quarta-feira, 8 de maio de 2024

Belchior de novo

 Por Ronaldo Faria

 


O cinema de Salvador esconde dois corpos púberes a ver que um filme qualquer será (saberemos lá ou saber-se-á). De repente, as mãos se unem. Mãos de ainda jovens, sonhadores de que a vida é só um lumiar contínuo a beirar a certeza de que felicidade há. Bobos em si, na tragédia familiar. Crianças e jovens numa descoberta que nunca existirá. Para essa peça, na peçonha da existência, vozes de mulheres velhas a destruir o que pudesse vir. Romeu e Julieta ensanguentados nas ladeiras que a prosopopeia (seja isso o que for) diz ser o destino desnorteado de qualquer tempo.
Constantino, que tem nome parecido com quem sobreviveu ao apogeu de Constantinopla, relembra seu passado que houve (ou terá realmente havido?). Na foto 3x4, um fotograma que hoje já não há, o rosto que rompe têmporas e temporalidade. Tântricos desejos e benfazejos cortejos de nunca mais voltarão. No vão da saudade, a realidade que só a lucidez da embriaguez dá. E revolve tempos, resolve átimos da mente, mistifica o que o corpo físico não consegue recriar com a clareza da tela que está defronte dos dois amores mortos taciturnos e condenados a nunca retornar.

II
 
Parar ou não? Paralisia do porvir. Crença do ineficaz porvir e surgir. Incandescência no meio do nada. Um nadar contra a correnteza que a certeza prova ser finita. Apagar e ressurgir, no frigir de ovos e óvulos que não temos como crer que a terra que os cobrirá seja leve. Não será. Sejamos, pois, entregues às chamas que matarão o que nos fizeram morrer. E assim possamos dormir em lençóis requentados de corpos que já não se encontram, bocas que não se enlaçam, pernas que não transpassam. Afinal, isso são os anos de qualquer ser, tenha duas ou quatro pernas, rasteje ou não no chão, flutue ou nade na eternidade desse globo em glóbulo ocular. “Foda-se”, grita o homem diante do seu amor maior. No sortilégio do egrégio pulsar, a pusilânime sentença que a saudade traz.

terça-feira, 7 de maio de 2024

Sergio Mendes, um perene sucesso

 Por Edmilson Siqueira


Sergio Mendes é, sem dúvida, o mais bem sucedido artista brasileiro no exterior. E não só nos Estados Unidos. Seus discos são vendidos também na Europa e no Japão. Se não atingem números estratosféricos de vendas hoje, a perenidade das vendas é marca de um sucesso longevo.
Essa lembrança me veio à mente com a chegada do CD Four Sider, que eu comprei no Mercado Livre. Lançado em 1988, ele traz, em 21 faixas, um resumo da fase mais bem sucedida em termos de vendas de discos do pianista brasileiro. Depois dessa época, em que as vendas diminuíram, seu prestígio só aumentou e hoje ele é venerado tanto por antigos fãs, como pela nova geração de músicos dos EUA.
Comprei o CD pois, embora conheça muita coisa dele e já tenha captado algumas faixas na Internet, não tinha um disco com seus grandes lançamentos do século passado. Four Sider preenche essa lacuna.
Sergio Mendes saiu do Brasil ainda na década de 1960. Quem pensa que ele foi buscar o sucesso no exterior, se engana: saiu praticamente forçado pela ditadura que, a partir de um divertido bilhete seu para um amigo, acabou caindo das garras de um governo ignorante e sua repressão. Não entenderam a mensagem e pensaram tratar-se de um grande subversivo. O amigo para o qual endereçou o bilhete, foi vítima também da mesma ignorância. Era um escultor e, em seu ateliê, a polícia descobriu o que pensou ser uma escultura de Lenin, comunista que tomou o poder na Rússia em 1917. O busto retratava o pai do escultor, que era apenas parecido com Lenin.
Diante dessa brutalidade e com um filho recém-nascido (o motivo do bilhete ao amigo) Sergio Mendes não teve dúvida: se mandou para os EUA, onde já tinha amigos e poderia levar uma vida mais tranquila, preocupado apenas com sua arte e podendo cuidar bem de sua família.
O sucesso não demorou a chegar. Craque na bossa nova e ciente do gosto norte-americano pelo som brasileiro, juntou as ideias e criou um som próprio, transformando sucessos daqui e de lá num espécie de pós-bossa nova jazzística que os americanos adoraram.
Mas que Nada, de Jorge Benjor, foi a primeira mostra de que ele estava lá para ficar. O disco chegou entre os dez primeiros das paradas da época (paradas americanas, da Bill Board e outras, sérias) e o LP que essa música puxou vendeu muito também. Em seguida, gravou uma música do Beatles que, embora de grande qualidade, tinha ficado meio perdida entre os megassucessos dos Fab Four. Sergio Mendes com seu grupo (o Brazil '66) deu um tratamento de sambinha bossa nova a The Fool on the Hill que simplesmente alcançou o topo das paradas e transformou o brasileiro em ídolo por lá.
Depois de passar por duas gravadoras, acabou se firmando na A&M Records, dos amigos Herbet Alpert e Jerry Moss, onde continuou criando sucessos, às vezes nas fórmulas bossa-nova-jazz e outras, mais fieis aos originais.
O disco Four Sider é um retrato perfeito da obra do século passado, mas isso não significa que Sérgio Mendes parou por lá. Poderia ter parado se fosse apenas o dinheiro a lhe interessar, pois ficou rico. Construiu uma enorme casa em Los Angeles e nela um estúdio de gravação completo. O marceneiro que estava fazendo a parte de madeira do estúdio, lhe disse que estava estudando para ser artista de cinema. Sergio Mendes apreciou o fato e desejou boa sorte ao rapaz. Alguns anos depois o viu estrelando um filme. Era Harrison Ford.
No século 21, já gravou cinco discos. Desses eu tenho Timeless, onde ele revisita alguns sucessos em companhia de artistas de Rap, de Stevie Wonder e outros. Ou seja, com mais de 80 anos, continua ligado no som atual e emprestando a ele seu talento. 
As vinte e uma músicas que compõem Four Sider são as seguintes:  Mais Que Nada (Jorge Ben), One Note Samba/Spanish Flea (Jon Hendricks / Antônio Carlos Jobim / Newton Mendonça), Bim Bom (João Gilberto), Look Around (Alan Bergman / Marilyn Bergman / Sergio Mendes), (Sittin' On) The Dock of the Bay (Steve Cropper / Otis Redding), Watch What Happens (Norman Gimbel / Michel Legrand), With a Little Help from My Friends (John Lennon / Paul McCartney), The Look of Love (Burt Bacharach / Hal David), Norwegian Wood (John Lennon / Paul McCartney), Wave  (Antônio Carlos Jobim), After Midnight (J.J. Cale), Chelsea Morning (Joni Mitchell), The Fool on the Hill (John Lennon / Paul McCartney), For What It's Worth (Stephen Stills), Day Tripper (John Lennon / Paul McCartney), Crystal Illusions - Memórias de Marta Saré - (Guarnieri / Lani Hall / Edu Lobo), País Tropical (Jorge Benjor), Ye-Me-Le (Chico Feitosa / Luís Carlos Vinhas), Reza (Rui Guerra / Edu Lobo), Promise of a Fisherman (Dorival Caymmi), After Sunrise (Oscar Castro-Neves / Tião Neto).
Várias plataformas na internet vendem o disco, bem como disponibilizam as faixas para uma audiência. Divirtam-se.


segunda-feira, 6 de maio de 2024

Belchior forever

 Por Ronaldo Faria

 

A rua está escura e obscura, como um abismo que só o absinto poderá determinar o fim entre a próxima esquina e a quina do prédio que está logo ali defronte. O escuro absorto e solto neste lado da Terra que, creiam, é redonda, está rotundo e senhor de si. Ensimesmado, porém, feito o amante que se acha amado (mero boçal), Cândido Homero, como o nome diz ser bom e herói de literatura grega, é um maltrapilho idoso que se cortou e se queimou pelos dias e tempos trêmulos e efêmeros que foram seus dias travestidos de vida.
Mas, para ele, pouco ou tanto faz. Facínoras invadirão seus sonhos e pesadelos sem mazelas ou fábulas de aprendiz de sonhador que só quer um dia dormir em paz. Para Cândido Homero, o frescor de uma infância que nunca teve, a juventude partida entre a busca da sanidade e a idade que viria depois. A fuga constante da inconstância prematura, a sentença natimorta de saber que felicidade não há. A gargalhar nos frangalhos da emoção, ele caminha enquanto houver caminhar.
Nos dias de Cândido Homero, minutos nostálgicos e nevrálgicos, palavreados atávicos, metonímias que nem a rimas sabem o que são. Feito sermão de padre pedófilo, a oração que atabaques ecoam num espaço quente e enlouquecido de uma mulher de cabelos negros e longos, peitos grandes, ancas de dar bons filhos. E nunca mais. E o amor que se foi se evadiu e fugiu nos trilhos de trens que somem em ruídos ensurdecedores, fugas de amores e odores, lábios e crenças mil.

quinta-feira, 2 de maio de 2024

No concreto, de volta àquilo que crê-se seja concreto (a ouvir Tom Zé)

 Por Ronaldo Faria



Píncaros.
Quais?
Fatais?
Hoje ou nunca mais?
Nos amemos?
Ou Amemo-nos?
Na esquadria do concreto, tanto faz.
Prosopopeias?
O que será isso?
O autor despirocou.
Há São João ou Augusta?
Súplica que haja.
Senão, não há razão de escrever.
Tesão?
O que é isso?
Ter o senão?
Viver o quão for?
Se este for ou não.
Cidade de concreto.
Dejetos a sorver.
Descobertas a viver.
Deus, se houver, salve São Paulo.
Onde vivem Severino e Saulo.
Suavemente, salvem-se todos.
Na Cracolândia, a Disneylândia do pó.
Armagedom do preto e do judeu.
Do pobre e do plebeu.
Do rico além da riqueza do judeu.
Réplica da tréplica que não há.
Varejo e venda sem cifrões.
Da mulher e do travesti da esquina.
Da sina que vem do Sinai.
Dos parques e parquímetros.
Botecos e meros afetos.
Artistas de rua e moradores que nem.
Viadutos e seres putos.
Milagres surgidos na sarjeta.
Mutreta de repassar o pó.
Mureta entre a riqueza e a pobreza.
À fome, cães e humanos mil.
Fodam-se os artistas da vida...
Jardins e vilas segregados.
Todos vilões em si.
Nuns os abastados.
Noutros os eternos chinfrins.
Chamuscados de poluição, beijam-se.
Parcimônias da amônia geral.
Filhos de uma mesma vida no fim.
Vilipêndios no sol a frigir.
Como meros fugitivos de si.
Na mesmice do bagulho carmim.
Crendice da chegança sem mimimi.
São Paulo será um por fim.
A comer milhares de reais.
A sorver o que há de mim.
Embriagado, tragado até o fim, faço-me sim.
E foda-se o restante que há.
No subterfúgio da vida, o que haverá?
Talvez uma esquina ou uma sina.
Mas quantas milhões existirão?
Na insônia da isonomia, o silêncio.
Num bar, o cliente chama o garçom Inocêncio.
Na sentença da demência, a clemência...
E ponto final, afinal..

terça-feira, 30 de abril de 2024

Gonzagueando

 Por Ronaldo Faria

 

A terra carcomida pela vida e a seca ressecam os olhos que sequer podem mais chorar. No lugar, a se largar de solidão e remissão, beatas choram a morte como se a vida fosse algo a se esquecer no limiar. A parir fetos natimortos, crianças que sorvem na farinha a rinha que a vida dá como sabor, elas se vestem de negro e oram para um Deus que se esqueceu de lá chegar. O padre, quando raro passa, raramente tem na Bíblia a resposta pela dor que se segue e se firma. A fungar no cangote da próxima mulher, o homem pouco se importa com a cria que no bucho venha se embuchar. Sobe e desce, penetra e tira, goza feito sanguessuga e vai, no trote do cavalo sedento de um poço.

No alpendre, a sonhar para além do sol inclemente que chega no chão e mata e destrói como fosse Hanói em décadas atrás, a morena olha para a distância que há entre o sanfoneiro embriagado e o luar brincando de iluminar mais que o lampião que morre em cheiros de querosene e findar. Quem sabe um vaqueiro não perderá uma rês ou reza por lá. E a porteira rangerá para o amado entrar. Seu nome será Severino ou Amadeu? Pouco importa. A porta estará sem trinco ou trema. Ele poderá entrar e saciar sua sede de água e amor. Na cama de lençol branco e quarado, o sangue estará pronto para ser derramado. Amanhã, no arado, o gado suará no seu eterno trabalho.

sexta-feira, 26 de abril de 2024

As borboletas de Zé Ramalho

 Por Ronaldo Faria



O derredor está escuro, sombrio, talvez. Na vez da chegada do destino, o homem/menino vê-se, em desatino, a caçar sua mesa cercada de outras tantas igualmente sombrias e escuras. De vez ou em quando um ou outro farol ofusca a negritude geral. O farol (semáforo para alguns) pisca em três cores. Da chapa vem a surgir e subir odores mil. A larica bateu e nem Prometeu conseguirá segurar.
Jairo, para o bêbado e lisérgico o Juarez, serve os clientes que restam a buscar felicidade ou matar a saudade que não se deu permissão de partir ou encerrar. Ele, que mora longe no longínquo lugar que seja, só espera o gerente do boteco mandar jogar água geral. Na frágil realidade de cada um, o último gole de rum. No local, quem conseguiu, conseguiu. Pra o resto, o desejo é só ensejo.
Muitos, quase todos, voltarão para casa na incerta realidade de que, quem sabe, o amanhã acordará de acordo com os signos, submissos em si mesmos. A esmo, vagarão no universo que versos não descrevem. Talvez uma lágrima, um vômito desgarrado, uma insônia em que qualquer Sônia seria o porvir. Bastardos de si mesmos, sorverão tristezas. Mas, na destreza dos solitários, se salvarão.


quarta-feira, 24 de abril de 2024

Na mesa de um mundo Kleiton e Kleidiriano

 Por Ronaldo Faria



Na mesa agora quieta e vazia, sem emoções ou noções, estripulia da vida, escondida na escuridão que ilumina a incrédula cédula que espera a chegada do garçom que fugiu, a certeza de que a ilusão virou servidão de um coração tresloucado.
Na mesa que balança e trança pernas e pensamentos, a fuga do sonhador que a cada noite se encontra em pesadelos e desmazelos sabe-se lá de onde irão chegar. Certo e certamente estarão escondidos n’algum lugar, por aí, no rarefeito ar.
Na mesa que a bazófia (seja lá o que isso possa representar) se faz presente, o ausente permeia seu lugar. Nas próximas horas já estão circunscritos o soluço, as soluções insensatas, as mágicas que o poeta, apóstata, acha que pode decifrar.

segunda-feira, 22 de abril de 2024

Chico e Mônica

 Por Ronaldo Faria


 
Penduricalhos da vida: óculos, ósculos, lágrimas, saudades mil que não mais acabam em si. Tordesilhas nunca vencidas, tratados nunca feitos, bandeiras nunca conquistadas. Talvez, estradas. Insanas, extensas, centimetradas. Fábulas, todas elas com cavalos alados e amazonas que saíram das zonas mais distantes, depois de amarem mil e umas, para trocarem as luzes escuras pelo sol que brinca de acordar e dormir para ovos frigir.
Vazios que nada preenchem: frases perdidas, vidas sem vida, efêmeras horas que correm ao contrário, na dor. No labor de ser feliz, copos cheios de espuma e pródigas ideias. Talvez um braço amigo, um abraço demente, um discurso veemente, desses que diz que o amanhã amanhecerá melhor. Nas letras negras do computador, ladrilhos de uma rua em ladeira a assombrear o luar e assombrar as loucuras que vêm em vagas.
Certezas que iludem a solidão: um coração torpe, um desejo cambaleando antes do tombo, uma única candura quebrada em cacos de vidro. No voltar que o tempo não refaz e desfaz em ritmos e letras que nunca se farão música ou poesia, o homem caminha em seus momentos etéreos e voláteis a achar que se achou. Mero e ledo engano – o menino que corria as terras secas a carregar um carro de bois de sabugos de milho já não há.
Verdades que se sabem apenas ecos de profecias nunca remidas: a circuncisão de esperanças, as danças tresloucadas de pares pareados em si, sinais de céus azuis ou escuros da chuva que nunca cai. Na sombra que a árvore sem galhos dá, na dádiva daquele que teve ao menos um segundo de amor, a trilha que ninguém trilhará. No trem do tempo que corre e percorre trilhos e ordenha vidas, o derradeiro apito que o surdo nunca ouvirá.

sábado, 20 de abril de 2024

Nas cervejas do padrinho, o mimo da mímica se faz (substrato do cigarro do bom sem apertar um)

 Por Ronaldo Faria


 

Elucubrações mil num céu que há muito deixou de ser azul ou anil. No perpétuo pensar, o novo luar. Um lumiar que a noite faz pernoite. No aconchego final, a luta entre a embriaguez e o mal. A certeza de que a incerteza far-se-á frugal quando o tempo se for. E ele sempre se vai e se esvai. Brinca de eternidade quem crê que a crença poderá permear a vida da morte à sorte de cada um.

Marcelo Maldonado Peixoto, o D2. Quem saberá o nome real? Saber-se-á.  Será que vale saber E foda-se aquilo que não é rima! Na cisma da cidade que une beleza e escória, a história vitrifica a retórica que chega nos sons milenares que o coração brinca de florear para Poliana ficar de boa. Mas nem tudo que entoa é a realidade que o gueto traz em verborragia. Afinal, ele não traz à cor negra ou preta as ruelas das favelas, as coisas comuns de comunidades. Na correção da insônia que a isonomia da vida faz destrato no trato que a madrugada traz, seja chegada a malandragem que a zona norte dá.

O beijo da mulher que se aninha sobremaneira no abraço que parece o sargaço que cola no barco esquecido no porto destruído para nunca vir a ser. No cerzir que junta saudades e nunca existir, a loucura da benfazeja chegança num rolê. E vamos no sapatinho que o ardil do próximo minuto faz a troca da grana e do pó na esquina que se eterniza na sina que ninguém fará parar. Loas aos incrédulos que creem nas cédulas a remissão final. Rima surgida na mijada largada num banheiro aberto em duas opções.

Nos pesadelos que surgem loucos e tresloucados no submundo que é estar vivo, os versos vazam em sons que os ouvidos ainda ouvem. Nos olhos que já não sabem mesmo que veículos chegam de um lugar perto, o acerto do certo que, tão presto, nem parece estar no verso que, transverso, vira rima para uma conexão entre o morro e o asfalto. No desabafo que ainda bem nas letras enviadas não têm cheiro, surge o esmero que a vida arrestada não traz sobremaneira na rima do apito que ainda soa fatal.

Tivesse sobrevivido à sogra filha da ... que queria a filha casada com herdeiro de uma fábrica de guarda-chuvas, teria vivido uma vida de maior sorte? Nas esquinas sangradas das zonas sul e norte, no subúrbio banal de algo sempre animal, o menino se jogou no jogral. Vale o que for. Na época do telefone que pedia sinal para ser real, das cartas cravavam o tempo das emoções, a incerta certeza que poucos sabem o que ser. No dedilhar do agora, incrédulo e crédulo, o mundo que não disseram antes que um dia viria. 

(Para o Marcelo D2)

quinta-feira, 18 de abril de 2024

o frigir de ovos e óvulos

Por Ronaldo Faria


 

Que se foda o que irá por vir. O porvir não é e nunca foi aquilo que gostaríamos que fosse. No fosso de nós mesmos, a corrigir teclas erradas (e haja erros no que sobra de lucidez), mudemos de D2 para Ney Matogrosso. No texto a escrever, o osso.

 Sinfrônio, homônimo de ser algo ou alguém, transitava na diáspora que a vida ainda dá. Saboa ele que era mera sintonia entre a realidade o final, mas pouco importava na atávica chegada de parecer ser mortal. Imortal, já sabia ele, que não era. Nunca o foi. Gerado ao acaso que cada caso dá, numa trepada alucinada de qualquer na vida louca de nós, ele seguia na madrugada como um alguém sem ninguém. Mas não fora para isso que as madrugadas foram feitas, afeitas a um limiar sem querer nada?
Sinfrônio, codinome de bêbado que não sabe dizer se veio daqui ou se irá para lá, bambeia nas letras e sabe que no dia seguinte será pedinte de si mesmo. Mas, pouco importa. Às portas da noite quente e fria, pragueja ser alguém aquém do que se é. Benfazejo no ensejo madrigal, se entrega ao nada, a nadar e saber que se afogará. O lugar é algo que se pode rimar. Os dedos já não respondem. E nem sabem de onde vêm. No limiar da loucura, a insensatez delimita a conexão entre a derradeira centelha e a vez.

Lulu Santos a surfar na lembrança em desandança

 Por Ronaldo Faria


Enraizado no Rio do passado, entre um mar vaticinado a lindas mulheres com suas ancas e peitos, cigarros diferentes e a vida, ávida, de frente, logo defronte a um mar e suas ondas cheias de frio e sabor, fica o menino sem sonhos e ilusões. Talvez fugas fugazes entre linhas de trem, caminhos no lado zen que um Maracanã lotado em preto e vermelho que deixa a certeza de que amanhã é dia de voltar à escola onde a burrice atávica pede esmola a alguém no quem será. No futuro inóspito e próspero de logo ali um chá irá dar seu lugar num espaço quente e fervente que dinamites destruíram logo depois. Na gama de futuros filhos, o imbróglio de crer ou não na mão que tudo dita e diz. E fica a pergunta: para que então eu estou achando que sou eu a pensar e refletir em mim?
Na zona que o sul de um lugar faz ser eu em mim, minúsculo ser na vida que chegará logo longe e depois, o garoto brinca de marcar etéreos gols, dá golpes nas facas que matam sem rasgar e sangrar, se vira no silêncio ensurdecedor que a história faz brilhar a cada noite do depois. E há bares no embriagar de baixos que o Leblon fez de um chacareiro francês milhares de cachaceiros do amanhã. No som sintomático e dramático que cada frase desnuda em si traz, a amorfa forma de se transmutar e se largar. Um lagar haverá de existir em qualquer lugar. E terá cheiro de renovar, morte ou jasmim. No quadrado que vira a vida, um retângulo trará álgebra ou aritmética para a métrica da poesia. No papel, Papai Noel sabe que não virá este ano porque o menino se fodeu.
Nas areias que arestas de lembranças já nem sabem se de verdade existiram num estiro e respiro de tríades, os corpos tomam pingos de chuva caída só para lavar o passado destronado nos goles que se engolfam de realidades mil. O primeiro beijo de paixão verdadeira, a prostituta a ganhar seus mil réis sem trabalhar, a insensata asneira de se achar num lugar. Hoje, sabemos, que tal chegar se fará em cinzas e fogo para um renascer que nem a Fênix saberia criar. Pelos, penugens, vertigens, loucuras mil, desejos infindos, escorpiões em nascer e ascendência, caminhões a correr em madeira a terra do Nordeste de pó e perdões. À saber que dezenas de anos depois o amor sobrevive. Do infante virgem surge Romeu que a Julieta nunca se esqueceu nas asas de Prometeu.

terça-feira, 16 de abril de 2024

Iluminado Dominguinhos

 Por Ronaldo Faria


A retreta à treta que rola entre amores e discórdia toca corações nas vozes que fazem da prosódia algo e nada. Na concórdia de tudo o gesto mudo do infausto arguto que sonha com uma terra de verde onde a poeira marrom da seca passeia. Um sanfoneiro, n’algum lugar, irá tocar as teclas como fossem o som da brincadeira derradeira do amar. O mar, esse ser que o sertanejo nunca vê, vira prosopopeia de uma heroica história onde o histrionismo é algo sem ser. Ao ver, no reverso do verso menor, na estrada desbragada de sonoridade e veleidade, os amantes margeiam a apoteose que cada dose traz. Por detrás de tudo, ao mero descrer de ser, um pássaro passeia de galho em galho como fossem esses um atalho. No mormaço de dois corpos quentes pelo sol que decide se mandar para dormir e depois voltar a chegar, o beijo derradeiro da cena derradeira que o prelúdio, em dilúvio e eflúvios, traz. A paz.
Na casa de pau a pique e sapê, a mãe chora o filho, quase ainda feto, que se foi. Um caixãozinho pequeno e de madeira quase calcinada pela seca é o primeiro e derradeiro leito do menino que dorme num nunca acordar. No lampião que suplica por um pouco de querosene para queimar na sua sina que só quem viveu no passado sabe existir, um ou outro mosquito se joga para arder em chama escura e amarela, que qualquer avó de nome Amélia saberia ser homenagem de filho antes maltrapilho à sua matriarca sem ter tido sua fuzarca. No longínquo perto demais, o bezerro berra o brotar de um leite que derrama das tetas murchas da sua mãe. Sem entender, o boiadeiro grita para o gado se recolher. No fogão de lenha, que faz os galhos antes vivos gritam em crepitar a sua morte final, a senha da sanha da fome.
Na noite que chega e se achega devagar, uma estrela ou outra brilha de ser branca no negror que o torpor dos raios de sol que descasam e descansam num lado qualquer. No corpo nu da mulher, o mundo que tantas rotas deu às mãos que acariciavam a solidão se transmuta de cores e seus odores, sabores que só o universo de lábios sedentos de línguas e dentes dá. Talvez uma rede largada ao luar que viaje para o poema desejar. A pele lavada de pingos de prazer e suor. A maneira de quem sabe, em talagadas, que amanhã será um dia de dizer a si mesmo o desmazelo que as letras e as teclas agora dão. Na diáspora de cada segundo que sempre é passado há a incógnita de casas caiadas e caladas, metáforas que a vida faz em si mesma à eternidade que a saudade faz – invólucro de poemas que se formam em fonemas e letras mil. Quem sabe algo possa rimar, pela rima, com céu pueril e de cor anil...


sexta-feira, 12 de abril de 2024

Vozes e melodias

 Por Ronaldo Faria


-- Quisera e, ai quem de dera, estar na madrugada tresloucada, tragada de corpos e coisas afins. Ou quem sabe um começo de outro fim ou o fim de outro recomeçar. Gostaria, talvez, de ter uma tez de barba a roçar minha nuca e descer as mãos nos meus seios que anseiam por toques e lambidas, mordidas e um fim. Estou cansada de coisas banais e vozes caladas por detrás dos ladrilhos que cobrem a casa ao acaso do arquiteto que grita enlouquecido com o pedreiro que mal sabe falar.
-- Quisera, falsa quimera, a fazer a amada dormir. E, do nada, acordá-la na madrugada cheia de prédios e carros afins, vizinhos que não têm mais ninhos e ligam para o porteiro a reclamar do barulho que os pombos, em arrulhos, fazem a amar. Tocaria tuas coxas que sempre toco a cada viajar para amar e falaria de mim, de ti, do nada que um nadador sabe que chegará à morte depois da rebentação. Seria o macho da sereia a cantar para as mulheres que esperam seus amores na ponta do porto.
-- Quisera, antes mesmo do querer, voltar às areias que correm entre os dedos dos pés e brincar de despejar garrafas de vodca e gelos no degelo que faz a gente descobrir que a vida nada mais é do que deixar os peitos nus nas falésias e ouvir do amado que alguém pode ver aquilo que, coitado, pensa que é seu. Aos ventos da maresia, a maré se joga ao longe a levar as velas que trarão saudade enfim. Em mim, ensimesmada como toda amada, me atenho à trova da perfídia destronada ao nada.
-- Quisera, nesse presente ausente de lucidez e temente de logo perder o direito de falar e pensar, apenas rever todas penas a voarem nas gaivotas que trazem seus peixes e feixes para criarem novos outros voares perenes. Na embriagada forja dos poetas, que precisam se lançar à loucura para a poesia encontrar, vou a ver segundos e minutos, diminutos, para quem numa escada de um prédio secular beijou. Ao fim de tudo, em luto, enterrarei confetes e serpentinas no inexistente e ausente salão.
-- Quisera ter ouvido outra resposta posta na esquina que a quina da vida dá e ter ficado no lugar onde outra história far-se-ia. Fosse nova farsa ou não. A quem cabe o futuro? O fortuito entremear de tempos e têmporas, um acaso a acasalar seja o que for. Mas, hoje, histórias contadas e tratadas em tratados, há como mudar? A ouvir Gal, com nome de Gal, deixo-me entregar ao interregno que não virá. Num momento de tormento, prefiro o silêncio que me corrói numa ínfima imensidão.
-- Quisera ter tido botas de setecentas mil léguas que me dessem no passado o futuro que nunca soube prever. Em arroubos e roubos de letras, iletrados como sou saberiam ter escrito o descrédito de achar que a felicidade está logo ali. Sapientes ou dementes, forjariam na escuridão a certeza incerta da solidão. Daí, a perdição tomaria conta da realidade que agora não sabe o que dizer e nem mesmo se estar vivo é poder gozar. Sigo, daqui, a sequência que a dor deixar antes do mero alvorecer.
 
Ambos, mulher e homem, homem e mulher, decidem se jogar em camas vazias para suas vidas vadias e deixar o tempo a declamar, em métricas tardias, que nada agora responderá o senão. Nos ouvidos um som sombreia aquilo que as letras deixam surgir.
 
(Para Gal Costa)


quarta-feira, 10 de abril de 2024

No samba que gira as pernas a sambar

 Por Ronaldo Faria

 

Agripino, desses que a gripe passa feito poça d’água cheia de girino, batia o tamborim na madrugada cercada de cervejas e mulheres de pele que a África, graças a Deus, deu. Filho de ogã, batizado e confirmado, ele viajava acordado nos acordos que fez, mesmo sem saber, com a vida. Entre acertos e erros, sofismas e solfejos, versos e beijos de testa e língua, à mingua, ia a seguir a estrada do samba de breque, a brecar em cada ir e chegar. Pra, no fim de tudo, com o cavalo já cansado de tanto poeta receber pra virar escritura ou poesia, terminar na voz de Vinicius de Moraes.


Pra virar o dia com Caetano

 Por Ronaldo Faria

 

-- Manda a saideira aí, Germano! O dia já vai virar! Que nossas gargantas, enquanto elas puderem beber e falar, nessa vida que morrerá logo ali ou acolá, possam se esmerar e satisfazer os poucos prazeres que ainda restam a nós, meros subservientes seres de nós mesmos.

Germano, garçom e camarada, que apresentou tempos atrás a amada, responde rápido e ávido dos dez por cento do pedido de Beraldo. As mesas já quase vazias em volta, revoltas nas emoções que surgem em turbilhões depois de muitas doses e toques, olhares e desejos, esperam igualmente a garrafa chegar. “O último gole não tem como se largar”, pensam todos aqueles que resistiram heroicamente e historicamente. Um dia os escritores do futuro irão trata-los como resistentes dignos de verbetes e, quem saberá, falsetes de alguma inteligência artificial.

A sorver mais um líquido liquefeito de poesia, saudades e santos que descem para escrever no cavalo embriagado e tragado de suas lembranças e lambanças aquilo que deixaram de falar em vida, o tempo se esvai e vai nos segundos fecundos que viram passado em si a cada escrever. A ver, o que tiver de ser. Com Caetano a tornar veloz um Veloso que brilha entre estrelas, resmas e réstias, versos e versículos, o cara detrás da tela branca se acha escritor. Na esperança nunca vinda e no imenso mar de dor. Da Bahia o padrinho prometeu visitar a sede do Olodum.

-- Germano, abre outra saideira! De número qual? Sei lá! Mas já bateu no recorde normal. Isso é bom porque garante que a gente, mesmo que de forma mentirosa, volte a crer que o tempo vira estigma que só a lembrança de cada um faz passado parecer. Eu, por exemplo, me sinto agora no Gattopardo da Lagoa a beijar a índia do Pará ou a comer feito louco o Meia Lua do Natural. Deixe, por favor, assim ser.

Germano, cordato e corado no rosto de tanto receber o sol que o português não impede de chegar por se negar a colocar um anteparo, logo traz outra garrafa. A madrugada já chegou. Os pássaros dormem dependurados nas poucas árvores que restam, os amantes se esculacham notívagos nos colchões que descobrem vaginas e colhões, as estrelas curtem o pouco tempo que a primavera com cara de verão traz. O importante é saber que algo irá se transmutar e viajar milhares de quilômetros nas luzes de fibras óticas e cruzar mares, oceanos, continentes e mentes. Metamorfose feito entorse mal tratada.

-- Germano, decidi hoje não saber quantas linhas tinha cada parágrafo ágrafo. Chega de seguir limites! Deixemos a loucura sobressair! Portanto, não esqueça de mim.

No novo dia do dia novo, como fosse um ovo a chocar ou frigir, Beraldo lembra da camaleoa que se rapta. E se adapta. E se se faz amante para uma eternidade que não há. Que pode virar a mulher a bel prazer que se entrega no prédio esférico do Centro ou dormente na rede de uma casa onde uma cabeça cadavérica de boi surge no quintal de luar. Bel, a que será que se destina? Com certeza parte de um escrito pequenino, longe da tua intacta retina.

Cavaleiro solitário

 Por Ronaldo Faria O bar está fechado. Parece há tempo. Mas Hermínio não se dá por vencido. Enquanto houver uma sede por beber, beber-se-á. ...