de Maria e José. Ou terá sido de José e Maria? Saber-se-á...

Carregador num mercado de secos e molhados, vive molhado de suor do seu ir e voltar com quilos de sebos e restos fervidos. E segue em passos pequenos e cansados à espera do relógio de ponto bater no ponto em que possa ainda, nessa sina, mesmo quase morto, viver.

Aldo, aldeão da sua aldeia inexistente, vive como um ser premente, desses que espera tanto que o tempo não deixa sequer sobreviver. Logo joga em cova rasa, tão rasa que nem os pés cabem pra dentro e se largam feito erva daninha a brotar em qualquer lugar e se largar.

Mas nos dedos do violeiro, primeiro ser a dedilhar o som do silêncio sepulcral, Jesus Aldo se prende à sua cruz. Ao invés de pregos, pregoa aos ventos sua solidão inclemente. E mente a si mesmo de que seguir levará a algum lugar. No ar, fuligem de mata nova se põe a chegar.

Jesus, amado mestre, que sobrevive a toda a peste, cuide de Aldo, no seu descalabro. Deixe que ele, assoberbado, presenteie sua vida com a mesma chama que vem do candelabro. Num canto de sala, na insólita glória, certamente alguém cantará um perdido tema de amor.

Mas, na viola de um violeiro, o centeio da semente que se espraia no chão seco e carcomido de quem sabe que, em outra era, será como serpente a correr o trilho de terra onde o pó passeia a presentear quem, como Aldo, almeja ser apenas um Judas a moedas contar.

sábado, 7 de outubro de 2023

Extraído da foto em som e fotograma

Por Ronaldo Faria


A tez da mulher parecia ter saído uma orgia, dessas que a gente nunca mais esquece e o corpo padece de se recuperar. Seu olhar, na sombra da tarde que entardece e enternece quem de longe olha só por olhar, vê a foto que o som extraído de um fotograma perdido e urdido no passado que o naufrágio da paixão deixou afundar no mar mais morto que o próprio Mar Morto não sabe denotar.

A face da mulher, sem a flacidez que logo lhe chegará, é como a faceta que existe entre o amor e o marujo que se perdeu no mar do amar. Suas mãos buscam os lábios do amado como fossem beatas na beira de um altar. Mas não há onde tocar. Sôfregas, como samaritanas de uma procissão, seguem a desdenhar o desejo. Na insólita chegada do insólito anoitecer, um cão uiva sua solidão ao luar.

Os braços da mulher, à espera de um abraço avassalador, desses que curam e cicatrizam qualquer dor, cansaram de se estender. Na verdade, não há muito que entender. Na ilusão da frágil imensidão que existe entre ser e querer, o coração bate em retidão na espera de um dia parar. No frigir de ovos que a panela ou a procela dão, só a cadela já morta descansa quieta naquilo que a eternidade dá.

Na boca da mulher, o desejo e o ensejo de que um dia o universo há de se descortinar como um palco sem cortina final, onde o público aplauda a mais ridícula sanha que nem uma edícula deixaria morar. Nos tragos que se fazem farrapos e num escrevinhar tresloucado, o homem que o hímen dela não vê, traça versos e versículos e apenas repete, em verve, a primeira canção solar que surge ao amanhecer.

quinta-feira, 5 de outubro de 2023

Ao som múltiplo da múltipla multiplicidade que vem com a idade

Por Ronaldo Faria


Vendetas de amor, blasfêmias de dor, canções consternadas e adernadas entre copos de vinho e olhares vagos, entrecortados na noite que permeia os afagos e tragos. Pares trocam pernas e pés pisados no salão. Entre tantos, está Romão. Homem de idade longeva, dessas que já não conta aniversário e vira anedotário, está sentado, solitário, na mesa que se esconde numa canto sem luz. A cena em si sem traduz. Não passa garçom, não chega um chamego, ninguém olha nem de viés. O revés é total. O Romão é somente mais um animal. Houvesse licença de caça, sequer alguém ousaria encher com ele um embornal, gastar um pavio de pólvora, buscar a trilha em que ele se embrenhou. Na verdade, sequer qualquer fêmea emprenharia no local. Ele era um apêndice, desses que não cabe em dicionário e nem obituário. Que não se extrai do corpo e deixa a vítima morrer. No seu além, dos anjos nem um desdém. Talvez, quem saberá, um universo sem verso e a nobreza que há muito está na mágica do aquém.

Mas Romão estava lá, a cantar larari ou larará. Cantava só, num assombroso silêncio que nem a madrugada mais calada poderia ouvir. Na parcimônia cômica, a antagônica agonia que frigia como ovos de uma galinha que punha nova vida sem sequer cacarejar. Um sanfoneiro toca brejeiro para um casal dançar. Nos ouvidos que olvidam o mundo encontrar, uma nota ou outra denota que mais um dia irá acabar. Logo, outro surgirá e urgirá as verdades que Romão não quer escutar. Pegar um novo ônibus, subir e descer atônito como fosse um ator cômico. Tentar desvendar, em tantos tentáculos que tentam pegá-lo para no breu jogá-lo, de quais fugir no urgir de um tempo que sua úlcera não deixará viver. Mas, para ele, tanto faz. Chama o garçom que, por fim, decide vê-lo chinfrim e pede a conta. Sai trôpego e sôfrego. Logo ali, na distância sem equidistância, cairá para nunca mais ser, ver ou respirar. Em volta, o lugar testemunha o vendedor que prega que a pupunha é o melhor a se comprar.

terça-feira, 3 de outubro de 2023

A Nicolas Krassik

Por Ronaldo Faria


Eles dançavam na beira do mar. No ar, o som do forró girava corpos em sinfonia madrigal. Ele e ela, os dois, brindavam às ondas com pés molhados num sol que vem adormecer a criação da tarde. Na cor do Nordeste, um vento leste voa reluzente na areia que espuma com a água que vira de ponta nas duas cabeças. Na sandice cênica, um candeeiro logo surgirá da efêmera nuvem negra que sairá do cheiro de frescor noturno, desses de amor quase soturno que se esconde dos olhos dos outros para outrora germinar.

Na casa que mil paus pôs a pique para nascer, o brilho tragicômico e harmônico da rabeca se junta ao violino. E das cordas acorda o imaginário que surge sempre e urge para ficar, apesar de ir embora a cada florada fora de hora. No quintal, o mandacaru brota quase morto de sede. Mas revive nas sonatas que fogem pela janela entreaberta onde a festa faz-se numa cama forrada de linho branco. No fogão a madeira crepita a cantar a voz da natureza perplexa com tanto amar. Mas, na beira do mar, eles estão a dançar.

E, portanto, no tanto que pode existir e ter, o luar se embriaga de ser. Chama as nuvens para cobri-lo de textura e se atira entre uma e outra sombra que se faz no rio seco que a cheia esqueceu de beijar. Nas poças que sobram, bois e vacas soçobram como arquétipos de seres, ossadas que caminham devagar a esperar a morte chegar. Mas, longe, entre o limite do terreiro e a imensidão do mar, o casal esquece que há finitude ou latitude entre a crença e o coração. Aos dois resta, por fim, a imensa e real mansidão.

sábado, 30 de setembro de 2023

Em Dani Gurgel

 Por Ronaldo Faria


São Paulo escurece quieta. Como toda a cidade em festa, está prestes a estar presta no logo que será um amanhã. Agora já é noite. Ao fundo as luzes reluzem como fossem um brinde para a loucura soturna e noturna que se espraia entre algoritmos e ritmos mil. A cidade, sem idade, na mediunidade local, acorda e dorme em transe. Transita do Centro ao Jabaquara. Pernoita num Minhocão onde o chão empilha seres que não esperam algo além de adormecer, já que vida já não há para viver. Um cachimbo a mais, K9 quiçá, e vamos nos arrastar na bilheteria de um cinema sem fotogramas e que não há. Em coma, qualquer cama servirá.

São Paulo se empilha de luzes e louças a lavar. Pratos quebrados, partos interrompidos, cansativos metros corridos num metrô de série de tevê. Uma bebida a mais, sagaz, fatídica crença de nunca mais. Talvez um nóia a viajar seu mundo profundo no submundo que se traveste em traste de imundo para não irromper o feto que foi criado a gramas e maresias. As futuras crias. Na esquina de gente fina, a finitude germina. Quem sabe um gole a mais, uma golfada na primeira esquina, a quina que deixamos de bater na mesa do lugar. O joelho agradece e a sentença da primogênita enternece de perdão o último e profilático sermão.

São Paulo se dilacera como fera sem jaula. Quem dera pudesse derrear num parque em fé. Na ilusão que ainda resta, na equânime sintonia que existe entre a morte e a vida. Na transversal que decerto existirá na maior cidade deste país, uma ou outra saudade ainda se fará. O beijo que se largou em louvor, o olhar que transmutou servidão, a insana certeza de que nada chegará. No elevador que sobe e desce, se desfaz a cena que antes, talvez, pudesse antever o louvor. Na iniquidade do lumiar, o próximo dia que, sobremaneira, perpetuará a incerteza de num canto, escondido, o corpo atroz, enfim, adormecerá sob um poste que pisca sem saber.


quinta-feira, 28 de setembro de 2023

Júlia Vargas

 Por Ronaldo Faria


Passarinho, cadê as horas que passarão? De onde virá a passarinhada primeira do sol que brota saber-se-á de onde? Certamente do outro lado da Terra em que casais e tristes seres desvirginaram a existência mortal. No imaginário desvirginado do assombro tardio, o frio da madrugada tragada de goles e foles criará o fim da boemia. Mas será ela dela, sua ou minha?


terça-feira, 26 de setembro de 2023

À Júlia Vargas

 Por Ronaldo Faria


 

A técnica de algo gelado para soluço é a solução definitiva, ao menos para o poeta que subscreve a receita afeita ao que tiver de ser.

 Júlia Vargas na tela delineia a visão entre a sanidade e a realidade. Entre as duas antagônicas, fico com a insanidade. Esteja ela onde estiver.

No alpendre do passado, ensimesmado, o menino vê a primavera que ainda vai chegar. Abelha uma ou outra, africana, sobrevoa o lugar. Um mandacaru soçobra na terra seca e calcinada pelo sol inclemente. O carro de boi, que só existe na semente demente de todo o dia, faz um barulho quem nem o arrulho da pomba deixa esquecer. Uma arara sem coito sobrevoa o céu sem nuvem sequer. No quarto único da casa de pau a pique, o casal se acasala nos buracos que se abrem à nova vida que chegará logo nove meses depois. Será o décimo chegar. Não muito longe, naquilo que a vista cansada ainda vê, um touro cobre a vaca quieta sob os galhos secos da árvore que espera uma chuva para reviver. Será, se tudo certo der, a quarta cria do lugar.

A cerveja preta ilumina novos neurônios. Depois, o que restará? Uma vastidão sem sinônimos, antônimos ou seja lá o que isso repensar. Na antevisão que a parcimônia da loucura dá, as notas se sobressaem. No centro do presente, a ausente de pelos e latidos surdos e sórdidos gemidos. Ganidos nunca vistos, vistosas roupas que mostram os joelhos. Trejeitos e abraços, amassos esquecidos e gemidos roucos. Loucos? Acenda o próximo. Nele, talvez, virá a mansidão.

sexta-feira, 22 de setembro de 2023

Bicho de Sete Cabeças

 Por Ronaldo Faria


O multiforme som disforme esbanja seu mundo sem fim. Enfim, a sonoridade sem idade esbraveja nas notas apócrifas que a música dá. Talvez um pouco mais, ou outro menos que vem logo atrás. Quem sabe os subterfúgios que o cheiro da noite traz? Apraz, a raiz brota do chão seco, a esmo. 

quarta-feira, 20 de setembro de 2023

A dúvida, sob o som de Zé Ramalho na voz de Zeca Baleiro

Por Ronaldo Faria


-- Meu, achei que era pra mijar, mas de repente bateu um troção no meio. Surreal.

-- Ainda bem que a fila estava pequena. Também, às três da manhã só tem louco querendo mijar ou gente num bar.

-- Que os tempos se mantenham assim!

Os dois amigos tomavam a terceira saideira benzedeira dos tempos maus à sombra da árvore que não dá mais sombra.

O que assombra na madrugada é o silêncio ausente de vozes e trovas. Não há luz além de um ou outro carro notívago e vago. Não tem arco-íris. Sequer rima há. Aos que ainda bebem, um mundo à parte, o aparte entre a realidade e a fantasia. Aporte de nada. O porre que só no próximo amanhecer dará seu ar soberano. Aos que já dormem o sono dos injustos, nada a dizer. Talvez um nunca ver além das lentes sombrias dos óculos que há muito não veem ósculos entre um lábio e a vagina, no rumo da angina maior. Quem sabe a insanidade que faz esquecer do que é feita a emoção... No joelho, uma torção irrita o cagão.

-- Acho que está na hora pra casa rumar.

-- Bastião, traz a conta pro bar poder fechar!

-- Bastião, põe na mão do Tuco que o Tuco toca.

Ninguém sabe porque essa frase surgiu, mas ela veio de dentro do peito, como afeita fosse ao feito final. A conta veio. Soma de lá, diminui de cá, a festança dos números estava a se dar.

-- Trezentos e vinte e oito reais não está demais?

-- Tirando você ter vomitado no chão ao chegar, não...

-- Metade no débito!

-- A outra metade no crédito!

Ao fim, os dois se separam.

-- Meu Uber é Josivaldo.

-- O meu é Artur.

-- Nos vemos de novo na próxima semana?

-- Vamos ver... se vivos estivermos.

Em som de motor amiúde, os carros chegam. Cada um segue seu rumo. No prumo, o dono do bar cerra as portas, fecha o caixa e agradece pelos bêbados derradeiros entenderem de matemática como ele entende de the end, ou final. 

segunda-feira, 18 de setembro de 2023

No samba (e na Farofa Carioca)

Por Ronaldo Faria


Gostosa além da conta. Era essa a referência que qualquer home, lúcido ou chapado, tinha para Verônica. Mesmo que estivesse afônica, a tônica dos homens era igual: “Como ela não há. Temos que tirar o chapéu para a dupla que a fez!” E o Seu Amâncio e a Dona Zuleika nem eram tudo isso. Dois comuns, desses que a gente corre os olhos toda a vez que entramos num trem de subúrbio ou numa rua qualquer. Mas ela, com certeza, era a mulher. Seu corpo não tinha um centímetro ou polegada fora do lugar. A boca era doe outro mundo. Aliás, se um ET tivesse outra igual, que o planeta seja invadido nessa hora. Os olhos brilhavam fora das íris. Eram com vida própria, na forma mais exótica que há. Enfim, Verônica era uma escultura ambulante de semblante que nenhum artista conseguiria reproduzir. E ela sabia o quanto valia à mente tardia do macho que a desejava possuir. Subia o morro como se flutuasse além das nuvens. E não dava crédito qualquer a nenhum mero mortal. Seu portal era bem mais acima do que o final.

Mas ela era bem mais do que gostosa, apetitosa ou qualquer sinônimo que o gênero dê. Afinal, os tempos são outros. O discurso é outro. Verônica, musa delirante de delírios ofegantes, não se prendia em estereótipos, olhares óticos, versos utópicos. Era uma deusa inclemente, dessas que cortam as vísceras dos loucos e dos que vivem noutra dimensão, em diáspora absoluta e frágil. Era muito mais do que vasos e músculos, úteros e peitos. Era algo afeito ao sonhar que o defeito das mentes não chega ao coração. Para ela, não há oração, procrastinação. Verônica é muito mais, aliás. Seu rebolado, atolado de trejeitos e defeitos, é muito melhor do que um bailado de cisne qualquer. Seu pensar, falar, sonhar, até a caligrafia, são muito mais além do que possamos pensar. No salão o samba rola. No teto, rolinhas põem ovos em proporção. A ação está prestes a acabar. Verônica entra em casa. Maldito sejam os tijolos que a escondem. Que um lobo qualquer de história infantil os derrubem. Longe de tudo, o poeta poetiza a mulher maior.

sábado, 16 de setembro de 2023

As duas e a Farofa Carioca

Por Ronaldo Faria


 
Uma grita para a outra e ninguém, na rua, consegue entender bem o que diziam.
-- Você viu onde eu coloquei o Bombril?
-- Eu vi, o céu está mesmo com uma cor de anil!
-- Como assim? Eu falei do Bombril. E você viu o Gandulfo, o que ele fez com a mulher? Meteu três tiros nela. Ainda bem que só um acertou. Ela está na UTI, mas deve sair dessa.
-- Eu sei, ensaboa mesmo com vontade essa calçada suja. O patrão quer tudo nos trinques.
Na avenida, o homem ouve tudo sem entender nada. Com um suor de inverno no meio do inferno que é a subida, dá de súbito com um som de blues.
-- Agora só falta uma brisa de maconha...
Não dá uma rua transversa a mais e um carro solta o odor mágico que dirime toda a dor.
-- Agora sim, ao menos dá um link e um clique na conversa sem nexo.
Defronte à loja, as mulheres continuam com seu solilóquio inacreditável.
-- Acho que vou tirar férias e vou de ônibus ver minha mãe, na Paraíba.
-- Pasta de copaíba? Não existe. É chiste.
-- A Carminha disse que agora só falta vender o corpo pra pagar a comida das crianças!
-- É verdade: a pança dilatada faz mal adoidado. Manda ela fazer regime e parar de beber feito louca.
Cansado da subida, o homem para. Respira fundo, transcende o próprio submundo e olha para o alto. O céu limpo de julho judia da idade. A secura pede uma a mais.
-- A solução é travar numa mesa de bar...
Barulhenta, a avenida transcorre em carros, fumaças e gente na pista. Santa Edwiges que dê brilho à loucura em decúbito dorsal. Sentado na mesa de plástico, ele apenas olha a espuma que teima do copo descer.

quinta-feira, 14 de setembro de 2023

Parangolé com Lucy Alves

Por Ronaldo Faria


-- Eita, homi, que eu já tive bem melhor do que isso. Senão, igual tal e qual, arretada, com certeza. Mas foram noutros tempos. Eu era formoso de tudo, dentes todos na boca, capaz de virar a noite e a madrugada com um eclipse no meio. Tudo no fervo. E com umas garrafas vazias na mesa cheia de mil rodeios numa arena de quatro paredes com uma cama no meio.

-- É verdade, Marfino? Ocê tem a fama de prosear além da boca... Inventa umas invenções da sua cabeça e sabe-se lá o que vai dizer. Melhor do que aquela lá, duvido com dê, um ó e dó.

-- Sinfrônio, e tu já me viu mentindo e inventando de alguma coisa coisada ou espremida que saiu aqui de dentro? Pelo amor da minha égua Celebridade, é verdade! Das verdadeiras! Dessas que não tem rendeira que costure ou lavadeira que lave. Por isso que é ruim você não me acompanhar direto. Perde as coisas que só os meus olhos enxergam.

-- Sei não. Ocê delira demais. Depois de umas três ou quatro pingas dá de ver jabuti voando e cobra soltando maranhão. Vai ver essa galega não era isso tudo que teus olhos viram. No máximo, uma dessas comum que a gente cansa de esbarrar na feira de domingo.

-- Pois aí a égua caiu do galho. Ela era linda além da lindeza que Deus deu e fez. Pequenina, com as pernas lisas, uns peitos arretado de duro e olhos de um verde que nem o mar tem. O cabelo, esse então nem dá pra falar. Era um voar danado mesmo quando não tinha nem brisa no ar. E preto. Preto de um pretume que nem se a luz morresse de vez na Terra teria igual. E a boca: vermelha de sangue com uns dentes brancos de marfim dentro e uma língua que lambia até o sabor mais profundo da garganta.

-- Eita, mas aí já me deixou maluco. Uma dessas não é só pra ver. É pra agarrar e nunca mais deixar ir. E ocê deu de perder ela, Marfino? Isso é questão de prisão pro resto da vida no fundo do inferno mais quente e amofinado que exista!

-- Pois é. Concordo. Com corda e cerol pra cortar a emoção mais forte. É como pegar um carro dos bons e quebrar no poste. Mas não foi culpa minha não. Na verdade, tive que deixar ela ir.

-- Como assim?

-- Sabe, Sinfrônio, tem coisas que a vida manda e coisas que quem manda é o destino ou a dor sem fim. No meu caso, acho que foram as duas. Sabe quando a lua sombreia o pé de mandacaru e o reflexo, frouxo, não bate nem na pedra que o gado pisou? E não tem vagalume ou coruja que estejam por lá. Pois é. Tudo que era alumiado, desalumiou. O que era passo dado, o passo desandou. No lugar do sorriso amarelado, lágrima desaguou. E não tinha muito mesmo o que fazer. Tem coisa que é pra nós, mas tem coisas que é um tanto de nós que não dá pra desatar. No caso contado como causo, essa foi a certeza: faltou semente pra plantar e fazer a vida brotar.

-- É, que tristeza mais tristonha e medonha. Às vezes o melhor é não ver mesmo o que os olhos aprumam. Mas, liga não. O que a vida não dá liga não é pra dar solução...

Sinfrônio levanta a mão e chama o dono da birosca, Manoel Português do Beirão.

-- Seu Beirão, traz mais duas pingas e outro litrão. Hoje o Marfino resolveu se escangalhar. E nessas horas é que amigo do ombro grande tem que o ombro aumentar! Coloca querosene no gerador e põe na vitrola um forró da pega que o bicho vai pegar!

No horizonte logo ali defronte, sob a luz do lampião e a bênção do candeeiro, a morena rebola na trilha de pó a enlouquecer outro homem que espera a amada sem dó.

terça-feira, 12 de setembro de 2023

Ao Jorge Mautner

Por Ronaldo Faria


Imbróglio lógico, ideológico e analógico, sobrenatural e antropofágico, descartável nas milhões de postagens que nem precisam de selo. Agora a espera de dias pela carta sofrida ou ungida está descartada. Quem dera sê-lo num passado frágil e ágil, como um agiota dos anos. A beber a chuva e comer o raio de sol que volatiliza a cada rodar da Terra. Tomar dois cafés à espera da consulta do filho faz romper a madrugada e tragar e irromper sílabas e sortilégios. No alto da árvore a gralha gorjeia sem sequer saber o que é isso. E se o sono insone não vem, que possamos ouvir o violino e voz de Jorge Mautner. Em algum lugar a matilha invadirá a Ilha de Malta para comer chocolates escarlates que a larica sobremaneira dá. Senão, mais uma lata (não da lata) para recompor o pouco de água que o inverno pede para sugar. A conta perdida de idas à geladeira só determina que a mina das palavras não se extinguiu. É só garimpar a letra par ou ímpar. Ouvir a fálica falência da ciência e volatizar como fosse o vento véu da noiva largada ao altar. Se engasgar na rima, perde-se o rumo da trilha da poesia. No mar talvez ainda haja alguma enguia esguia a se esgueirar. Nos dentes que restam, a assinatura de um boliviano. Mas, a quantas andam o grilo? E o grelo? E a grelha? Corpo em colapso atávico, transmutemo-nos em velhas senhoras que mostram suas pelancas em Copacabana. Senão, porque não, viajemos a lua que desapareceu do alto para não ter que usar sapato de salto alto. Solilóquio de si consigo mesmo, a esmo, que sejamos esmeros e mesmices. Ou como diz o poeta Mautner, “como é bonita a bandeira brasileira”. Será? Tenho minhas dúvidas. Onde está o amor da frase? Positivismo é o famoso cu do anu! Saibamos ao menos ainda limpar o...

sexta-feira, 8 de setembro de 2023

Mundo Livre S/A

 Por Ronaldo Faria

 


Chapação! Chapa quente e frio com os pés no chão. Os paralelepípedos gelados são amargos para quem quer enlouquecer e viver a correr tresloucado feito viciado em frio do Sul. Abaixo, mas não muito mais abaixo, algo feito algoritmo traz mau agouro no que há de duradouro. E o ouro? Onde está o ouro? No canto, a voz inumana de um louro. A alforria espera somente a derradeira semente que transpassa veias do coração sangrar e não brotar. Na cama, um curso particular de anatomia e alforria.

-- Alfredo, cadê o aconchego? A pegação? Aquilo que foi plantado mão a mão?

Alfredo não responde. Há poucos minutos estava no bonde a bandear de um lugar para outro chegar. Não tinha tempo de saber o que era amar. Sequer de ver o mar. Mas havia prometido a si mesmo que um dia pegaria uma excursão para qualquer pé de areia, fosse essa capa de revista ou apêndice de prospecção de poluição. “Ainda vou ver esse tal de mar. E descobrir se ele é maior do que o poço que tem aqui defronte.”

Na fronte queimada pelo sol e poeira que emanam do céu e do chão, Alfredo caminha e se reescreve como Caminha na carta proscrita. “Daqui, nada se planta porque se sabe que nada dá”. A enxada, aposentada, virou pouso de pássaro que soube resistir ao frigir de ovos no ninho. As mãos, cheias de calos, carcomidas e sem ver comida, são apenas um par de feridas. Mal consegue acarinhar o rosto da mulher que sobrou no casebre de pau a pique. “Quando eu voltar à mingua, sem nada, ela ainda estará por lá?”

E assim, indo para onde ainda se vai e se esvai, Alfredo, ser que é o paradoxo de si mesmo, olha o olhar lancinante da coruja, esbugalhado no fátuo fardo, e continua encarquilhado. A casa de farinha, vazia, como que diz “tire a realidade daqui que eu quero passar com a minha dor”. O odor que sai do grande forno de ferro se espalha como palha queimada. Na curva que o vento faz, um vaqueiro tenta juntar a boiada que teima em se livrar da morte certa. Alfredo só pensa: “em Creta, com certeza, bosta de boi não há.”

quarta-feira, 6 de setembro de 2023

Vendaval e Tom Zé

Por Ronaldo Faria


O vento ventarola nas folhas verdes que sobreviveram ao inverno. Há, decerto, um credo que o mais incrédulo dos amantes sabe ser o decreto final. Fugaz, o vento entra entre as frestas da janela e volteia até chegar o corpo da amada que se despiu depois da fala definitiva: “Um beijo assim? Achei que ia me pegar na bunda. Vou tentar de novo”.

A brisa que corre entre esquinas lambuzadas de lânguidas línguas e goles de cerveja que vivem na madrugada a sua última sina são a crença de que ainda há muito a se viver. Os prédios, no prenúncio de que o trabalho existirá a longas trilhas, aos poucos se apagam. Irão trocar a luz de lâmpadas por cobertores e o negror que postes ainda dão.

Na solidão que só a imensidão do amor dá, soa um tanto de entretanto, talvez e quem saberá. Nenhuma ave tenta voar. Com o vento e o frio que brincam de lugar, todas se aquecem como dá. Os caules, mínimos e pelados, não há muito onde se esconder. No quarto, o homem sorri com o sorriso dela. “Deus, nos dentes há tanta procela!”

Na vitrola, Tom Zé diz que a ilha não tem fuzil. Tomara que amanhã o céu seja de anil. Se não for, digamos juntos: “O tempo merece ir para a puta que o pariu!” Fade-out: um carro freia na esquina. Por pouco não se torna estatística a mais. Ao colocar o agasalho o homem descobre que a estática não é invenção de Orfeu. Os pelos que o digam.

No colorido doído e doido que percorre veias e neurônios, vê-se brilho reluzente e pungente do lado de fora. Aforismo à parte, cada passo parece envolto em amores e amoras que descansam para brotar. Do cubículo da criação, o poeta perpetra o pródigo alvorecer. Amanhã chegará o que não sabemos nem ao menos crer ou ver renascer.

Cavaleiro solitário

 Por Ronaldo Faria O bar está fechado. Parece há tempo. Mas Hermínio não se dá por vencido. Enquanto houver uma sede por beber, beber-se-á. ...