sábado, 30 de dezembro de 2023

Agora vai...

 Por Ronaldo Faria


“Tá difícil virar o ano. E lá vai mais um texto para tentar cobrir o dia 30 de dezembro. Talvez o último do https://osmusicoolatras.blogspot.com/. Resistência firme, mas que deve se aposentar em 2024.” (Ronaldo Faria)

Da janela em mera procela, Maria olhava o que restava na paisagem inclemente que o calor declinava sobre a terra. Nas serras, antes verdes e floridas, o seco do mato crepitava aqui e ali. Um tanto de poeira, que o gado magro levantava na estrada de terra batida, voava no alpendre onde uma rede parada e corroída descansava ao tempo sem vento. Entre um suspirar e outro, o sussurro da boca molhada de água e desejo no ensejo da tardia melodia. Nas árvores, pássaros proclamavam a chegada da primavera. A quimera, a se querer florida, viajava na saudade de dias há muito atrás.

Sentado sobe o cavalo que galopava e arfava na imensidão de um nada qualquer, José ia até a cidade mais próxima e próspera na busca de um desejo da amada. “Quero pitomba pro nosso filho poder nascer”. Conhecida na língua dos índios tupis como sopapo, bofetada ou chute forte, a fruta era o desejo de Maria. “Imagina o nosso filho nascer com cara de pitomba... nem pensar”, pensava José a chicotear o cavalo para varar o mundão antes que a feira do vilarejo terminasse. Para trás ficavam os tempos inauditos, os ditos por não ditos, a dicotomia de estar vivo sabendo que todos iremos morrer.

Maria, de olhos marejados diante da dor, caminha nos corredores da casa. Uma luz de lampião logo irá se acender e ascender ao tempo e chegar com sua fumaça negra para algo próximo às telhas e o léu, como um fogaréu. Já José, a olhar o céu que sombreia de lua a chegança de mais um fim de dia, chega na feira, que, graças aos deuses do parto não partiu ainda, e encontra uma bacia de pitomba madura. “Obrigado, meu senhor de Deus. Meu filho terá a minha cara”, agradece sob o olhar do cavalo a suar. Ao fim da curta história, nasceu dias depois Joaquim. Filho da sina de um talvez... 

Ao som da Cambada de Minas e em homenagem a Isnaldo Piedade de Faria que nos deixou mas permanecerá sempre vivo num lugar que só quando a vida no derrear saberemos dizer.

quinta-feira, 28 de dezembro de 2023

Maurício Pereira na veia

Por Ronaldo Faria


Vozes. Outorgas de cordas vocais e um cérebro que batucada e caduca ao passar dos anos e anéis (pedaços de papéis) mágicos que viram pera, uva ou maçã. Aliás, o que eram tais propostas postas? Nunca soube ou não quis saber. A sapiência nem sempre vem com o poder. Na leniência da vida que ainda resta em réstias, de presto observo o cérebro se insurgir. Que sejamos subversivos e imersivos naquilo que qualquer quilo de vida se sobreponha ao cinismo de enganar a si mesmo. A esmo, naquilo que a aurora ainda virá, surjam espumas de copos, cópulas subterfugias, fugidias loucuras do outrora virá. Entre vestígios e vestes desnudas, com dois dedos descritos, proscritos e escritos, possa chegar a inclemência que a cada rasteira que a vida dá nos demove de dor e Deus dará. Com as Orquídeas Selvagens, Itamar Assumpção, mostra que a cada milagre pode surgir um novo milagre. Se amanhã surgir um vinagre, balsâmico, já está bom.

terça-feira, 26 de dezembro de 2023

A ouvir Nara Leão

Por Ronaldo Faria



Januário chega e, casa depois de uma noite que vazou a madrugada sem pensar.
-- Minha nega, como diria o poeta, vim do samba, renega o que foi...
-- E eu com isso?
-- Dê um tempo. Ao menos entenda o alento que nem o poeta mais bêbado dá...
-- Poeta, como dizia a música, tem que morrer. Não serve pra nada. Alguém vive de poesia? O caralho!
-- Tenha calma, tente entender...
-- Aqui no barraco você não tem lugar! Vá procurar uma mesa de bar pra deitar.
-- Que coisa mais triste: dedo em riste a mandar o teu homem para outro lugar.
-- Outro lugar é o cacete! É aonde, a partir de agora, estará.
-- Mas, como assim? E a ressaca matinal, quem vai curar?
-- Quer saber, vou falar bonito: ela foder-se-á.
Januário não tem mais como responder diante de tal figura de linguagem. “Onde ela terá aprendido tal forma que nem eu sei o que será?” Consternado, calado, alvejado pela língua pátria, calcinado de tanta certeza da mulher ainda amada, sai a descer o morro. Passa pelas biroscas e sequer sabe se vale parar. Do alto de um fio em gato, uma pomba, só de sacanagem, caga tardiamente na sua cabeça. Para a desgraça da vida não precisa nem de sogra ou vizinha... 

sexta-feira, 22 de dezembro de 2023

Ao som do erudito, dito por não dito

 Por Ronaldo Faria


Escrever, pensar, escrevinhar. Viver cada minuto preso em segundos e, ao fim de tudo, continuar. Ensaiar um périplo de emoções, subscrever epitáfios, desdenhar. Viver. Remover terras e montanhas de nós mesmos. A esmo, crescer e definhar. Num trem a cruzar terras, céus e luar, um resto de terra e outro tanto de mar. Quiçá, alguém a submergir e adernar em si. Às próprias loucuras naufragar. Nalgum porto uma boca amiga irá abocanhar o que ainda restar. E surgirão beijos cansados, corpos amargos, soluções de algo. E assim enfim, no fim de mais um dia, a fria melancolia se porá a avivar. Na sublime ternura da loucura, a chegança de uma fumaça irá apitar... Que um amanhã ainda possa chegar. 

(Sobre a foto do Leandro Ferreira)


quarta-feira, 20 de dezembro de 2023

Mistureba na fila do Spotify

 Por Ronaldo Faria


“Amanhã eu comerei salmão e macarrão. Logo. Recupero do porre de hoje”, pensou José que sabe começar, mas não tem o despertador de parar. Vai ao espelho ver uma espinha que teima em querer sair. A puberdade há muito já tinha partido. “Puta que pariu, só me faltava essa”, pensa entre querer aceitar e odiar o ardil. “Agora não tem jeito. Da música que vier na fila chegará um pensamento rarefeito.”
“Lô Borges em choro? Novos Baianos a por o sol a se por?” Coisas mil a fervilhar e germinar no santo que baixa para escrever nesse cavalo deveras quase embriagado e incapaz de dizer de onde vem tanta ebulição. Logo abaixo, no chão, algum ser, de antemão, fluiu na eternidade da idade para confirmar que a verdade não condiz com a saudade. Hoje, em sonho, alguém voltou para uma louca orgia refeita.
Na lista, logo chegarão Jorge Mautner e Zé Ramalho. Como diria o narrador, haja coração! Nas teclas diante da vista, um branco que não precisa mais de branquinho ou durex para cortar com régua e depois colar os erros cometidos no espaldar da escrita formal. “Ainda bem que os tempos mudaram.” Na playlist, Ary Barroso. “Ao menos o Brasil é uma profusão de ritmos e sons que em lugar mais nenhum há.”
Na métrica ou rima tresloucada que o álcool traz, o som absorve a crença de que a demência é coisa de receituário médico. No ilusionário porvir de letras e troças, tretas, que fique a incerta verdade de que o agora é o passado que se foi, o presente que não há e o futuro que brinca de nunca chegar. E o que logo esperar? Waldyr Azevedo, Elomar e Itamar Assumpção. Vale parar aqui ou a loucura vinda esperar?
 
Feito menino, busco ainda o meu destino...


segunda-feira, 18 de dezembro de 2023

Sivuca e Rosinha de Valença

 Por Ronaldo Faria

 

Onde juntar duas virtuoses num só lugar? Hoje, no céu. Um dia, porém, estiveram juntos... Afinal, se não houver beleza nessa Terra, não valeria a pena viver.
 
-- E aí, Mané, vai aonde?
-- Vou lá no bar do “Esconde da Véia, Data Vênia”, tomar umas e algumas. Vamos.
-- Estou mesmo coçando. Estou nessa.
A tarde ardia e fervia. Pedia goles e goles, desses que embriagam até gaitas de fole.
-- Vá entender esse tempo...
-- Estão dizendo que é o fim.
-- Será? Se for, estamos umas duas dúzias atrasados.
A rua, cheia de mães que carregavam os filhos de volta pra casa, fervilhava de suor.
-- Você viu o Damião?
-- O que aconteceu com ele? Largou o Cosme?
-- Melhor: ganhou no bicho. Deu cobra na cabeça. Valeu sonhar com a sogra.
A risada dos dois irrompeu o lugar. Nas casas, cheiro de janta que ainda vai chegar.
-- Ô Seo Gumercindo, manda a que está nos trinques pro senhor levar!
-- E nada de lápis maluco, que marca duas no lugar de uma...
-- Isso. Só o tomado que entrar na garganta santa!
Sentados à mesa, feito senhores de seus destinos, vararam a quente tarde caída.
-- Porra, que bom que existe boteco no mundo. Não fosse, a vida entornou-se.
-- Sem dúvidas. Seca só no sertão. Seca de cerveja, nem com falta de oração...
-- Juntar dois em retidão é agradecer a Deus por tanta comemoração.
No derredor, o sol já foi dormir. Agora é convencer a lua a aceitar tal vastidão.

sábado, 16 de dezembro de 2023

Mestre Pixinguinha ao fundo

Por Ronaldo Faria


Pixinguinha era o tema, abrupto, largado, desvairado, como um poema. Sob uma mangueira que se derramava de galhos e folhas no quintal suburbano, Florípedes era como uma flor, aquela que seus pais, num augúrio ou delírio, propuseram no nome. “Flor boa fosse, não teria tantos espinhos”, se lamuriava. Seu sonho era ter sido Berenice ou Veridiana. “Isso sim é que nome de gente.” Longe da casa caiada de branco, o trem apita a dizer que passageiros cansados e suados estavam a sonhar com o fim dos seus fardos.
Na composição que rodava em trilhos velhos e dormentes, João se segurava com força para não cair a cada parada brusca. Se bem que, para ele, tanto fazia como tanto poderia fazer. Se caísse e quebrasse a cabeça ou um osso, ficaria encostado no INSS. “Férias, mesmo que hospitalizado”, até sentenciava. Mas, melhor não. “Os caras atrasam pra pagar e eu não teria como me virar.” No vagão, o crente demoniza a vida para conseguir um ou outro que quisesse comprar adiantado um lugar no seu etéreo e inexistente céu.
Ente ambos, uma estação carcomida na laje exposta de ferrugem. “Essa merda ainda dar última página em jornal”, resmungava o chefe da gare. Um ou outro vendedor do churrasco que teimava em miar cada vez que voltava para o fogo, a criança com o nariz a escorrer, o homem que dorme no banco a ressonar a vida que nunca terá. No lugar, bem longe do além-mar, Florípedes e João não sabiam sequer que um dia poderiam ser um só. Para emendar logo o fim, ela foi dormir e pesadelos ter (“se eu fosse Berenice ou Veridiana iria dormir como princesa”, ensejou) e João estava entre as vítimas fatais que passavam na roleta quando o teto desabou. Esse sequer pensou.
-- Eu falei, eu sempre falei que essa bosta um dia ia despencar – vociferava o funcionário da estação, cercado de repórteres a falarem da falta de planejamento e omissão.

quinta-feira, 14 de dezembro de 2023

Glenn Miller

Por Ronaldo Faria

 

A orquestra tocava sem parar. Paralisados no seu mundo próprio, os casais giravam no salão a cruzar pernas e mãos. A big band se bandeava entre notas e partituras, nas lamúrias do maestro, destro, que buscava na esquerda a melhor sonoridade do lugar. Devagar, a divagar, Solange, só em si e longe, imaginava o que os roteiros da vida não trazem de volta. Seus amores, suas dores, os odores das rosas recebidas, as bebidas envolvidas em lábios molhados e futuras feridas do coração. A ilusão da tresloucada saliva a correr todo o corpo em lascívia. Para ela, os trompetes e um perdido sax eram bem mais em si.
-- Ouvi o murmurar de uma dama sexy?
José, que do outro lado do salão bebia um gim com tônica (com o gim dobrado e chorinho), chegou devagar à mesa onde Solange vivia seu mundo. Antes, ficara sem saber se devia ou não. “Melhor não me perguntar muito. O máximo será um não”, pensou. E lá estava. Ela era diáfana, como deveria, nos Anos 60, ser. Parecia nunca ter saído à rua quando os rios do sol teimavam em queimar as peles em orgia com o mar. Como uma deusa virginal, dessas que se pede de presente a Papai Noel no Natal. “E não precisa nem de papel especial. De pão ou de jornal já serve. O importante será o que está nele”, dizia.
-- Por acaso eu te chamei para vir aqui?
Solange, com um cigarro mentolado a adormecer em brasa no cinzeiro, olhou fixa nos olhos de José. No palco, a orquestra introduzia I an Sentimental Mood. O homem, após perder o chão de si, mal sabia o que dizer. “Quando uma dama está só, cabe ao cavalheiro ter a mínima compostura de saber se deve ou não importunar.” A frase serviu como um punhal no peito de José. Cravou tão fundo que qualquer coisa que dissesse seria em vão. Pensou em pedir desculpas mil, dar volta e mais outra meia e retornar ao lugar do qual nunca deveria ter saído. Mas, de repente, ouve descrente: “Puxe a cadeira e sente”.
Ficaram horas a conversar. Besteiras mil, como um ardil. Ouviram Over The Rainbow e dançaram colados Moonlight Serenade. Ao final de My Reverie estavam de bocas coladas, lábios perdidos em algum acorde que a orquestra tentava fazer dormir no sol que acordava entre um Cadillac estacionado irregularmente e Fuscas e Gordinis. “Casal, me perdoem, mas teremos de fechar. O comércio normal já está a abrir”, falou carinhosamente o garçom. Entre um cambalear ou outro, saíram mais felizes que trôpegos. Do céu, pássaros entoavam uma canção própria de verão. Quem o visse a dançar, diria: o amor está no ar.

terça-feira, 12 de dezembro de 2023

Doideiras do Spotify que saberemos onde irá dar...

 Por Ronaldo Faria


O que escrever ou descrever quando a seleção musical vira um samba do escritor doido? Mais uma pergunta dessas que besunta o cérebro e se perde na noção do tempo, das latas entornadas, das frases parafraseadas. Para um poeta que segue as partituras musicais, naquilo que as tantas partidas dos dedos dão, o que essas músicas poderão dar ou darão? E agora, seguir ou parar? Ser ou não ser, diria o diretor de teatro frustrado a antever o miserê. Pensei em Nelson Gonçalves para terminar a intrínseca e germinada lucidez, mas deixei a seleção girar. Nos alto-falantes, Noel Rosa. Agora uma ode a Vinícius de Moraes. Mudar pra quê? Que a trilha sonora de nossa vida restante seja esta, não o inodoro sextante que se antecipa. No céu, mesmo sob o negror e feita com cola de arroz na noite sem lua, uma pipa subirá e sublimará o amor. Como diz Bethânia, ela é carioca da gema. Qual delas? Não foram muitas e nem poucas. A todos saibam, meus lábios beijaram cariocas nascidas na Cidade Maravilhosa, entre noites de velas, viagens em avenidas, cantos e recantos de crenças esperançosas, realidades místicas e misteriosas. E como o tempo ao vento, tudo desandou e passou. Nas vivências, querências, demências, ausências, premências, tudo foi e ficou. Na dança das cordas, como disse o Poetinha, onde andam vocês?
 
II
 
Com Choro dos 3, Tico-Tico no Fubá. Só pra constar.


sexta-feira, 8 de dezembro de 2023

Pedro Salomão 2

 Por Ronaldo Faria

 


Já fazia meia hora que Horácio esperava Cleonice. Ainda bem que o frio e a chuva fugiram da previsão prevista e se esconderam em algum lugar. Certamente ficaram a se amar. Numa mistura de gélida paixão e folhas de um roseiral qualquer a se despetalar. Horácio, logo ele que disse minutos mil antes que não iria escrever. “Essa tentação de teclar será a proximidade da morte e o desejo de falar? Ou apenas um flanar de penduricalhos de emoções?” Ele não sabe responder a si mesmo e nem aos poemas do pernoite sagaz e fugaz.
Horácio, quase patético como um ser que ama aquilo que é o antônimo antagônico no antropofagismo de cada um, vira e remexe seus salamaleques. Relembra do passado, transita entre a loucura e a lucidez. Na desfaçatez de um tempo onde o pouco era muito, cavalga na madrugada tragada de tragos e afagos múltiplos e místicos. Multiforme, numa metamorfose que nunca se faz ou se fez, vira um andarilho do Vale de Inês. Mas não era Cleonice a esperada? Como diz o ditado, a fila andou no desandar do pérfido andor.
Ignóbil sobrevivente de alguém vivente e breve, desses que conta os dias com ampulheta que nem areia tem, vai a bagunçar seus momentos que fritam em tormentos, esculhamba lembranças que se desdobram em torvelinhos. É apenas ele. Um pedaço de limiar de um em dois. Partido em décadas atrás. Na frase mal dita, maldita quiçá. Que fez e desfez a tez para um recriar de olhos que já não se enxergam, flácidas peles que brincam de vencer o tempo como as árias do compositor que não sabe diferenciar partitura de partida.


quarta-feira, 6 de dezembro de 2023

Dona Ivone Lara e a santa Iara

 Por Ronaldo Faria

“Sorte ou morte? Onde existirá o limite que existe e define a definitiva e imprecisa lasca que há entre o trincar e o quebrar?”

Manduca se perguntava há algumas décadas como era estar e viver nesse vendaval que a brisa de fora não fazia nem pétala de roseira tremer e ser. Intransmutável, seu tempo corria milésimos que os anos vindouros ou findos não sabiam nem sequer contar. Os dedos das mãos eram poucos para recontar. No mar, longínquo e raso, apenas os tolos de amor morriam afogados a pedir por clamor. Marinheiros da tristeza e da solidão nunca viram seus barcos lá se perderem. As sereias, brejeiras e faceiras, sequer chegavam perto da areia. Sabiam elas que a poesia a tudo espanta, menos a dor. Em meio ao mundo, nascia nalgum lugar uma flor.

segunda-feira, 4 de dezembro de 2023

Com João Cavalcanti

 Por Ronaldo Faria 

 

Põe óculos, troca óculos, ajeita óculos numa espera de ósculos que foram, vêm ou virão. Na poesia que entardece, a noite aquiesce e se aquece. Na brancura da ternura da poesia ainda não escrita, o imbróglio que se desmancha na mancha que não some entre sabões em pó e um pós caminhar de estrada onde a terra sucumbe aos pés perdidos e ardidos de sol, urdidos em lençóis. Entre a cama, o drama e a trama, Cesarino, feito quando o vaqueiro, de facão ligeiro, rompe a carótida do bicho, se embrenha feito vaca prenha que toma banho num poço qualquer à espera da cria logo chegada. Nas letras da vida abstrata de quem trata as troças do mundo como um vazadouro de vertedouros, sucumbe a si mesmo. A esmo, se esmera em aços que brincam de brilhar em esmerilho. Parte de um todo que não tem início e nem meio e nem fim, vive em parcimônia que cheira amônia. Sentencia e chantageia o tempo, vive trôpego e banal como fosse marginal, desses letal ou/e coisa e tal. Num aforismo que cabe num quadrilátero enfiado num triângulo que existe no retângulo que a esfera faz, seguimos em rodopios e centenas de pios do pássaro preso na gaiola de gravetos. Feito substrato de quem espera receber um trato, o tratado do tempo que blasfema ao destino. Em desatino, uma tina de álcool se derrama à madrugada concebida.

-- Que ideia mal concebida. Acho que a nossa cabeça está mesmo fodida.

domingo, 3 de dezembro de 2023

Doidivanas noitadas

 Por Ronaldo Faria


-- E aí, troca os copos?
O garçom pergunta solícito e amigável.
-- Por favor. É tudo fermentado, mas entre cerveja e vinho não há muito tratado.
A voz de Adamastor soa retumbante no salão.
Na fria madrugada tragada em si mesma, ensimesmada de tanta coisa para contar e escrever, a vida chega enviesada e formatada, onde ninguém poderá mudar. Mas o que é a vida? Entreouvida na contemporaneidade perdida, nada mais é do que segundos ungidos e múltiplos no girar de uma bola cheia de terra e água no universo a vagar.
Copos trocados, campesinos longínquos vibram pelo seu trabalho no Chile um reles notívago sorver. Ao derredor, haja dor e dormência, iníqua sofrência que só os anos de hoje trouxeram ao dicionário.
Adamastor, que se fosse música seria um adágio em mi menor, se é que isso existe, espera que a esfera que roda acima da sua cabeça vire algo como uma fera. E pule e pulule. O amanhã? Haverá? Em arabescos e afrescos, frágeis e fúteis lembranças adentram em sons vaticinais. Na vitrola, agora, Vinicius de Moraes. “Na noite, nos bares, onde anda você?” Senão, “a vida é a arte do encontro, embora haja tanto desencontro na vida”. Desencontrado, o poeta profetiza a efeméride tardia e vadia. Nos próximos dias, saber-se-á, a vida entrará no seu quadrado.


sexta-feira, 1 de dezembro de 2023

Papo de poeta ou poetiza, no piano

 Por Ronaldo Faria


-- E aí, Lívia, podemos ir pra minha casa?
-- Acho melhor que não.
-- Mas eu moro sozinho. É isso mesmo? Vai rolar só uns beijinhos?
Lívia, dessas mulheres que se pode chamar de lívida ou senhora de si, dá o ultimato: “Não. Te ligo”.
-- Tudo bem. Até quando der outra vez.
Na voz de Paulo, o pulular de quem não sabe sequer o que é parar de pular ou ulular. Perdido, liga o carro e arranca nas rebentações de além-mar.
-- Boa noite, senhor Jairo...
Em casa, Lívia, abre um vinho, liga a tevê e vê a derradeira ou próxima reprise que se antevê. Mulher plena, dessas que o poeta mais velho a colocará no patamar de deusa efêmera, não precisa de pênis, corpo peludo ou ser impoluto para viver. Muito menos emplastado. Dona de si, diáfana naquilo que o parnasiano mais tresloucado escreveria, apenas se basta. Na varanda, uma pomba dessas de varanda ou rua, troca suas penas.
-- E aí, Bastião, valeu!
Paulo chega ao apartamento apertado que algum deus lhe deu. Vai da entrada à sala e o quarto num segundo. Depois, mijar célere no banheiro imundo. Abre a geladeira e vê a cerveja derradeira. “Devia ter comprado mais.” Liga a televisão e desliga logo. No celular, o algoritmo diz que uma velha amada está a ligar. Desliga o aparelho, acende o cigarro e se põe a pensar: “Porra, a Lívia bem que podia querer topar somente poder vir trepar.”
Na cidade que é uma efeméride constante, inconstante em seu limiar, a noite percorre os corpos que acordados ou adormecidos fizeram o dia trilhar. Lívia e Paulo, acomodados no seu sonhar, são apenas sombra que a sinfonia noturna que se beija na madrugada singular faz e refaz para mais um redescobrir que a vida é um constante nunca chegar.


quarta-feira, 29 de novembro de 2023

Piano ao fim do álcool

 Por Ronaldo Faria


 

O copo está quase vazio. Do balcão o garçom diz que já vai fechar. No piano, o músico pede, aos prantos, o fim do expediente no bar. “Tem barbitúrico?” A resposta é que não há. E agora, onde as mágoas do amor despejar? Over The Rainbow. Como que por algo mecânico, o pianista vira apenas artista de boulevard.
Os poucos casais que ainda se postam nas mesas que ninguém mais quer limpar, descobrem que o gelo que virou água não irá se repor. Se ele conquistou ou não a amada, só a fada da foda noturna/madrigal/marginal irá dizer ou argumentar. Se ela conquistou o seu desejo só o bruxo do ensejo/sobejo/casual falará.
Na avenida que prenuncia um tanto de orgias e outros poucos ou muitos tantos de remédios para dores de ressaca, cabeça e tristeza, carros se volatilizam na poesia. Flanelinhas correm atrás dos trocados tresloucados que bêbados lhes darão. No orfeão da vida, premida e prenha, perdida, os faróis piscam como clamídias.
O último freguês abre a última garrafa. Seu ser solitário ultima o alvorecer encardido e vazio na cama que nem box é. Paga a conta e conta quantos passos dará até o seu lar. Alardeia, em devaneios, os meios que amanhã terá. Talvez uma vez irá esbarrar com o amor na rua, ou quem sabe um carro louco o atropelará.
À saída do resistente, o dono do bar cerra as portas. O pianista, vulgo artista, agradece. “Sobrou algo na cozinha?” – pergunta em voz rouca de quem cantou de Sinatra a La cumparsita. O cozinheiro diz que sim. Tem batata, arroz e algo chinfrim. No mundo que se esvai, o tempo agora apenas se distrai.


segunda-feira, 27 de novembro de 2023

Ao piano de todos nós

 Por Ronaldo Faria


Um piano geme nos dedos daquele que mal consegue beber o seu uísque entre uma música e outra. Que mal fez quem tentou fazer da música o seu labutar? Poucos o ouvem. O som das mesas é apenas gracejar ou conquistar o final e letal. Meio que esquecido num canto de bar, adormecido e quase carcomido em teclas pretas e brancas, o piano gorjeia notas musicais feito sinais que apenas o amor deixa fluir. Como beijos em solfejos, peles nuas e suadas a se embrenharem nos lençóis que branqueiam o negror que vem de fora. Como mãos de dois amantes, passeiam sem limites a um lugar para chegar. Tocam seios róseos e brancos, olham olhos fechados ao acalanto de um gozo seminal, sem embrenham em pelos engrenhados de barba e cabelos genitais. No ar, As Time Goes By.

E o piano continua à espera da mulher nua. Brinca de acordes (sem acordar quem já dorme), notas que denotam o arfar de ambos, partituras dessas que se partem e desapartam brigam de pernas e braços tentando o outro engolir e conquistar. Lá fora, o mar arrebenta a santa água benta de sal e acreditar. Na janela cheia de maresia e poesia, insanas paixões serão somente senões. Mas ficarão o calor dos dois, a doidivanas centelha que o amor faz brotar em cada chegar. Quem sabe, na próxima tarde, o entardecer não se faça somente saudade. Na aurora boreal, que nunca avançou um sinal sequer, a mulher lambe o corpo do amado. Embrenhados em si, ensimesmados de um tudo torpe e louco, apenas descobrem aquilo que o tempo soube em teclas de marfim metamorfosear.


sábado, 25 de novembro de 2023

Na forrozada inchada de ciúmes paternais

Por Ronaldo Faria


A viola rasga o espaço que está partido de risos branqueados das donzelas namoradeiras e rapazes enlouquecidos pelos batons cor de carmim que bronzeiam os lábios a se conquistar. Coitados, terão muito que esperar. Quem sabe a vida inteira. As meninas, embranquecidas pelo pouco de sol imposto pelos pais donos de cintos às mãos e ciúmes atrozes, apesar de suas artroses, sabem que dançar um forró colado é coisa que há de se privar. “Painho, é só um chegar junto sem encoxar. É uma dancinha só.” Com olhos vermelhos de aguardente e ódio pelo pequeno garanhão que quer chegar, o velho, a mascar fumo de rolo e bater a espora no chão, só diz um simples e definitivo não. “Esse bosta que vá carpir um terreirão!”

O violeiro, que nada tem com a cena, chama o sanfoneiro pra ajudar. Aí a festa vira um festão. E as coitadas das meninas, de pernas finas de tanto ficarem sentadas sem aceitar uma dancinha, vão vendo o tempo passar até as dez da noite chegar. “Está na hora de moça direita parar.” E lá se iam todas, com seus progenitores a ver uma esperança feminina sucumbir. No salão ficavam os moçoilos prestes a buscar a casa que queimava lampião com celofane vermelho ou o que desse para esquecer mais esse sombrio viver. No palco, sem microfone ou infames, os músicos faziam aquilo que podiam para deixar o dono do forró sorrir. No balcão, Zé Formiga gritava que a pinga estava em promoção final. Era só achegar e tomar.

quinta-feira, 23 de novembro de 2023

Xangai e Elomar

 Por Ronaldo Faria


Incelências se iluminam nos olhos das beatas que rezam com seus terços e véus. As velas a queimarem na capela cobrem de amarelo o tanto que parece e se enaltece negro nas roupas das mulheres com suas peles velhas e enrugadas. Andrajos, homens aboiam o pouco gado que sobrou e a seca ainda não levou. Vão devagar a divagar o despropósito que há entre o irreal e o ilógico. “Nascer pra quê?” - questionava Longuinho. Mas, no sertão da caatinga sem começo ou fim, senão, não há o que se perguntar.

Na estrada de terra e pedra, um ou outro mandacaru, o importante é chegar em casa e ver o corpo de Maria nu. Deitar na esteira, ao cheiro que sobe na fumaça escura do lampião, e criar outra cria que o tempo um dia irá matar. Não há muito no que pensar. A roda do carro de boi a consertar, a burrega com o pouco de comida alimentar, o sonho dela virar grande e leite poder dar. Seu cavalo, quase tão seco quanto o derredor, vai em quatro patas traçar a troça de quem do alto dá vida para fazer o seu bdestino sangrar.
Mas as rezas enraizadas como a última esperança de quem nem sabe o que é dança, saídas de bocas sem dentes e dentaduras, tomam conta do lugar. Próximo, um último poço d’água marrom encharca a cacimba. Gargantas carcomidas de nada esperam nadar entre barro e líquido qualquer. No curral, a égua prenha prossegue seu parto em dor. Ao longe, uma queimada traz de volta e mata a terra que um dia o santo prometeu. Tudo como uma viagem travestida de solidão e redundante solitário lumiar.
Em meio a tanto entremeio, mágica ilusão sonha em brotar do chão. Quem dera e quisera fosse como estrela que vem, brota, aparece e desaparece num céu sem fulgor. No lamento sangrento do porco que é cortado de facão na barriga, a fadiga do boiadeiro que espera que o dono da terra batize outro petiz. No fogão de lenha, o cheiro é de comida que não foi carcomida pela realidade que existe em chiste. No quadro final que nenhum pintor criará, o pouco que, como diria o louco, faz de tudo um lugar.


terça-feira, 21 de novembro de 2023

Malandragem grampeada

 Por Ronaldo Faria


Geovenildo (mistura de Genoveva de mãe e Hermenegildo de pai) cruzou o trilho do trem devagar. Na quentura do Méier, era só uma rampa para outra. Coisa que até o Zé da Muleta Meia Boca conseguiria como fizesse salto à altura em Olimpíada. Tinha acabado de arrancar dois dentes no dentista paraguaio que atende num sobrado encarquilhado onde la garantía soy yo. Sob efeito da anestesia e duas cafungadas, o caminho reto parecia chegada de barco em marina cheia de maresia. “Calma que você logo chega lá”, dizia a si mesmo, nos tantos mesmos de si àquela hora e altura. Vendedores de biscoito Globo e Chá Mate, longe da praia, muambeiros com capa de celular e raquete de muriçoca, trabalhadores cansados de ralar se cruzavam atabalhoados. Para Geovenildo, Gegê ou Nildo aos íntimos, aquilo era um mercado persa. Ou será um persa em mercado suburbano? Com esforço sobre-humano, chega ao ponto desejado. Por sorte, não esbarra num despacho. “Porra, entrega pro santo agora não tem mais cachaça?” Disperso desse mundo, não viu o malandro que corria com a garrafa debaixo do braço. Pensou em pegar o frango, mas ele estava cheio de penas e bem mal passado. Desistiu. “Esse deve dar dor de barriga e pouca sorte”, à conclusão chegou.

Geovenildo, Gê ou Ni para os mais íntimos ainda, pegou o primeiro trem que parou. Conseguiu ao menos subir, meio empurrado pela massa e outro tanto pela sorte que Deus dá aos desvalidos e combalidos, quiçá fodidos do mundo. De pé, seguro pelas outras tantas centenas de passageiros nada fagueiros, foi de estação em estação. Engenho de Dentro, Piedade, Quintino, Cascadura, Madureira, Oswaldo Cruz, Bento Ribeiro. Marechal Hermes e Deodoro. No fim, não tem jeito. “Ô, meu irmão, acorda! Tem que vazar!” Geovenildo desembarca da barca e segue pela passarela para chegar na rua. No centro espírita perto o incenso corre solto. O atabaque ressoa e a Pombajira (diria o Houaiss) gira sem parar. O cambono segura o refrão e Zé Pilintra dá risada. “Entro ou não?” Batizado e confirmado no ambiente, decide ao menos bater a cabeça para o santo. “O que não é mal feito, mal não tem.” Senta no banco de madeira, faz sua oração e pede socorro. “Meu Oxalá, cuida de mim, que te peço tão pouco”. Sai de lá meio torto e trôpego e serpenteia pelas ruas e ruelas, becos e biroscas, pontos de venda de produtos importados de La Paz ou Bogotá. No céu, uma lua redonda se faz rotunda para seu drama sem segunda sessão marcada e a cortina voltar a fechar.

 (Ao samba de breque do Rio)

sexta-feira, 17 de novembro de 2023

Deoclécio no césio da vida

 Por Ronaldo Faria


Deoclécio acordou todo feliz. Esqueceu do ensinamento do mestre Moreira da Silva e pensou ter acertado no milhar. “Agora deu. Não tinha como não dar. Chega de pobreza! Zelinda, pode ir na 25 de Março encher a sacola! Ganhei dez vezes mais do que apostei! Se dei bem!”
Eufórico, crente de tudo, meio demente pelo porre recente, tinha a certeza plena de que sua hora enfim tinha chegado. “Zelinda, hoje eu quero picanha e cerveja de litrão! Nada de asa de galinha e Samba. Vamos ao bar do Camundongo Molhado e fechar a pendura. Agora é só na fatura.”
No seu mundo pouco afeito aos números e afazeres do anotador que molha a mão de quem manda e cobra de quem joga, saiu para a rua todo feliz e cuidadoso com o papel carimbado da PT e da Coruja, da milhar e da centena, pegou o ônibus com passe de idoso, do seu avô Cardoso, e desceu no ponto central. Deu tchauzinho para a moça de boa idade que rodava bolsa na esquina, saudou o homem que dormia sob a marquise e sorriu ao malandro que andava armado, com o berro escondido.
De peito cheio de orgulho, além de oxigênio com gás carbônico que vinha do lado de fora do esgoto que corria a céu descoberto, aberto e sem afeto, parou na frente do Mão sem Braço, chefe do pedaço, e disse resoluto de antes do luto: “Vim dar preju pra você”. Orgulhoso, tirou o papel do bolso e mostrou. “Pode ser em nota alta. Chega de merreca no bagulho”. Perto, um pombo em arrulho voa.
-- Tu tá doido, Zé Ruela? Papo reto, isso aqui foi de anteontem. Hoje deu foi jacaré na cabeça. O burro já passou de ilusão.
Se Deoclécio ainda tivesse coração sobrando no momento, teria morrido na hora. Olhou direito o papel, correu para o poste mais perto e lembrou que sexta-feira já tinha ido. Usou de novo o cartão do avô, seguiu cabisbaixo pro barraco, nem via a paisagem de trilho de trem e casa sem reboco. Ao chegar, ouviu um barulho nos fundos, do lado do córrego seco, e lá estava Zelinda, com um churrasco completo e repleto na mesa, barril de chope às pampas e os vizinhos a gritarem que Deoclécio era o Jesus do presépio. Feliz, o português do Camundongo Molhado segurava um camalhaço de dívidas mil.
 
(Ao Bezerra da Silva)


quarta-feira, 15 de novembro de 2023

Se aos depois dos 80 chegarmos, cheguemos assim

 Por Ronaldo Faria


Encarquilhado, defenestrado, com alguém que nem a gente (em mente) a dizer na fila do ônibus, “por favor, pode subir”. Carros pararem nas ruas e os motoristas com um gesto de afeto a mexerem as mãos num “pode passar”. Gumercindo estava assim: entre o começo do fim definitivo e o fim efetivo do começar a dormir a sete palmos. “Nem fodendo, quero ser cremado. “Do pó viestes, ao pó voltarás!” Do alto, se alto ou algo existir, Deus briga por sua alma com Satanás. Na rua, um samba de pagode eclode.

Numa tela dessas que fica ligada nas vitrines de loja popular pulula um vídeo do Ney Matogrosso. “Quero chegar aos 82 que nem ele. Lógico que não terei a grana que ele tem, mas me basta o seu pique. Não estar babando na fronha.” O pensamento de Gumercindo se espraia pela noite que se embrenha numa futura madrugada tragada de mais um dia. E brota de notas que se denotam ao silêncio quieto que surge feito grotão escondido num pequeno senão. Como a grota em Angico que matou Lampião.

Sonoro, bêbado, embriagado, feliz por ter comprado dois reais e vinte centavos de bala de canela, Gumercindo se refastela nas vielas que separam seu dilema da trama grandiloquente que sobrevive sem trema. Na trama subsequente (e cadê a trema de novo?), está no barraco a ferver um ovo. Beberá um gole de pinga barata e logo dormirá naquilo que deitar de bruços vale um largar. Ney canta que vale romper tratados e trair os ritos. Na vida de caminhos tortos, que sobrevivam os poucos e derradeiros sangues latinos.

segunda-feira, 13 de novembro de 2023

Ao som chacrineado

Por Ronaldo Faria

 

Na discoteca que se entrecorta no palco imaginário da imaginação cortada por devaneios e solidão, chacretes rebolam como se fossem um avião em turbulência. Sentado defronte da tevê a cores, não 4k, Climério, deletério do mundo real, viaja a cada rebolada sinuosa de Cléo Toda Pura, Esther Bem-Me-Quer, Índia Potira, Lucinha Apache ou Sandrinha Radical. Enlouquece com Mirian Cassino, Sandra Pérola Negra, Pimentinha, Loura Sinistra e Suely Pingo de Ouro. Não se contém ao ver Graça Portellão, Valéria Mon Amour, Fátima Boa Viagem, Beth Boné e Lia Hollywood. Por favor, não falem de Rita Cadillac... Assim é querer matar do coração e tesão Climério em pleno porvir.

Nas luzes que emanam da televisão, trevas inexistem. Se persistem, só será após o corpo dormir e a irrealidade da mente continuar a vibrar. “Vocês querem bacalhau?” Certamente Climério gostaria de estar no auditório para pegar um bacalhau inteiro. Valeria o peso na testa, se ali pegasse, e o cheiro no ônibus. Se o cobrador viesse a reclamar, que vá buscar os seus direitos imperfeitos. “O Velho Guerreiro que mandou pra mim, otário!” Feliz, seguiria seu rumo sem prumo a tentar aprumar a direção que vai em direção contrária ao mar. Num trilho de trem abortará seu infeliz sonhar. Cairá na realidade promíscua que só as coxas e peitos das chacretes ainda enaltecem. Dormirá feliz. Do sofá para a cama, num quarto e sala, o caminho é rápido como um triz. Na vida real, Chacrinha, a buzinar o pseudo céu, se céu de fato existirá, apenas rirá. Ao fundo, no mais profundo limiar, alguém grita chamando T(h)erezinha.

domingo, 12 de novembro de 2023

A frevear

 Por Ronaldo Faria

 

Esperar para antes não vai dar em nada, assim como a lua só beija de esgueiro a madrugada. Reunidos, os foliões e foliãs folheiam na lente da máquina que espoca um flash a quebrar o desfile que logo chegará. Na rua, um frevo desce a ladeira para logo depois pedir para subir. Mas, no brandir de um papel, tudo virou fel...


quarta-feira, 8 de novembro de 2023

O violão da mulher em corpo de...

 Por Ronaldo Faria

 Que notas sairão do violão? Onde o pinho e o corpo nu da mulher se unirão para tocar os acordes que acordarão o mais insone dos homens? Em que dedos e solfejos transbordarão de prazer ou ilusão a maior das solidões?


O sorriso perdido de Isabel faz o mais rígido bedel esquecer que há ordens a dar. Disciplina? Quem de forma real e lógica a saberá agora criar? Na cabeça de Adamastor, velho e senhor, desses que os cabelos já deixaram a cabeça a queimar e os dentes esqueceram de ficar, era apenas ela, Isabel, que poderia ser a mais assassina abelha que tudo faz, menos mel.
-- Mas como você foi se apaixonar por ela, homem?
-- Não sei. Aconteceu. Nem eu queria, mas meu coração entrou em orgia. Tardia, a paixão desabrochou. E tudo queimou como gasolina.
-- Agora você está aqui, debruçado nessa mesa suja de bar, a babar. É, meu amigo, a coisa está feia. Ô Manoel, traz mais uma do barril e outra pra molhar!
-- Vos levarei, mas mesa suja tem a destratada da sua mãe!  - responde do balcão o português.
A verdade é que o sorriso de Isabel, sua pequena silhueta, tudo aquilo que ela mostra e esconde, fizeram Adamastor admoestar a si próprio. Impróprio no inglório trato de ser sóbrio, onde a sobriedade há muito rompeu com a idade, ele apenas, como transeunte de uma rua vazia, dessas que só as madrugadas mais frias fazem surgir, era um ébrio sem par ou lugar. No urgir de um sol que não chega, se aconchega nas lembranças que a destemperança traz. É só mais um a mais a chorar. Isabel lhe roubara a razão. Hoje, Adamastor nada mais queria ser do que apenas um silencioso violão...
-- Ô Manoel, desculpa por ter falado da sujeira. Traz mais outras. E, se puder, um pano de prato pra limpar o que eu disse sem querer falar!
Do bar, um palavrão lusitano destoa de tanto recordar. No alto, alteia um imenso luar lunar.


segunda-feira, 6 de novembro de 2023

No chorinho embriagado de notas desbotadas e desbragadas

Por Ronaldo Faria


Bebamos. Bebamos ao átrio onde o espaço seja de copos mil, conversas delineadas entre a razão e a loucura, lancinantes pelejas onde haja vencedores e vencidos, em que cada um transcenda centilitros e mililitros de performances perdidas no tempo e ventres desnudos em que apenas se sonha. Bisonha, a noite profanará lampejos de um dedilhar de violão, um som de cavaquinho, um pandeiro perdido numa esquina qualquer, todos para profanarem o silêncio que dorme junto ao corpo da mulher. Talvez, logo além, uma voz. Um lábio delicado a bordar de beijos a promíscua escuridão, tão pueril como desejo mais insano de caminhar a noite como fosse ela mero pernoite numa praça de casais a se acariciarem no luar.

Esperemos. Esperemos que o inerte colapso da mão que afaga o cão na esquina seja a mesma sina da amante que, desvirginada, espera reparar seu erro com o toque de uma varinha de fada. A luz de lampião, que teima em fugir dos postes enferrujados pela chuva fina, se enternece ao viver em reflexo nas gotas de suor que caem do rosto do guarda que corre atrás do menino que roubou a maçã do feirante. Nas pedras de paralelepípedos quadriláteros e escuros, um brilhar que se consome no barulho dos Fordes que, igual aos seus donos, são tais  e têm bigodes. No botequim, onde garçons e garrafas mil se misturam e sobem e descem, corre e vazam, as decisões plenas ou prósperas esperam apenas a hora vagarosa passar.

Possamos. Possamos, pois, passear em notas e cifras, acordes a nos acordarem da letargia que chega logo depois do décimo copo de pinga. Feito Posseidon, dominemos nossos mares bravios que têm como porto o corpo da amante, vençamos terremotos que teimam em existir nas ladeiras, eiras e beiras de quando o sol ainda não nasceu, impeçamos as tempestades que desaguam entre copos a mais e bílis de menos, e domemos nossos cavalos que teimam em correr por pradarias de asfalto onde carros refletem o perigo do fim. Protetor das águas derramadas em garrafas vazias e auxiliar dos marinheiros de última ou primeira viagem, que o deus grego de cada um apenas descanse um dia no fotograma perdido entre imagens mil.

sábado, 4 de novembro de 2023

A ouvir Pedro Salomão

 Por Ronaldo Faria


Perdi o texto anterior. Erro meu ou da poesia? Certamente meu, entregue a nada a viver. Como diria o poeta em verve, “a poesia não serve pra nada”. Como no passado, corta a lauda, reescreve, cola tudo, faz de conta que o papel é algo a se refazer e revisar. E era. Mas, agora, como reaver aquilo que um dia longínquo se pensou? Não há como. No anacrônico pincel do tempo não existe voltar atrás. Aqui, a boca insana só chama outra boca escondida numa  traquitana esperava a se esgueirar para beijar...


quinta-feira, 2 de novembro de 2023

Vininha, obrigado por me deixar envelhecer

 Por Ronaldo Faria


Em fotos gravadas e cravadas no coração, fatídicas realidades do tempo, vemos o quanto estamos velhos. Quer queiramos ou não, o tempo, como disse o poeta do Baixo Leblon um dia, não para. Mas, agora, a ouvir Vinicius de Moraes, aquele que me lançou nessa vida de tentar escrever, redescubro que ainda não é o fim. Talvez interregno, quiçá um menino.

O quanto ainda pudermos sonhar, relembrar e nos embriagar, o façamos. Possamos ainda fazê-lo. Afinal, entre erros de português e alvissareiras mensagens do além, saibamos antever o fim que se interpõe no pouco ser. Mas, onde anda você? Saber-se-á. E quem irá querer saber? À saudade terna e fraterna, a irrealidade de adorar algo que ainda virá?

Se Vinicius vivo estivesse se perguntaria: “Morrer de gordice ou cirrose:?” Que a segunda opção esteja certa além da conta. Que no sangue da clínica de reabilitação do Poeta e Grande Otelo haja sangue no álcool. Afinal, para nós, meros mortais, o que poderemos fazer ou revisar as mentiras que a poesia tenta nos impor e fazer verdade na mentira maior?


terça-feira, 31 de outubro de 2023

No mundo dos Mutantes

 Por Ronaldo Faria


Não sei se saberei falar dos Mutantes agora. Afinal, não estou numa ágora. Falta-me a praça pública e a mulher púbica para grassar. E nem Rita Lee há mais. Mas, afinal, o que hoje haverá? Talvez um mar distante, uma saudade equidistante, um náufrago se afogando errante? Quem poderá delimitar a fátua linha entre a verdade, a sanidade e a sina? Torquato Neto naquele momento final teria razão ou não? Quem, em sã consciência, poderá responder ou viralizar (leia-se que o Word do Windows 11, talvez já velho, não aceita a palavra viralizar)? Como os tempos mudaram e se transmutaram. Mas, bata macumba... Bata incomensurável e afável a quem lhe quiser. Sejamos nós apenas um nó a mais entre a vida e a finitude. Na amplitude da efeméride proscrita e aflita, possamos procrastinar o que ainda nos resta, sem pressa. À inválida e vazia panela da eternidade não façamos filé mignon onde carne de terceira tiver...

sexta-feira, 27 de outubro de 2023

Musicando inúmeras versões de si mesmo

Por Ronaldo Faria 

Devia ter tido, sido, vivido. Ou ao menos assim dizia o poeta que sai dos cinco autofalantes. Ou não dizia? Terá sido delírio? Perfídia, som de mídia. Na promessa de estar junto nem que seja num asilo, a ensandecida magia. No auxílio de si mesmo, o homem profetiza que a vida é apenas uma falácia. No jardim brota uma acácia.

 


João manda um beijo para Emília via virtual. No mundo atual, pouco mais há que se fazer. Talvez uma caminhada tresloucada, um romance cheio de histórias realizadas, frases nunca ditas, desditas ao vento ou o tempo, frágeis por apenas serem frases. Mal ditas, malditas, transversas e finais. Nos algoritmos dos novos tempos, temporais de ventos mil que nunca saem para somente, em semente morta, realidade ser.

João sabe que cada movimento seu é algo a esmo, nas efemérides de quem é triste. Que seus desejos e ensejos nada são ou serão. Talvez um dístico que não escreveu, mutilado. Um fado tardio, um tango execrado no salão. A incerteza múltipla da solidão. As inverdades intrínsecas na vazia estrada da imensidão.

João, cercado de fotos e fantasias vadias, se transforma num ser amiúde, desses que a gente vê a cada passo que dá nas ruas quentes e secas. Nas vielas da favela, a singela figura da mulher se faz e desfaz. Diante da birosca, na esquina que barricadas ainda deixam ter, um bêbado ou outro finge ter a lucidez que já se foi. Quase tropeça no meio fio que ainda fia a vida que depende só de uma queda para esvair. Espera o Uber que o levará de volta na insólita estrada para o chegar que é só partir. Trêbado, submerso na sua imensidão, posterga ver os poucos pórticos que ainda existem e resistem entre a realidade e a solidão. No mais, só servidão. 

quarta-feira, 25 de outubro de 2023

Sob o som de Nando Reis

Por Ronaldo Faria


Os olhos aos poucos falham. Haverá farofa a ver logo ali do depois? Na troca de óculos constante, a frustrante certeza de que falta pouco no oco viver. A incrustrada verdade que voa a saber que não haverá volta. Na blasfêmia da rotina de cada segundo, a falta do tal centro geodésico.

Liberto de vestes etéreas, sem, porém, vetusto ser, Camilo caminha em si mesmo. Dá voltas nas tantas curvas, esquinas, ruas, avenidas, estradas cheias de pó da saudade. Sua roupa tem rasgos do tempo, costuras feitas a mão, dessas que a gente fura os dedos com agulhas de costurar feridas e buracos que nunca fecharão. Quase tosco, antropófago de si mesmo, suicida de uma história, vê que o cérebro, aos poucos, está a apagar. Hoje, sai a vagar claudicante e arfante por não ter aonde chegar. Entre pesadelos enegrecidos e desejos proscritos, vive o pouco que decidiu sobreviver.

-- Até quando, me perguntaria o Armando...

O tal Armando era o último amigo de Camilo. Conhecido de anos muitos atrás, desse tempo que hoje apenas a saudade traz. Não fique, além disso, porém, raro leitor. Armando há muito já se foi do mundo dos vivos. Talvez agora esteja em algum lugar de um céu qualquer a ver seu amigo professar profecias iniquas e inexistentes na realidade que ainda há.

-- Brinde procê, mano velho!

 Com disco na vitrola, Camilo caminha a esmo na madrugada seca e insólita.

-- E se o homem acabar com a Terra? Se ela nos autodevorar por tudo aquilo que fazemos com ela? Se um louco resolver um botão apertar? Se o coração nesse próximo segundo resolver parar?

Perguntas. Mil perguntas a assuntar. Era isso que Camilo tinha para pensar. Amou em vida o que, aquilo e quem pôde. Mais não o fez foi porque não conseguiu.

-- Mas com o que tinha, botei pra quebrar...

Liga a tevê, muda de canais de forma enlouquecida e sôfrega. Não para sequer um minuto em qualquer um deles ficar. Surgem rostos, vozes, obuses de uma guerra externa, anúncios de margarina feliz, atores e atrizes a volatizarem em gamas de pequenas luzes. Para ele, nada mais serve de alento. Camilo apenas espera uma veia estourar no cérebro, um pulmão deixar de se encher de vento, o coração decidir descansar, os olhos fecharem para nunca mais precisarem de óculos de lentes e armações. Do lado de fora, aforismo de tudo, uma chuva cheia de relâmpagos se arma para cair. Quieto, levanta, vai até a cozinha e abre outra garrafa que embriagará sua dor. Na secura do tempo a fumaça de vapor volatiliza a vida...

segunda-feira, 23 de outubro de 2023

Pro Waly Salomão não ficar puto

Por Ronaldo Faria



O medo, no entrevero da dor, se torna passado sem trono. Na voz da Gal, tudo está legal. Revejo o Rio de Janeiro. A todo o vapor me transformo em vaporização equânime naquilo que vivi, decerto. Dos tempos de nascido na capital do País até aqui, submergi e sobrevivi. Precisa mais? Quem sabe sim, quem saberá não. De antemão, sugiro um rever tão cansado que nem saberia responder. Quiçá, me transformaria num demente cheio de anéis. Na lua que se faz anular a cada mês, mesuras mil. Tenho mil passados a chamar de meu amor. Amortizado, mortificado, calcinado, prossigo. Como pegasse a próxima lata sem sequer ver que não acabei a anterior. Mas o tempo é isso: promíscuo, findo, fátuo, fatídico, presto a ser seu próprio fim. Na voz de Gal, não estou indo embora, ainda. Baby, sejamos um mundo próprio e próximo daquilo que o universo, em verso, procrastinou. Alegria e calma arrebatam cinquenta músicas a tocar. Na verdade, meu verdadeiro amor há 30 ou 40 dias está desparecida. Dessa coisa que a gente arranca até dos contatos do passado para não buscar numa embriaguez volátil. O que se foi, como diria o poeta, não pode, agora, fazer mal nenhum a mim, nem a ninguém ou a nada. Cavalos de santos perdidos no céu, nos aportamos num meio dia ou meia noite. Sempre na tua glória, estejamos sanos ou insanos... Santo Waly, nos faça um Salomão a seguir os ditames que nunca foram escritos por rei qualquer. Sejamos nós a voz e a verve de uma inócua e simples lenda.

sábado, 21 de outubro de 2023

Para o Pedro Salomão

Por Ronaldo Faria


A noite, como diria o novo poeta Salomão (não o Waly), insiste em não passar. Talvez, quem sabe, uma felina leoa poderá nos tocar, beijar e amar. Certamente encontraremos uma tal em alguma esquina de algum lugar. Num bar? Será? Nas calçadas que a mulher-menina anda despreocupada a viver? Quem irá saber? Talvez numa trama que se entranha em meia hora ou na eternidade que destoa da realidade que nos jogará aos vermes ou ao forno quente que traz ausente às cinzas finais, frugais, o esmaecer da vida finda. Agora, pouco importa. A porta fechada e o som restrito nos faz ao menos crer. A poucas horas iremos orar saber-se-á para o que. A vida, efêmera, surge como a fêmea que habita em cada alvorecer. Senão, seremos perguntas atávicas a pincelar dúvidas antropofágicas e letárgicas que destoam de ser em si.

Por isso a noite é o fim da tarde. Aquela que traz o que já se desfaz na possível chegada de mais uma madrugada. A alvorada, ao coração que ainda bate será a nossa grande pergunta. Chegará? Far-se-á? Irá saber lidar com as ressacas, com o céu a transmutar-se e o sermos somente por sermos? Nalgum lugar uma semente certamente brotará. Senão, que sejamos feito feijão e pão. Comidos no dia que sucumbe apenas para no calendário podermos existir e viver.  Na existência extrema de sempre aprendermos naquilo que hoje há e naquilo que virá, sejamos prosa e poesia, cantada, escrita ou declamada. Senão, possamos aprender que a vida se renova e se faz nova, queiramos ou não. Ainda bem que a morte perpétua do passado e do presente perpetua o renovar de um criar que deita no peito nosso antes de dormir. 

quinta-feira, 19 de outubro de 2023

Acorda Maria Bonita

Por Ronaldo Faria


Maria Bonita acorda desesperada. Talvez soubesse que uma bala irá lhe dar bom dia. Não haverá mais choro, trilhas com plantas carcomidas e secas do sertão, nem mesmo um cantão na grota de Angico. Nada sobrará. Nem calangos, cangaceiros ou macacos. Talvez, no futuro, um augúrio. Quem viver, verá.

 

Nas vertentes das veredas que se embrenham na lua que se esconde no céu, trabucos soltam o som da morte e descobrem no sangue derramado a trama que nenhuma viola saberá tocar. Depois da matança, cabeças expostas ao vento, os homens e mulheres, alhures, viram apenas festança e esperança de cordelistas pelo mundo. Sejam eles primogênitos ou geneticamente curtidos no sertão do passado, de lampiões de querosene e luares imensos ao som de um gado que vai parir e morrer, seguem no precipício que há entre o nascer e findar. Serão fotos, decapitados de seus corpos antes andantes e amantes, viverão em histórias mil. Serão cantados, declamados, difamados, afortunados por sobreviverem aos tempos que cada vez menos tempo nos dá. Como parte de um país senil e febril, semearão amores e ódios, ordinárias vertentes de sementes que, com certeza e presteza, brotarão. E caberá a cada um desdenhar ou regar o que disso puder sobreviver... Daqui, do mundo moderno, vejo, sem credo, que como diria o poeta, a mula pula. Ou seja, nada sei e sei que nada nunca saberei.

terça-feira, 17 de outubro de 2023

No terreiro do som e rolando como fosse Boldrin

Por Ronaldo Faria



As frases. De onde surgirão as frases, como fossem sentenças embaralhadas pelos óculos errado? Ou, senão, como fossem ósculos perdidos na insana e doidivanas saga do amor.

De onde virão feito vendaval em sofreguidão? Sairão do desejo e do ensejo de que seremos donos de nós mesmos ou apenas são brinquedo feito chalana a correr no rio vazio?

E as sílabas? Sibilarão em cobras com vontade de picar a primeira sombra que vier com o luar ou irão fugir com o rabo entre as inexistentes pernas para o fundo de terra que der?

Nunca saberemos. Certamente não nós a quem foi dado o destrato de tratar rimas como fossem ruínas de um texto que se trata de saudades e maldades que a vida nos dá.

Por isso somos apenas um limiar que há de lumiar entre a luz e o negror da própria dor. Nos goles que dão a mansidão da imensidão e se tornam prolixos em inerte servidão.

E surgem parafraseados entremeados de letras mesmo que quase nulas para iletrados. E assim vamos a correr nas estradas de São João da Freguesia, sem saber se haverá sangria.

sexta-feira, 13 de outubro de 2023

Realejo e sanfona

Por Ronaldo Faria


O realejo da praça central toca sem parar. Dele, um periquito surge pequeno e quase efêmero a buscar o que de melhor o cliente ou a cliente possam ler. Sem saber, ele diz à nota que denota no papel num lumiar ou um fim cruel para sonhos e feronômios. Mas, coitado, sem asas para voar, pouco sabe da sua missão. Sem intromissão ou permissão de no destino mexer, sequer sabe dos mexericos que as velhas da janela soltam em profusão. Apenas pega, solitário, um pedaço de textura de celulose que um dia foi vida. Sua missão aqui é apenas juntar centavos para o homem que o acorrenta e, vez ou outra, lhe dá um alpiste como fosse à vida um mero e único chiste.

O realejo, que nada de realeza tem, entoa sons que chamam aqueles que procuram a felicidade em meio a tristeza da cidade. Nele, o periquito, antes já descrito, é a chave do futuro, do presente e do passado. Ausente de tudo, soturno na sua missão, apenas cumpre o papel de menestrel. E sucumbe a cada olhar de ódio que lhe dão quando puxa um destino em desatino com o desejo daquele que tira o dinheiro da carteira. A ferocidade seria certeira se o seu dono não impedisse um periquiticídio. Em meio a tudo, num maio altaneiro, a criança corre solerte e brinca de que a vida será eterna e terna. Da sua prisão a ave pede a Deus de que ela esteja certa.

quarta-feira, 11 de outubro de 2023

Ao Toninho Ferragutti

Por Ronaldo Faria


Respire fundo e afunde em si mesmo, a esmo. Ensimesmado, sinta-se abençoado pelos orixás ou deuses em que possa acreditar. Se não tiver a nenhum deles, não importa. Cerre o ferrolho da porta e ponteie na viola de sete cordas aquilo que quiser. Certamente, São Gonçalo irá te dar guarida mais premida e contigo proseará. Da janela logo perto talvez a louca desde nascida gritará. Não ligue, a lua maior há de trazer um acordeom que soprará sons e tons num desabrochar de léguas de mato verde ou rio cheio a transbordar de vidas e peixes. Tanto faz. Deixe fluir o que melhor lhe apraz. No fim, lá no fundinho ademais, surgirá algo próximo da paz. Na mais loquaz sublimação.

Se puder, para não perder a razão, olhe para o chão que te sustenta. Na intenção dessa peleja, um corpo que emerge também logo arqueja. Sem soberba, aceite que salada tem que ser com azeite. No universo do verso derradeiro, o importante é ser meeiro de um pedaço de página qualquer. Como pudesse ter nas mãos um ínfimo espaço de mulher. E entendesse da geração de outra vida, mesmo que premida. Pense, por fim, mesmo que no fim, a esmo, de que nada haverá no depois. Deponha no júri de si e sentencie o réu a vestir um véu que a tudo esconde e nada deixa mostrar. E se, lá no fim, denotar que há algum lugar a chegar, se achegue e se aninhe. A vida, cansada, agradecerá.

Zé Geraldo

 Por Ronaldo Faria A viola viola o sonho do sonhador como se fosse certo invadir os dias da dádiva que devia alegria para a orgia primeira...