Por Ronaldo Faria
Deoclécio acordou todo feliz.
Esqueceu do ensinamento do mestre Moreira da Silva e pensou ter acertado no
milhar. “Agora deu. Não tinha como não dar. Chega de pobreza! Zelinda, pode ir
na 25 de Março encher a sacola! Ganhei dez vezes mais do que apostei! Se dei
bem!”
Eufórico, crente de tudo, meio
demente pelo porre recente, tinha a certeza plena de que sua hora enfim tinha
chegado. “Zelinda, hoje eu quero picanha e cerveja de litrão! Nada de asa de galinha
e Samba. Vamos ao bar do Camundongo Molhado e fechar a pendura. Agora é só na fatura.”
No seu mundo pouco afeito aos
números e afazeres do anotador que molha a mão de quem manda e cobra de quem
joga, saiu para a rua todo feliz e cuidadoso com o papel carimbado da PT e da
Coruja, da milhar e da centena, pegou o ônibus com passe de idoso, do seu avô
Cardoso, e desceu no ponto central. Deu tchauzinho para a moça de boa idade que
rodava bolsa na esquina, saudou o homem que dormia sob a marquise e sorriu ao
malandro que andava armado, com o berro escondido.
De peito cheio de orgulho, além
de oxigênio com gás carbônico que vinha do lado de fora do esgoto que corria a
céu descoberto, aberto e sem afeto, parou na frente do Mão sem Braço, chefe do
pedaço, e disse resoluto de antes do luto: “Vim dar preju pra você”. Orgulhoso,
tirou o papel do bolso e mostrou. “Pode ser em nota alta. Chega de merreca no
bagulho”. Perto, um pombo em arrulho voa.
-- Tu tá doido, Zé Ruela? Papo
reto, isso aqui foi de anteontem. Hoje deu foi jacaré na cabeça. O burro já passou
de ilusão.
Se Deoclécio ainda tivesse
coração sobrando no momento, teria morrido na hora. Olhou direito o papel,
correu para o poste mais perto e lembrou que sexta-feira já tinha ido. Usou de
novo o cartão do avô, seguiu cabisbaixo pro barraco, nem via a paisagem de
trilho de trem e casa sem reboco. Ao chegar, ouviu um barulho nos fundos, do
lado do córrego seco, e lá estava Zelinda, com um churrasco completo e repleto na
mesa, barril de chope às pampas e os vizinhos a gritarem que Deoclécio era o
Jesus do presépio. Feliz, o português do Camundongo Molhado segurava um
camalhaço de dívidas mil.
(Ao Bezerra da Silva)
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