quinta-feira, 15 de fevereiro de 2024

Pra Pedro parar por aí, mesmo sendo João

 Por Ronaldo Faria


“Mas, João Piedade, vai economizar logo na dentadura?”
A voz do protético entra por um ouvido, faz meia volta e volta e meia e sai pelo outro canal auditivo.
João, homem de poucos centavos, sertanejo acostumado a ver seu povo banguela, faz um sinal afirmativo. E sai a correr em suas saudades, dos tempos em que as abelhas africanas voavam sobre a sua cabeça. “Ainda bem que meu padrinho me avisou quando visse o enxame me jogar no chão e ficar quieto”. Não fizesse isso no passado sequer teria provido na mulher prenha um feto.
E proveu um bando de dez, oito vivos e dois mortos ainda antes de gente virar. “Sorte deles de não verem esse mundo girar”.
Em sua volta a feira fervilha. Moscas voam entre carnes dependuradas. No chão, cachorros esperam um sebo cair.
-- Vem minha gente, oxente que hoje é dia de economizar!
Para João Piedade, maldade só na cabeça dos outros. Outrora quis ser gente, dessas que consegue em verve ser Carnaval o ano inteiro. Virou quarta-feira de cinzas. Mas, tudo bem, sempre enganou o mundo naquilo que dizia ser.
-- Seu Clemêncio, põe duas doses de pinga aí. Uma pra mim, outra pro santo.
Na querência que a demência traz, tomou uma, duas, três, dez. Até o santo de coração seguiu cambaleante nas ruas estreitas da comunidade.
-- Obrigado Seu Clemêncio. Eu, embriagado, te proclamo aos céus!
Daí para a frente, nem o frontispício que mais se jogasse na arquitetura contemporânea iria saber ser. Na cama do hospital, na sorte de quem consegue sair da recepção antes de moer a vida e morrer, João Piedade, aquele que tinha tudo, menos maldade, dormiu o sono dos justos, na injustiça que a felicidade para poucos se dá.

terça-feira, 13 de fevereiro de 2024

Zeca e Bethânia

 Por Ronaldo Faria


Os dedos estalam no barulho de ossos que se despregam das mãos que a tudo escreve e descreve. Nas trevas que se escondem do passado, Santo Amaro e Xerém. Na ambiguidade da vida, nos olhos da mulher aflita, a fita que se desdobra infinita. Chega! – diz o homem mais uma vez. Naquilo que o passado passa em páginas repaginadas e sempre igual, a certeza de que vale mais o cifrão do que a emoção.
Onofre, coletor de restos da sociedade, lixeiro de profissão, ser vivente sem opção, sabe que nunca será o final feliz. Perto de se aposentar por não mais poder correr como antes, sabe que a sociedade logo esquecerá que a sua saciedade era apenas ser feliz. A grã-fina nunca será sua. Logo ele que sua para recolher os restos de camarões, vinhos importados, postas de salmão defumado. Quem mandou não estudar!
Mas Onofre, que os ditames do amor presumido diriam ser apenas um bofe, promete que irá continuar para um além-mar. Ao menos os dentes que faltam não precisará colocar. “Se não tenho a quem beijar, pra que o dinheiro mirrado gastar?” Na rua que o calor faz da clarividência algo claro que desnuda qualquer pretume, a vida se perpetua como a “puta”, nua, que ganha centavos em penduricalhos.
No subúrbio, desses que parece o inferno onde nem o Diabo aguentaria tanto calor, o trem transita entre a linha tênue da morte e da vida. Na batida do cartão, na subida do caminhão que fede de antemão, Onofre é rei e vassalo. Seu reino é um todo e nada. Na notívaga certeza de que a ilusão é mote que faz a rotina girar, no goró que agora faz agourar, vai ele a jogar no caminhão os sacos cheios de algo assim.
E assim, assassinado naquilo que acreditava ser felicidade, Onofre caminha no descaminho que o samba diz ser de amor e beija-flor. Mas ele resiste, riste, naquilo que se chama aos dias que ainda virão antes da eternidade. Na serenidade dos goles que entorna na imaginação, ele ao menos espera na milhar do gato um dia ganhar. “Quem sabe Maria daí não redescobre a paixão que um dia pensou poder me dar?”
Dentro do caminhão, o motorista perpétuo xinga Onofre que esqueceu uma caçamba esvaziar. “Puta que o pariu, quer nosso ganhão pão foder?” Ao derredor, a madrugada pede para viver... Em algum lugar a moça cheia de cifrões curte a sua dor.

sexta-feira, 9 de fevereiro de 2024

Com Fernanda Takai...

 Por Ronaldo Faria

 


Borbotões de senões entre as borboletas que se esgueiram nas flores que floreiam jardim qualquer. Nua, a mulher margeia a verdade que inexiste na vida. Já o homem transita entre o trânsito louco de memórias e histórias mil. No ninho improvisado no concreto, a andorinha voa e vai e vem num vaivém para alimentar a prole de bicos abertos e sons de piados e pios. No parafuso mental que uma paráfrase (seja lá o que isso for) faz, a ilusória memória de tempos no atrás do detrás. Na demência da ausência que se debate entre vozes esquecidas e vinho, o ventilador de teto tateia as lembranças para revolver o que não há como resolver. Talvez um revólver, um fósforo incandescente, um exército de idiotas a gritar o simplório volver. No som que sai dos alto-falantes, Fernanda Takai pede um dia ao menos na vida do amor perene. Como fosse a volta do passado feliz e amargurado, o texto testemunha que folhas amareladas esmaecem ao sol que propõe tudo brilhar. Tudo a relembrar um dia, talvez. Na tez que amanheceu em dor, um porto tão longínquo como o de Fez. Aos náufragos das tormentas da vida, na frígida bem-aventurança que a loucura dá, talvez um pedaço de ilusão, uma calmaria que muda rotas e réstias (quando as velas da felicidade se recolhem em solidão), rostos em ritos de restos, porque não...

quarta-feira, 7 de fevereiro de 2024

Primavera à vera e Cazuza

 Por Ronaldo Faria



A Primavera está à vera a ver o calor que vem do céu e brota do chão. E respira quase por aparelhos parelhos entre a sanidade e saudade que estariam guardadas em algum lugar. Ao som de Cazuza, na quase penumbra do anoitecer que se faz a tecer na imensidão, surge Doralinda a ser amada de amor e paz. No quadrilátero que o ventilador transpira vento e fé, o poeta passeia ente si e o mundo. No balcão da eternidade, a pedra que é apenas vidro e parecia turmalina. No futuro, o furo do cheiro que se mistura em mar e creolina. Na janela aberta não resta nem uma nesga de claridade finda...

segunda-feira, 5 de fevereiro de 2024

No passado passadio com Gil

Por Ronaldo Faria


Oitava lata nas oitivas da vida. Muito? Pouco? Que métrica dar-se-ia sobremaneira? Na insurgência dramatúrgica da falência da sobrevivência ainda prescrita, à proscrita saudação da mansidão desdita.
Mas o que é o passado? Um assado de churrasqueira que queima e faz o cheiro flutuar na beira da eira? Uma ínfima memória quando os quadros embriagados do pintor Fontanini já não têm dono vivo.
No insuficiente e demente se esgueirar às sombras que a luz de led dá, o passado se sobressai altaneiro e findo. Para ele só existirão imagens e vagens que ninguém, no menu da vida, quis provar e comer.
E se tivesse sido diferente? Quais referências teríamos? Não há o que pensar. Na incerteza do porvir, o por vir nada é. Transeuntes besuntados de algo talvez, sigamos a nossa estrada de ser alguém ou rês.
O poeta diz que o céu flutua. E nós, meros aprendizes, que vivemos sempre na lua? Como saberemos ter em vida a inócua imensidão? Na loucura existente desde a nascença, nos basta a frígida oração.
Daqui, na premente saudade da Bahia, à espera de comer um bacalhau com vinho guardado, vamos nos esgueirando a esmo sem solução. Que a pouca vida, ávida de qualquer coisa, seja ao menos de serventia. 

domingo, 4 de fevereiro de 2024

Na noite com Bochecha

 Por Ronaldo Faria


Na comunidade, a sagacidade que não brota da cidade faz Jonathan, DJ do pedaço, dar um beijo em Jennifer, a menina mais linda do lugar. Num largar de têmporas e tempos inauditos, o desatino de um amor que a vida diz que deve ser só love. Na longitude que existe entre o nascer e o morrer de uma existência única e prematura, dessas que se atura por ter que ser, os dois se jogavam na ternura que a imaginação dá amiúde. Entre um e outro encontrar de pélvis e vida, se largavam em largas histórias de um mundo diferente. Na efeméride que a eternidade não dá, o barulho que explode no ouvido e vira gemido logo depois é o palco sentido. No após do que tiver de ser, a imensidão que a sofreguidão permeia entre a calcinha no chão e a meia descalça na sina. Nalgum lugar, no todo que as cinzas futuras trarão, há a clarividência de quem sabe que o universo está disperso no segundo próximo. Do palco, o cantor diz que o duplo sentido mora na favela. Nos brincos que se lambe na chupada do ouvido, a verdade intrínseca e seca da vida.
Quem logo abaixo, no asfalto, visse os dois não saberia o que dizer ou falar. Afinal, o amor não tem fórmula ou forma precisas. É apenas um apêndice sem nexo ou lugar. De repente, chega feito um clima que surge na urbe, essa coisa defeituosa e gostosa, harmoniosa na laje ou a descer no chão. Pra manter a rima vale falar de popozão? Jonathan e Jennifer não estavam nem aí. Para eles bastava a escuridão do salão. Entre um amasso e outro, no gasto do fato que virá fátuo, iam ao universo que nem o melhor verso traduz ou a retórica dá. O desejo e o amor em flor têm apenas um sentido, uniforme e volátil. Na clarividência que mil goles dão, os dois se transbordam de volúpia e sofreguidão. Lá embaixo, na loucura que o asfalto traz e dá, iguais gostariam de viver uma realidade de se tocar em si. Logo acima, no céu repleto de estrelas, a ilusão sobressai feito centelha. Certamente, naquilo que a mente ainda consegue fazer brilhar, o beijo dos dois se esvai. No mundo que parece um istmo de poucos abrolhos, os olhos de quem lê não sabe o sentido da enorme imensidão.

sexta-feira, 2 de fevereiro de 2024

A ver e ouvir Verônica Sabino mais uma vez

 Por Ronaldo Faria

 

Cansado da vida, magoado com o tempo que não lhe avisou que o derrear iria chegar, Raimundo andava de bar em bar na busca da cerveja gelada, da vida passada, da nostalgia que a orgia em devassidão um dia foi feita. Acobertado de um tempo que há muito se foi, mesmo que perdido entre medos e devaneios que chegam a cada copo perdido, o homem caminhava cambaleante nas esquinas que a própria sina ensinava que nunca mais deveria se emaranhar. Mas qual, sua decisão não era a errada e atávica sina do então. Há muito ele vivia entre o perdão e o senão. Misto de fugitivo e ser altivo na altivez que a loucura dá, à certa altura descobriu que o esmeril era cego e sem fogo a brilhar.

Do lado de lá, muito longe da paixão, perto de cifras e cifrões, ia Adélia, formosa passageira das tragédias que a vida dá. Não haveria como culpá-la daquilo que a loucura trouxe no berço da imensa e derradeira centelha que a loucura traduz em fim. Nua, a se despir de trajes e andrajos, a mulher vai a entortar suas lembranças e andanças, numa comiseração sem fim. Na perfídia que nem a ferida mais profunda traz, a tradução de um sonho que se abstrai. Atrás de tudo, no mais profundo e enigmático enfim, um conto que o tempo dá o desconto do encontro atrasado e calado na esquina antes da viagem tardia, a certeza de que o passado é um eterno retardo. Na história de cada um, aforismo de lugar nenhum.

quarta-feira, 31 de janeiro de 2024

Os Cariocas no calor

 Por Ronaldo Faria


Calor intumescido e jogado ao léu nos lençóis que mil sóis queimaram e suaram em corpos despidos de propósitos e ódios. Da janela vem um cheiro de mar e o barulho de pombas que, em arrulhos, namoram para novas pombas se aconchegarem em fios e árvores com o alvo certo nas cabeças dos transeuntes suados do inferno da estação tórrida chegado.
Enquanto mulheres de biquínis minúsculos e homens com seus frágeis músculos desfilam na avenida do litoral, o casal se aconchega no chuveiro que brinca de jorrar água fria com um vapor de dar dor. E mãos e lábios se percorrem e correm nos corpos lânguidos e lambidas que, úmidos, contrastam com os mil graus além que vêm invadir a cena do lado de fora.
Nos raios que chegam com luz própria, a imprópria mansidão que os impropérios de quem tem de vender chá mate e biscoito Globo na areia que ferve e serve de bolhas a sangrar pés e ilusões. Talvez em algum lugar haja um cantinho onde o tantinho de sombra seja sobremaneira rasteira que deixe os amores sem cheiros e odores de pingos num lavar sem dor.
Do ar-condicionado, aloprado por ter de mudar tanto clima que na China não lhe ensinaram a fazer, vem uma brisa fresca a brotar no quadrilátero que a arquitetura do amor dá. Nos morros que se dobram ao mar, um samba e cervejas serpenteiam em si, sós. No subúrbio, esse distúrbio que nem psiquiatra cura, a solução é morrer para a alma enfim respirar.
 
II
 
O poeta, ambidestro na magia de se enganar, sorve mais um gole e lembra que o Samba de uma nota só foi a única música dedilhada no violão na esperança de conquistar a morena que, no clássico musical, se fazia magia no entardecer do Leblon... Ao menino que desabrochava, ao menos imitar o Chico Buarque e Nelson Gonçalves na voz já estava de bom tom.


segunda-feira, 29 de janeiro de 2024

Chistes no xote em Visconde de Mauá

Por Ronaldo Faria



Prepare-se para o amanhã! Ele virá! Acredite que sim! Com suas dicotomias, seus opostos, postes prestos a abocanhar o próximo carro ou aquele que está fora de si. Depois, tresloucado, dar-se-á ao nada, fará numa farsa única e solitária a sua cena de cortina fechada. Irá cerrar o mundo detrás da coxia e não receberá aplausos mil sequer. A plateia está vazia. Mas, logo a passos dali, a alcateia urra por ser a verdade de algo qualquer.
Na viagem sem fim, mesmo sabendo que a chegada está logo ali, vamos à trilha de terra e poeira, cercada de covas de anjinhos do céu, a cercanear o que a sacanagem não deixa chegar. Na vida, essa coisa a que se dá, saber-se-á, vamos a cruzar os próprios passos num acordar, ser e dormir sem lógicas ou afins. Do alto do que a poesia mais altaneira pode vociferar ou sussurrar, o poeta profetiza de forma incisiva que há que parar.
 
II
 
Na estrada, dessas que são tão estradeiras que a gente nem vê, vão o homem, o jumento, a saudade e o bem-querer. Entre eles não há distinção. São todos um só. Visse um poeta a tal cena, diria que serão todos um único solilóquio. Senão, um desesperado e destemperado poço de prazeres que nunca se fizeram em camas molhadas de lágrimas, suores e beijos traçados e trançados de línguas e cópulas doidivanas e insanas.
Na cama, esse efêmero espaço de traços e trajetos que não sabemos dizer onde irão chegar, os corpos copulam entre copos e sinergias paralelas. E vêm e vão. No meio de tudo, a canção. A certeza de que a insensatez ouvirá a voz da incerteza do senão. E assim, no prazer confuso do dia a dia, as horas emergem do chão. Decerto, no momento que o vento traz a brisa noturna, a fuga da voz que inexiste como vivesse no porão.

sábado, 27 de janeiro de 2024

Com Gonzaguinha no ouvido

Por Ronaldo Faria


Visionário e atávico, homicida de si mesmo e crente de uma religião que não há, Juarez segue entre a avidez e a tez da amada, aquela procrastinada em não ser. Cavaleiro solitário, à espera do erário inexistente, desses que o avarento arranca junto com o dedo do lazarento, segue a perder a visão, o chão, o futuro, de antemão. No saber destemperado e desagregado que dá a candura, submerge em si e emerge em cada letra, sílaba e frase desconexa que se ligam entre brancos de papel ou tela atrelados em alguma sinergia que não há. Nas ruas, milhares de seres que se dizem nação gritam num berro que ninguém ouve. Talvez um bêbado enlouquecido de sua sórdida melancolia aflita e fugidia, um saudoso pai a beijar sua filha morta em cinzas, um poeta que profetiza a imaginária realidade que não há nessa vida. Entre recônditos de cada um de nós, entre nós que ninguém desata, no emaranhado de liberdades que estão presas em caminhadas sem pressa, o cidadão segue nas ruas e esquinas, reentrâncias do senão.

Penitente e ausente de si mesmo, num frágil invólucro que cobre a cada um de nós, louco desde nascença, exacerbado e cabisbaixo, no esmeril da sobrevivência diária, Juarez, sem julgar nem a si, segue passo a passo os dias que faltam. No asco da dívida que a dúvida traz, permeia a lucidez de um profeta e a ignorância de um asceta. Pernicioso e cioso da saudade de um dia ter sido feliz, sabe que agora não vale nem o quilo pesado de uma perdiz. Mas vai. Vai entre goles e golfadas, malversas colheitas do nada, perfídias de um coração que tão maltratado não sabe diferenciar axé de fado. No sonho bisonho interrompido na madrugada, essa coisa tragada da vida, a certeza de que o amanhã será de ignóbil perfídia. No poste, um cachorro urina feliz com a pata levantada. A olhar sem enxergar direito, com uma catarata que consome seu olhar, Juarez apenas diz: “Feliz do cão que cumpre seu ritual sem se preocupar com aquilo que a Dona Joana amanhã irá dizer da poça que defronte da sua porta se fez”.



quinta-feira, 25 de janeiro de 2024

A ouvir Tiê 2

 Por Ronaldo Faria


Dança esquizofrênica e frenética numa “casa de dança” de pais de santos tântricos, loucos de bebedeiras mil, enganadores do destino, simplórios em desatino e um ou outro que de lucidez não têm nada e nada têm. Logo abaixo, um oceano inteiro e uma cidade que olha o quanto é linda, entre ladeiras, paralelepípedos, epítetos mil. Sob o escuro da lua dorme um céu de anil. No quarto de pedras, que um dia foi celeiro de escravos ou cova de barris de aguardente, corpos ardentes e queimados de sol vivem o solstício de um algo qualquer. Homem e mulher. João e Maria, Petrônio e Andriele, Sebastião e Franciele, os nomes são somente um arauto do cordel que se esvai. Ambos sequer sabem por que estão lá. Fora, um bêbado canta algo que traz larilalá... Nos ladrilhos que o tempo tombou como da humanidade, um misto de pássaro que canta a saudade que lhe apraz. Detrás de tudo, segundos profetizam o istmo que há entre o amor e a ilusão. Ao fim, no fim, a solidão. A mansidão das ondas que quebram em sofreguidão na praia. Ao nada, olhares múltiplos e brisa quente que logo farão do sono um sonho caliente. Na esquina, o apaixonado carente cochila na Ladeira da Misericórdia e rola abaixo num frigir de corpo matinal.

terça-feira, 23 de janeiro de 2024

A ouvir Tiê

Por Ronaldo Faria


A vida passa rápido pra caralho. Uma dicotomia sem início preciso, meio efetivo, fim determinado. Uma ou outra visão. Quiçá, algum momento, efêmero. Nalgum momento. Juras de amor, beijos lânguidos e um eterno e terno adeus, num pouco depois que nunca chega. Tudo como um fotograma em filigrana qualquer. Na finitude de tudo, um homem e uma mulher. Um desespero feito enterro promíscuo e solícito, desses que um adeus já basta. Num quase muito e tanto nada. Quasímodo, o personagem sem papel permeia o tempo que está e que ainda resta, em réstia. O fim, uma promessa nunca cumprida, uma comprida trajetória que finda em lugar nenhum. No fundo do mar, uma concha ouve o barulho do vento que nunca terá. Na areia, a morrer de rir com o fim do seu tererê.


sexta-feira, 19 de janeiro de 2024

Cada um com seus poemas

 Por Ronaldo Faria

 

Como disse o poeta, cada um com seus poemas. Estejam eles com enfisemas ou não. Afinal, como qualquer anormal, que tenha na vida apenas um quintal para um improvável sarau, não existe muito que dizer. Todo homem, como animal, sobrevive de álcool, químicas ou algum floral. No subterfúgio fugidio do senão, todo o centeio colhido um dia vira pão. E virá. Na imaginação tresloucada da falta de razão, a ação que a parcimônia vira coisa homônima para tentar ser. Num correr de bar em bar numa tarde que salva a quase surda de deixar de ouvir, um renovar de surgir que em lugar nenhum chegará. A moça, de todos os santos e alegrias, não está afeita às alergias que a realidade dá. Nas culpas que a vida atroz dá, existirá depois da morte um lugar?

II
 
Comer? Pra quê? O prato defronte é obrigação ou lazer? Mais algum algo para lavar. No alvo da alva aureola, a desfaçatez de quem a tez nem ruboriza. Na incerteza reta sequenciada de curvas mil, a crença do abismo sufragado em urnas do tempo. Na sétima escritura, a ruptura com a realidade. A verdade virá mentira. A tira estreita entre o tempo do passado e o assado feito com as perdas do amor fica fincada como prego na areia perto do mar. Primeiro descem os espíritos poetas fodões. Criam, dão espaço aos meias-bocas. Esses, dispersos, logo escrevem e deixam os que são pouco nada ou nunca ser descer. Aí vira um imbróglio total. Como produzir algo geral? Sozinho, o aprendiz de poeta e cavalo fica a ver navios, longe do mais perto mar.

quarta-feira, 17 de janeiro de 2024

O nome, ao som de vários,,,

 Por Ronaldo Faria

 

Dambrowisky. Aonde seus pais arranjaram esse nome? Pro inferno, quem, em sã consciência, dá esse nome a um filho? E que escrivão, filho do caralho mole, deixou registrar? Ele não sabia como responder a si mesmo. “Depois reclamam que eu bebo que nem louco. Vai ter esse nome que ninguém sabe sequer soletrar, nem meu. Pimenta no cu dos outros é tempero”.
Pobre Dambrowisky, com nome de estrangeiro num mundo destrambelhado. Desde os poucos anos na escola as professoras o chamavam de Dam. Os amiguinhos nunca souberam da sua verdadeira versão. “Graças a Deus, senão...” – pensava. Ser com arritmia de nascença, mental e cardíaca, sobrevivia. Como um ET. E pra si dizia: “Foda-se o resto. Viverei até prescrever”.
Ninguém sabia que ele via, ouvia, vivia, sobrevivia, queria só orgia. Na verdade, ninguém ouvia seus pesadelos noturnos, seus turnos dobrados na fábrica de arame farpado, seus duplos saltos carpados a cada dia que vencia com medalha de ouro nunca vista. Do outro lado da linha, no orelhão há muito desabilitado, a mulher em questão só queria ouvir que era um tesão. Dambrowisky, que era um mero sobrevivente vivente, um erro da evolução humana, já não sabia sequer se queria responder.
Camelô de produtos do Paraguai, sonhava em comercializar o pó da Colômbia. “Todo mundo merece uma vida melhor”. Diante da Estação Leopoldina, abandonada à mercê, submergia nas promessas do amigo Charlie Brown. Queria mostrar o Rio de Janeiro a quem quisesse, e pagasse para isso, claro. De preferência em moeda estrangeira. Mas Dambrowisky sabia que a periferia (subúrbio no Rio) nunca chega à Zona Sul. Na quimera que ouvira algum dia, seguia seu trajeto de melancolia. Num canto de bar, um poeta clandestino chorava em desatino. “De que adianta fazer poesia marginal se ela não passa nem no sinal?” Do outro lado das redes sociais, quem via cagava e andava no destino...
 
Rápido e presto: Dambrowisky morreu sozinho. Num daqueles dias em que o dia se esmaeceu de nuvens sombrias e o sonho de um paladino. Na lápide sobre um chão calcinado de calor, não souberam escrever seu nome. Virou “algo com nome de uísque”. Aliás, a foto é minha, no Rio de Janeiro.

segunda-feira, 15 de janeiro de 2024

No som do samba

 Por Ronaldo Faria


O lamento do violão se sobressai com o pandeiro que emoldura a formosura que só sambista faz. Na roda que traz o som, o ouvido agradece e sublima o que só vem para bater na palma da mão o próximo dia de remissão. Mas a alegria sorvida a cerveja, persevera que a ilusão terá seu lugar na próxima procissão. Com exatidão, nem o melhor pagodeiro poderia trazer tal cenário. Na árvore, canta o ultimo canário que conseguiu a liberdade do cenário anterior de prisão. “Maria, a criança abriu a gaiola! Puta que me pariu!”. Na chamada, um orixá agracia o voo do ser alado ao além.
O sentimento do que o cataclismo logo chegará, inerente ao ausente de esperança, mesmo que Maria, diante da janela sem tramela e aberta ao mundo faça as tranças, vira troça nos dedos daquele que toca o cavaquinho. De cavanhaque, aquele que trata a cuíca com o carinho de um seio envolto nas mãos, faz o fundo musical que transborda no som do bordel. Nas notas que se denotam como um louvor, um raio de sol brinca de querer brotar. No lugar, esquecido do mundo e aquecido de dor, o recomeço de um começo que nunca sequer se foi. E agora, vale a pena a trilha seguir?
Ele se levanta da mesa, paga a conta de alguns litros sorvidos e segue ainda a ouvir o batuque que invadia o silêncio que qualquer tiroteio, logo mais, poderá calar. No céu, estrelas que brilham aqui como acolá são o quadro que se expõe. Nalgum lugar, na estratosfera que a maré da vida dá, as ondas arrebentam em desespero na busca de uma areia para amar. Na próxima espera, o desespero inexequível do novo amanhã. Na roda de samba, o partideiro diz que não deixará o samba morrer. Do alto, Deus aplaude e pede bis. No prostíbulo, um novo cliente ama a bela e virgem meretriz.


Cavaleiro solitário

 Por Ronaldo Faria O bar está fechado. Parece há tempo. Mas Hermínio não se dá por vencido. Enquanto houver uma sede por beber, beber-se-á. ...