terça-feira, 30 de abril de 2024

Gonzagueando

 Por Ronaldo Faria

 

A terra carcomida pela vida e a seca ressecam os olhos que sequer podem mais chorar. No lugar, a se largar de solidão e remissão, beatas choram a morte como se a vida fosse algo a se esquecer no limiar. A parir fetos natimortos, crianças que sorvem na farinha a rinha que a vida dá como sabor, elas se vestem de negro e oram para um Deus que se esqueceu de lá chegar. O padre, quando raro passa, raramente tem na Bíblia a resposta pela dor que se segue e se firma. A fungar no cangote da próxima mulher, o homem pouco se importa com a cria que no bucho venha se embuchar. Sobe e desce, penetra e tira, goza feito sanguessuga e vai, no trote do cavalo sedento de um poço.

No alpendre, a sonhar para além do sol inclemente que chega no chão e mata e destrói como fosse Hanói em décadas atrás, a morena olha para a distância que há entre o sanfoneiro embriagado e o luar brincando de iluminar mais que o lampião que morre em cheiros de querosene e findar. Quem sabe um vaqueiro não perderá uma rês ou reza por lá. E a porteira rangerá para o amado entrar. Seu nome será Severino ou Amadeu? Pouco importa. A porta estará sem trinco ou trema. Ele poderá entrar e saciar sua sede de água e amor. Na cama de lençol branco e quarado, o sangue estará pronto para ser derramado. Amanhã, no arado, o gado suará no seu eterno trabalho.

sexta-feira, 26 de abril de 2024

As borboletas de Zé Ramalho

 Por Ronaldo Faria



O derredor está escuro, sombrio, talvez. Na vez da chegada do destino, o homem/menino vê-se, em desatino, a caçar sua mesa cercada de outras tantas igualmente sombrias e escuras. De vez ou em quando um ou outro farol ofusca a negritude geral. O farol (semáforo para alguns) pisca em três cores. Da chapa vem a surgir e subir odores mil. A larica bateu e nem Prometeu conseguirá segurar.
Jairo, para o bêbado e lisérgico o Juarez, serve os clientes que restam a buscar felicidade ou matar a saudade que não se deu permissão de partir ou encerrar. Ele, que mora longe no longínquo lugar que seja, só espera o gerente do boteco mandar jogar água geral. Na frágil realidade de cada um, o último gole de rum. No local, quem conseguiu, conseguiu. Pra o resto, o desejo é só ensejo.
Muitos, quase todos, voltarão para casa na incerta realidade de que, quem sabe, o amanhã acordará de acordo com os signos, submissos em si mesmos. A esmo, vagarão no universo que versos não descrevem. Talvez uma lágrima, um vômito desgarrado, uma insônia em que qualquer Sônia seria o porvir. Bastardos de si mesmos, sorverão tristezas. Mas, na destreza dos solitários, se salvarão.


quarta-feira, 24 de abril de 2024

Na mesa de um mundo Kleiton e Kleidiriano

 Por Ronaldo Faria



Na mesa agora quieta e vazia, sem emoções ou noções, estripulia da vida, escondida na escuridão que ilumina a incrédula cédula que espera a chegada do garçom que fugiu, a certeza de que a ilusão virou servidão de um coração tresloucado.
Na mesa que balança e trança pernas e pensamentos, a fuga do sonhador que a cada noite se encontra em pesadelos e desmazelos sabe-se lá de onde irão chegar. Certo e certamente estarão escondidos n’algum lugar, por aí, no rarefeito ar.
Na mesa que a bazófia (seja lá o que isso possa representar) se faz presente, o ausente permeia seu lugar. Nas próximas horas já estão circunscritos o soluço, as soluções insensatas, as mágicas que o poeta, apóstata, acha que pode decifrar.

segunda-feira, 22 de abril de 2024

Chico e Mônica

 Por Ronaldo Faria


 
Penduricalhos da vida: óculos, ósculos, lágrimas, saudades mil que não mais acabam em si. Tordesilhas nunca vencidas, tratados nunca feitos, bandeiras nunca conquistadas. Talvez, estradas. Insanas, extensas, centimetradas. Fábulas, todas elas com cavalos alados e amazonas que saíram das zonas mais distantes, depois de amarem mil e umas, para trocarem as luzes escuras pelo sol que brinca de acordar e dormir para ovos frigir.
Vazios que nada preenchem: frases perdidas, vidas sem vida, efêmeras horas que correm ao contrário, na dor. No labor de ser feliz, copos cheios de espuma e pródigas ideias. Talvez um braço amigo, um abraço demente, um discurso veemente, desses que diz que o amanhã amanhecerá melhor. Nas letras negras do computador, ladrilhos de uma rua em ladeira a assombrear o luar e assombrar as loucuras que vêm em vagas.
Certezas que iludem a solidão: um coração torpe, um desejo cambaleando antes do tombo, uma única candura quebrada em cacos de vidro. No voltar que o tempo não refaz e desfaz em ritmos e letras que nunca se farão música ou poesia, o homem caminha em seus momentos etéreos e voláteis a achar que se achou. Mero e ledo engano – o menino que corria as terras secas a carregar um carro de bois de sabugos de milho já não há.
Verdades que se sabem apenas ecos de profecias nunca remidas: a circuncisão de esperanças, as danças tresloucadas de pares pareados em si, sinais de céus azuis ou escuros da chuva que nunca cai. Na sombra que a árvore sem galhos dá, na dádiva daquele que teve ao menos um segundo de amor, a trilha que ninguém trilhará. No trem do tempo que corre e percorre trilhos e ordenha vidas, o derradeiro apito que o surdo nunca ouvirá.

sábado, 20 de abril de 2024

Nas cervejas do padrinho, o mimo da mímica se faz (substrato do cigarro do bom sem apertar um)

 Por Ronaldo Faria


 

Elucubrações mil num céu que há muito deixou de ser azul ou anil. No perpétuo pensar, o novo luar. Um lumiar que a noite faz pernoite. No aconchego final, a luta entre a embriaguez e o mal. A certeza de que a incerteza far-se-á frugal quando o tempo se for. E ele sempre se vai e se esvai. Brinca de eternidade quem crê que a crença poderá permear a vida da morte à sorte de cada um.

Marcelo Maldonado Peixoto, o D2. Quem saberá o nome real? Saber-se-á.  Será que vale saber E foda-se aquilo que não é rima! Na cisma da cidade que une beleza e escória, a história vitrifica a retórica que chega nos sons milenares que o coração brinca de florear para Poliana ficar de boa. Mas nem tudo que entoa é a realidade que o gueto traz em verborragia. Afinal, ele não traz à cor negra ou preta as ruelas das favelas, as coisas comuns de comunidades. Na correção da insônia que a isonomia da vida faz destrato no trato que a madrugada traz, seja chegada a malandragem que a zona norte dá.

O beijo da mulher que se aninha sobremaneira no abraço que parece o sargaço que cola no barco esquecido no porto destruído para nunca vir a ser. No cerzir que junta saudades e nunca existir, a loucura da benfazeja chegança num rolê. E vamos no sapatinho que o ardil do próximo minuto faz a troca da grana e do pó na esquina que se eterniza na sina que ninguém fará parar. Loas aos incrédulos que creem nas cédulas a remissão final. Rima surgida na mijada largada num banheiro aberto em duas opções.

Nos pesadelos que surgem loucos e tresloucados no submundo que é estar vivo, os versos vazam em sons que os ouvidos ainda ouvem. Nos olhos que já não sabem mesmo que veículos chegam de um lugar perto, o acerto do certo que, tão presto, nem parece estar no verso que, transverso, vira rima para uma conexão entre o morro e o asfalto. No desabafo que ainda bem nas letras enviadas não têm cheiro, surge o esmero que a vida arrestada não traz sobremaneira na rima do apito que ainda soa fatal.

Tivesse sobrevivido à sogra filha da ... que queria a filha casada com herdeiro de uma fábrica de guarda-chuvas, teria vivido uma vida de maior sorte? Nas esquinas sangradas das zonas sul e norte, no subúrbio banal de algo sempre animal, o menino se jogou no jogral. Vale o que for. Na época do telefone que pedia sinal para ser real, das cartas cravavam o tempo das emoções, a incerta certeza que poucos sabem o que ser. No dedilhar do agora, incrédulo e crédulo, o mundo que não disseram antes que um dia viria. 

(Para o Marcelo D2)

quinta-feira, 18 de abril de 2024

o frigir de ovos e óvulos

Por Ronaldo Faria


 

Que se foda o que irá por vir. O porvir não é e nunca foi aquilo que gostaríamos que fosse. No fosso de nós mesmos, a corrigir teclas erradas (e haja erros no que sobra de lucidez), mudemos de D2 para Ney Matogrosso. No texto a escrever, o osso.

 Sinfrônio, homônimo de ser algo ou alguém, transitava na diáspora que a vida ainda dá. Saboa ele que era mera sintonia entre a realidade o final, mas pouco importava na atávica chegada de parecer ser mortal. Imortal, já sabia ele, que não era. Nunca o foi. Gerado ao acaso que cada caso dá, numa trepada alucinada de qualquer na vida louca de nós, ele seguia na madrugada como um alguém sem ninguém. Mas não fora para isso que as madrugadas foram feitas, afeitas a um limiar sem querer nada?
Sinfrônio, codinome de bêbado que não sabe dizer se veio daqui ou se irá para lá, bambeia nas letras e sabe que no dia seguinte será pedinte de si mesmo. Mas, pouco importa. Às portas da noite quente e fria, pragueja ser alguém aquém do que se é. Benfazejo no ensejo madrigal, se entrega ao nada, a nadar e saber que se afogará. O lugar é algo que se pode rimar. Os dedos já não respondem. E nem sabem de onde vêm. No limiar da loucura, a insensatez delimita a conexão entre a derradeira centelha e a vez.

Lulu Santos a surfar na lembrança em desandança

 Por Ronaldo Faria


Enraizado no Rio do passado, entre um mar vaticinado a lindas mulheres com suas ancas e peitos, cigarros diferentes e a vida, ávida, de frente, logo defronte a um mar e suas ondas cheias de frio e sabor, fica o menino sem sonhos e ilusões. Talvez fugas fugazes entre linhas de trem, caminhos no lado zen que um Maracanã lotado em preto e vermelho que deixa a certeza de que amanhã é dia de voltar à escola onde a burrice atávica pede esmola a alguém no quem será. No futuro inóspito e próspero de logo ali um chá irá dar seu lugar num espaço quente e fervente que dinamites destruíram logo depois. Na gama de futuros filhos, o imbróglio de crer ou não na mão que tudo dita e diz. E fica a pergunta: para que então eu estou achando que sou eu a pensar e refletir em mim?
Na zona que o sul de um lugar faz ser eu em mim, minúsculo ser na vida que chegará logo longe e depois, o garoto brinca de marcar etéreos gols, dá golpes nas facas que matam sem rasgar e sangrar, se vira no silêncio ensurdecedor que a história faz brilhar a cada noite do depois. E há bares no embriagar de baixos que o Leblon fez de um chacareiro francês milhares de cachaceiros do amanhã. No som sintomático e dramático que cada frase desnuda em si traz, a amorfa forma de se transmutar e se largar. Um lagar haverá de existir em qualquer lugar. E terá cheiro de renovar, morte ou jasmim. No quadrado que vira a vida, um retângulo trará álgebra ou aritmética para a métrica da poesia. No papel, Papai Noel sabe que não virá este ano porque o menino se fodeu.
Nas areias que arestas de lembranças já nem sabem se de verdade existiram num estiro e respiro de tríades, os corpos tomam pingos de chuva caída só para lavar o passado destronado nos goles que se engolfam de realidades mil. O primeiro beijo de paixão verdadeira, a prostituta a ganhar seus mil réis sem trabalhar, a insensata asneira de se achar num lugar. Hoje, sabemos, que tal chegar se fará em cinzas e fogo para um renascer que nem a Fênix saberia criar. Pelos, penugens, vertigens, loucuras mil, desejos infindos, escorpiões em nascer e ascendência, caminhões a correr em madeira a terra do Nordeste de pó e perdões. À saber que dezenas de anos depois o amor sobrevive. Do infante virgem surge Romeu que a Julieta nunca se esqueceu nas asas de Prometeu.

terça-feira, 16 de abril de 2024

Iluminado Dominguinhos

 Por Ronaldo Faria


A retreta à treta que rola entre amores e discórdia toca corações nas vozes que fazem da prosódia algo e nada. Na concórdia de tudo o gesto mudo do infausto arguto que sonha com uma terra de verde onde a poeira marrom da seca passeia. Um sanfoneiro, n’algum lugar, irá tocar as teclas como fossem o som da brincadeira derradeira do amar. O mar, esse ser que o sertanejo nunca vê, vira prosopopeia de uma heroica história onde o histrionismo é algo sem ser. Ao ver, no reverso do verso menor, na estrada desbragada de sonoridade e veleidade, os amantes margeiam a apoteose que cada dose traz. Por detrás de tudo, ao mero descrer de ser, um pássaro passeia de galho em galho como fossem esses um atalho. No mormaço de dois corpos quentes pelo sol que decide se mandar para dormir e depois voltar a chegar, o beijo derradeiro da cena derradeira que o prelúdio, em dilúvio e eflúvios, traz. A paz.
Na casa de pau a pique e sapê, a mãe chora o filho, quase ainda feto, que se foi. Um caixãozinho pequeno e de madeira quase calcinada pela seca é o primeiro e derradeiro leito do menino que dorme num nunca acordar. No lampião que suplica por um pouco de querosene para queimar na sua sina que só quem viveu no passado sabe existir, um ou outro mosquito se joga para arder em chama escura e amarela, que qualquer avó de nome Amélia saberia ser homenagem de filho antes maltrapilho à sua matriarca sem ter tido sua fuzarca. No longínquo perto demais, o bezerro berra o brotar de um leite que derrama das tetas murchas da sua mãe. Sem entender, o boiadeiro grita para o gado se recolher. No fogão de lenha, que faz os galhos antes vivos gritam em crepitar a sua morte final, a senha da sanha da fome.
Na noite que chega e se achega devagar, uma estrela ou outra brilha de ser branca no negror que o torpor dos raios de sol que descasam e descansam num lado qualquer. No corpo nu da mulher, o mundo que tantas rotas deu às mãos que acariciavam a solidão se transmuta de cores e seus odores, sabores que só o universo de lábios sedentos de línguas e dentes dá. Talvez uma rede largada ao luar que viaje para o poema desejar. A pele lavada de pingos de prazer e suor. A maneira de quem sabe, em talagadas, que amanhã será um dia de dizer a si mesmo o desmazelo que as letras e as teclas agora dão. Na diáspora de cada segundo que sempre é passado há a incógnita de casas caiadas e caladas, metáforas que a vida faz em si mesma à eternidade que a saudade faz – invólucro de poemas que se formam em fonemas e letras mil. Quem sabe algo possa rimar, pela rima, com céu pueril e de cor anil...


sexta-feira, 12 de abril de 2024

Vozes e melodias

 Por Ronaldo Faria


-- Quisera e, ai quem de dera, estar na madrugada tresloucada, tragada de corpos e coisas afins. Ou quem sabe um começo de outro fim ou o fim de outro recomeçar. Gostaria, talvez, de ter uma tez de barba a roçar minha nuca e descer as mãos nos meus seios que anseiam por toques e lambidas, mordidas e um fim. Estou cansada de coisas banais e vozes caladas por detrás dos ladrilhos que cobrem a casa ao acaso do arquiteto que grita enlouquecido com o pedreiro que mal sabe falar.
-- Quisera, falsa quimera, a fazer a amada dormir. E, do nada, acordá-la na madrugada cheia de prédios e carros afins, vizinhos que não têm mais ninhos e ligam para o porteiro a reclamar do barulho que os pombos, em arrulhos, fazem a amar. Tocaria tuas coxas que sempre toco a cada viajar para amar e falaria de mim, de ti, do nada que um nadador sabe que chegará à morte depois da rebentação. Seria o macho da sereia a cantar para as mulheres que esperam seus amores na ponta do porto.
-- Quisera, antes mesmo do querer, voltar às areias que correm entre os dedos dos pés e brincar de despejar garrafas de vodca e gelos no degelo que faz a gente descobrir que a vida nada mais é do que deixar os peitos nus nas falésias e ouvir do amado que alguém pode ver aquilo que, coitado, pensa que é seu. Aos ventos da maresia, a maré se joga ao longe a levar as velas que trarão saudade enfim. Em mim, ensimesmada como toda amada, me atenho à trova da perfídia destronada ao nada.
-- Quisera, nesse presente ausente de lucidez e temente de logo perder o direito de falar e pensar, apenas rever todas penas a voarem nas gaivotas que trazem seus peixes e feixes para criarem novos outros voares perenes. Na embriagada forja dos poetas, que precisam se lançar à loucura para a poesia encontrar, vou a ver segundos e minutos, diminutos, para quem numa escada de um prédio secular beijou. Ao fim de tudo, em luto, enterrarei confetes e serpentinas no inexistente e ausente salão.
-- Quisera ter ouvido outra resposta posta na esquina que a quina da vida dá e ter ficado no lugar onde outra história far-se-ia. Fosse nova farsa ou não. A quem cabe o futuro? O fortuito entremear de tempos e têmporas, um acaso a acasalar seja o que for. Mas, hoje, histórias contadas e tratadas em tratados, há como mudar? A ouvir Gal, com nome de Gal, deixo-me entregar ao interregno que não virá. Num momento de tormento, prefiro o silêncio que me corrói numa ínfima imensidão.
-- Quisera ter tido botas de setecentas mil léguas que me dessem no passado o futuro que nunca soube prever. Em arroubos e roubos de letras, iletrados como sou saberiam ter escrito o descrédito de achar que a felicidade está logo ali. Sapientes ou dementes, forjariam na escuridão a certeza incerta da solidão. Daí, a perdição tomaria conta da realidade que agora não sabe o que dizer e nem mesmo se estar vivo é poder gozar. Sigo, daqui, a sequência que a dor deixar antes do mero alvorecer.
 
Ambos, mulher e homem, homem e mulher, decidem se jogar em camas vazias para suas vidas vadias e deixar o tempo a declamar, em métricas tardias, que nada agora responderá o senão. Nos ouvidos um som sombreia aquilo que as letras deixam surgir.
 
(Para Gal Costa)


quarta-feira, 10 de abril de 2024

No samba que gira as pernas a sambar

 Por Ronaldo Faria

 

Agripino, desses que a gripe passa feito poça d’água cheia de girino, batia o tamborim na madrugada cercada de cervejas e mulheres de pele que a África, graças a Deus, deu. Filho de ogã, batizado e confirmado, ele viajava acordado nos acordos que fez, mesmo sem saber, com a vida. Entre acertos e erros, sofismas e solfejos, versos e beijos de testa e língua, à mingua, ia a seguir a estrada do samba de breque, a brecar em cada ir e chegar. Pra, no fim de tudo, com o cavalo já cansado de tanto poeta receber pra virar escritura ou poesia, terminar na voz de Vinicius de Moraes.


Pra virar o dia com Caetano

 Por Ronaldo Faria

 

-- Manda a saideira aí, Germano! O dia já vai virar! Que nossas gargantas, enquanto elas puderem beber e falar, nessa vida que morrerá logo ali ou acolá, possam se esmerar e satisfazer os poucos prazeres que ainda restam a nós, meros subservientes seres de nós mesmos.

Germano, garçom e camarada, que apresentou tempos atrás a amada, responde rápido e ávido dos dez por cento do pedido de Beraldo. As mesas já quase vazias em volta, revoltas nas emoções que surgem em turbilhões depois de muitas doses e toques, olhares e desejos, esperam igualmente a garrafa chegar. “O último gole não tem como se largar”, pensam todos aqueles que resistiram heroicamente e historicamente. Um dia os escritores do futuro irão trata-los como resistentes dignos de verbetes e, quem saberá, falsetes de alguma inteligência artificial.

A sorver mais um líquido liquefeito de poesia, saudades e santos que descem para escrever no cavalo embriagado e tragado de suas lembranças e lambanças aquilo que deixaram de falar em vida, o tempo se esvai e vai nos segundos fecundos que viram passado em si a cada escrever. A ver, o que tiver de ser. Com Caetano a tornar veloz um Veloso que brilha entre estrelas, resmas e réstias, versos e versículos, o cara detrás da tela branca se acha escritor. Na esperança nunca vinda e no imenso mar de dor. Da Bahia o padrinho prometeu visitar a sede do Olodum.

-- Germano, abre outra saideira! De número qual? Sei lá! Mas já bateu no recorde normal. Isso é bom porque garante que a gente, mesmo que de forma mentirosa, volte a crer que o tempo vira estigma que só a lembrança de cada um faz passado parecer. Eu, por exemplo, me sinto agora no Gattopardo da Lagoa a beijar a índia do Pará ou a comer feito louco o Meia Lua do Natural. Deixe, por favor, assim ser.

Germano, cordato e corado no rosto de tanto receber o sol que o português não impede de chegar por se negar a colocar um anteparo, logo traz outra garrafa. A madrugada já chegou. Os pássaros dormem dependurados nas poucas árvores que restam, os amantes se esculacham notívagos nos colchões que descobrem vaginas e colhões, as estrelas curtem o pouco tempo que a primavera com cara de verão traz. O importante é saber que algo irá se transmutar e viajar milhares de quilômetros nas luzes de fibras óticas e cruzar mares, oceanos, continentes e mentes. Metamorfose feito entorse mal tratada.

-- Germano, decidi hoje não saber quantas linhas tinha cada parágrafo ágrafo. Chega de seguir limites! Deixemos a loucura sobressair! Portanto, não esqueça de mim.

No novo dia do dia novo, como fosse um ovo a chocar ou frigir, Beraldo lembra da camaleoa que se rapta. E se adapta. E se se faz amante para uma eternidade que não há. Que pode virar a mulher a bel prazer que se entrega no prédio esférico do Centro ou dormente na rede de uma casa onde uma cabeça cadavérica de boi surge no quintal de luar. Bel, a que será que se destina? Com certeza parte de um escrito pequenino, longe da tua intacta retina.

segunda-feira, 8 de abril de 2024

Sua máquina do tempo

 Por Ronaldo Faria


 
Um Ford passa ainda a rodar pelas ruas, mesmo que seu bigode já esteja raspado e branco. Brando em seu jeito quase manco, Belisário, o emissário da boemia circunscrita à mesa de bar, hoje bebe só na solidão de um adeus fugaz. Ele é o mesmo que fugiu com a toalha suja de batom da amada de milhares de escritos atrás. Mas, agora, tanto faz... É só ele, no enlevo que apenas a maior saudade traz.
O bonde se bandeia para um bairro qualquer onde os trilhos o possam levar. E Maricota viaja em seus pensares e pesares. Vestida de camisola de cetim, cabelos presos por presilhas mil, ela brinca de ser o desejo de mil homens. Embriagada em suas mágoas, vítrea na pele e virgem no sonhar, ela brinca como fosse somente efeméride atávica. Entre as suas pernas surge até hoje o cheiro bom de jasmim.
Na eletrola emerge o som de Nelson Gonçalves. De algum lugar alguém aplaude num salve a voz que surge de um gago embriagado. Aos poucos, transpassadas de solfejos e arpejos, as notas ganham sons externos, divagam e vagam pelas ruas e esquinas, amores mil e mil sinas. Certamente, na mente de um poeta, asceta de algo maior, a soberba da métrica sobressai ao limite de um mero dissabor.
No mundo que é sobremaneira infindo e infinito, retretas e serestas brilham nos coretos carcomidos de teias de aranha e descaso. Ao acaso, sonhadores imunes à tristeza ainda cantam suas sonoras e furtivas saudades. Para eles, a maldade é algo insone, mas que prefere ressonar nos fins de uma estrofe incólume. Da virada dos 50 do século já morto, torto, o escriba dedilha à trilha finda.
Uma modinha e uma ou outra serenata entoam o sortilégio da derradeira dor...

sábado, 6 de abril de 2024

O diálogo de bar

Por Ronaldo Faria



 
— A cerveja vai na forma estúpida geladamente gelada?
— Não precisa. As papilas só precisam que as tulipas estejam na temperatura das lágrimas para suarem no copo como algo trôpego antes de cair, como um corpo, logo ali na frente, diante da tragicomédia rouca.
O diálogo entre o garçom e o som que saía da boca do freguês era o epitáfio de um boteco construído diante da ermida que erguemos em cada um de nós para tentar desatarmos os próprios nós. Era sexta-feira. Dessas que vêm, entre gregos e troianos, tríade de uma verborragia imortal, a se desvencilharem de cada dia. Mistura de bolo de framboesa, na incerteza entre entrar no mar para fugir do calor ou morrer na boca do tubarão. Quem sabe um manjar feito na caçarola que só existe no Japão.
— A batata quer seca ou cheia de gordura e queimada na porção?
— De preferência uma que dê pra comer. No fim, o lugar de saída será o mesmo, a esmo. A dúvida é se será sólido ou líquido. Neste solilóquio, entre Gepeto e Pinóquio, que se traga o menu mais utópico.
— Cresivaldo, solta uma porção de tubérculo arrancado da terra junto com terra calcinada e enche de óleo requentado pela centésima vez!
O freguês, Gonçalves para os conhecidos e Brígido para os íntimos, fez o OK com o polegar. De algum lugar, na história histriônica que se faz falácia a cada segundo, alguém irá aprovar a culinária áfricajamaicanahaitiniana. Na cama, cheio de cana na cabeça, um homem está a buscar no desespero e esmero o hímen da mulher que se espalha em retalhos no colchão rasgado à beira da janela que nem a maior quimera fará dela derradeira espera na esfera. Enfim, Gonçalves Brígido, agora ser frígido, sofre de frio intermitente a sorver e ver a cerveja debulhada da garrafa de casco marrom que vira tom à espera de um Zé.
— A coxinha quer cheia de massa e um tico de frango ou cheia de argamassa e um pico de algo pra ter deixar doidão?
— Manda o que vier. No viés que há entre a vida e a morte, eterna servidão, tanto faz como tanto fez. Prometo mitigar o sabor para dar lugar à dor.
— Cresivaldo, debulha daí um frango triturado e embrulhado de algo que segure!
No derredor que se mistura entre o próximo e a proximidade que se basta, um cachorro raquítico enche a calçada de bosta. As luzes amiúdes de carros e janelas minúsculas, dessas que fazem o arquiteto mitigar nos vidros para reduzir os custos em centavos, brilham e rebrilham na póstuma chegada de mais uma lua pródiga. E casais se iluminam, tevês emitem milhões de pontos aos olhos que se enchem de futuras cataratas esbranquiçadas, batráquios fogem do sal que um idiota mental lhes joga por mal. E a vida, perpetuada na imaginária estrada em frangalhos e frangos a passarinho, espera que de algum ninho uma ninhada pie ao sol sombrio.
— Cresivaldo, solta um pano seco pra limpar a merda que esse bosta vomitou aqui!
— Seco não tem. Pode ser rasgado, mal lavado e insípido?
Ao fundo, São Paulo ressurge de novas cinzas para homenagear Itamar Assumpção, deus da poesia de quem ama a música, seja diante de um teclado ou numa sala de espera...

quinta-feira, 4 de abril de 2024

A quantidade de gêneros musicais

 Por Ronaldo Faria
 


-- Quantas foram?
-- Sei lá. A ressaca, quem sabe, amanhã saberá!
No baile de Carnaval, sem aval da solidão, esquecida por quatro dias, Pafúncio sabia que o anúncio do abstrato substrato de si só cobrava a conta no amanhecer do depois. Mas isso não o espantava. Fosse assim, ele não teria nem despertado há dezenas de anos atrás. Naquilo que o momento apraz, porém, vem o soluço resoluto a catar cada nota inaudita e dita na garganta que se desfez em tragos e tangos, tragédias, epopeias e comédias. No palco, um cavaquinho vira caquinho na cena que o diretor se fez ator e plateia. Do tempo que mulher era teteia, Lupércio bandeia entre extremos que se juntam em linha reta, como ensinava o professor taciturno de geometria. Na magia da ilusão que sobra em profusão no salão, forrado de serpentinas, todas repentinas, e confetes que parecem confeitos do bolo que murchou, ele dança na contradança que é dedicada ao sal de frutas Andrews, aquele que devolve o desejo de brincar no dia depois. Ao som da banda e do realejo que faz o desejo do periquito na porta do clube postergar decepções e ilusões, Lupércio rodopia sem parar. O fim, no adeus da colombina ao pierrô, une enfim o coração que João Gilberto disse estar cansado de sofrer.

terça-feira, 2 de abril de 2024

No repertório do oratório com Vinicius de Moraes

 Por Ronaldo Faria
 
O canário silencia um tempo e volta logo depois, no após procrastinado de metáforas e mil profanas e insanas poesias. Como um apóstata de si mesmo, se posta prostrado na madrugada. As cantatas que foram cantadas em pios solitários nesse interregno ficarão para a temporalidade que só a saudade dá. Embriagadas e tragadas de goles e visões impregnadas de viver a si mesmo, mesmo que a esmo, serão um capítulo perpétuo de uma vida que logo será esquecida, carcomida e que irá virar cinzas antes de comida de seres internos em sobrevida da morte inaudita.
Essa era a cena que Epaminondas, no seu recolher temporal, sem aval de si mesmo, via de forma estrábica e míope. Com uma catarata a querer escorrer de seus olhos, já que rios de lágrimas descem até de programa de culinária ou séries policiais, ele revolvia ruas e esquinas, muitas das quais já bateu o joelho ou a cabeça numa quina. Sem fio ou pavio, pavão sem cauda, caminhava na contramão para ver de frente a fronte daquela que o deixou. Senão, era só para parecer o ponteiro de um relógio que decide paralisar e mudar de rumo e prumo.
Catatônico, atônito e afônico, Epaminondas há tempos não tinha verborragia. Nostalgia? Muita. Lombalgia? Várias. Assimetria? Total. Sabedor do esquecimento do tempo, fatídica realidade banal e trivial, andava para o beleléu. Como fosse do mel o fel. Mas, sonhador e poeta romântico e parnasiano, nas parábolas próprias, sofismas e solilóquios, vai passo depois de passo e passada no passado a andar e voltar. No silêncio que a música dá, absorto e abstrato no trato, ele vê apenas que amigo já não há. Mas, como diz o poeta, tudo um dia chega ao fim. No bar, onde o cheiro de cerveja enseja outra bebedeira, a mesa vazia o chama a chegar e se achegar, se aconchegar.
-- Garçom, desce várias. E vou pagar adiantado, porque que tem dinheiro é pra esbanjar e se mostrar!
No som da caixa do boteco, por acaso, toca Vinicius de Moraes. “Caralho, é isso que o poetinha dizia ser algo a mais?” Logo perto uma “profissional do sexo” levanta a saia que já estava bem além do joelho. Sacana, um pernilongo, ou será um percevejo, pica Epaminondas. Na dor do sugar de sangue, ele não vê a chance da sua solidão terminar. Do caixa, o português diz que a conta já passou de duzentos reais...




Zé Geraldo

 Por Ronaldo Faria A viola viola o sonho do sonhador como se fosse certo invadir os dias da dádiva que devia alegria para a orgia primeira...