quarta-feira, 6 de abril de 2022

O começo

Por Edmilson Siqueira 

Quando inventaram o CD, além de tornar mais prático o bom hábito de ouvir música (embora muita gente morra de saudades dos LPs), ainda nos proporciona inúmeras outras possibilidades, como, por exemplo, a reedição de trabalhos raros que, em vinil, tornaram-se objetos de colecionadores. É o caso do primeiro trabalho de João Bosco e Aldir Blanc.  


Esquecido do grande público, esse disco, simplesmente denominado João Bosco, foi lançado em 1973 e, apesar dos bons arranjos de Luiz Eça e Rogério Duprat, do aval que lhe dá ninguém menos que Antonio Carlos Jobim num curto e brilhante texto na contracapa e, claro, da qualidade das composições da dupla João Bosco e Aldir Blanc, o disco não aconteceu como deveria.  


Mas desconfio que não deve ter acontecido não por descuido do público, mas talvez pela enorme quantidade de opções de qualidade que havia naquela época, de Elis a Tim Maia, de Chico Buarque a Caetano, de Jobim a Milton Nascimento, de MPB 4 a Rita Lee etc. e bote etc. nisso. Ou seja, João Bosco ficou meio que perdido entre tanta cobra criada.  


Hoje em dia também há muita coisa boa por aí, só que a gente raramente ouve no rádio ou vê na tevê. As boas coisas da nossa MPB estão hoje quase que restritas às rádios digitais com acesso apenas pela internet, as chamadas streaming, dedicadas a determinados ritmos como o jazz, que abraçou a bossa nova que havia influenciado e hoje é também influenciado por ela. Há uma rádio de Santos que até recomendo: Bossa Jazz Brasil (https://bossajazzbrasil.com/). É ótima. Mas há centenas, talvez milhares delas, espalhadas pelo mundo e que hoje podemos acessar, dedicadas ao jazz e que tocam bossa nova e algima MPB sempre.   


Mas nosso papo aqui é João Bosco e Aldir Blanc, talvez a dupla que mais tenha contribuído para elevar a qualidade da nossa MPB nos anos 70 e 80 do século passado, quando enfrentávamos uma espécie de entressafra. João continua por aí com grandes shows e criando continuadamente, sozinho ou com outros parceiros. Aldir, infelizmente, nos deixou, vítima da covid e do governo que atrasou a compra de vacinas. Mas, antes de partir, se juntou a muita gente boa e produziu grandes momentos musicais e literários.  


Voltando ao pioneiro disco de ambos, nele já dava para perceber que estávamos diante de um novo fenômeno da MPB. Bastava ouvir Bala com Bala, depois eternizada na voz de Elis, ou prestar atenção na profusão de soluções encontradas na Tristeza de uma Embolada que abre o disco.  


Enfim, são onze músicas, oito das quais da dupla. Em outras duas a dupla se acompanha de Paulo Emílio e Claudio Tolomei. E uma delas é de João Bosco e Paulo Emílio.  


De resto, é como escreveu nosso maestro soberano, Tom Jobim, no texto da contracapa do disco e que foi reproduzido também no CD: “Mineiro, é cedo para o cansaço da conversa a respeito da beleza e da parecença dos territórios. Há muito o que fazer e tem que ser feito”. Pelo jeito, João ouviu e cumpriu. Aliás, está cumprindo ainda. 


Quem não tem o famoso vinil nem o CD, poderá ouvir todas as músicas no YouTube, neste endereço: https://www.youtube.com/watch?v=e_dbn9N1ni4&list=PLEder9Qo5tCXkaQWt1ywPje3x0TdXjLi8 . 

terça-feira, 5 de abril de 2022

A Gonzagar

 Por Ronaldo Faria

Estrada a viver, cruzes a cruzar, arrepios de corujas tristes como seres a chorar e piar e cruzar e correr. Nas corredeiras a reinar dentro de cheiros da sanfona branca e fugaz, milhares (e se ponham milhões e bilhões) de minutos, diminutos no tanto que se possam fazer. Viva Gonzagão. No tecer da história, quase nada, milimetricamente afora, um pouco mais de páginas a cruzar um quase nada e outro pouco depois, ouro e louco ou pouco nada se viver. Me faço apenas um pedaço de quase nada a surgir. Mas que Caraíva é um tudo todo, isso é.


segunda-feira, 4 de abril de 2022

Dois gênios juntos

Por Edmilson Siqueira 

Foi um desses encontros em que dois gênios se entendem. Um nasceu em 15 de agosto de 1925. O outro, mais velho, veio ao mundo em 4 de agosto de 1901. O mais velho morreu em 1971 e o mais novo morreu em 2007. O que ambos representam para a música em geral e para o jazz em particular não cabe numa enciclopédia. Mas eles se encontraram em julho e outubro de 1957 e gravaram um disco. Ou seja: além de tudo que fizeram com e para quase todos os outros músicos do mundo, deixaram um exemplo de harmonia, sofisticação e puro entendimento musical.  


Do LP gravado pela Verve, saiu um CD, quarenta anos depois, com quatro faixas a mais, inclusive uma em que o início é refeito várias vezes por erros cometidos. Mas eles podiam errar: estamos falando de Louis Armstrong e Oscar Peterson, dois gênios da música. O primeiro é simplesmente considerado como o mais importante jazzista de todos os tempos. Para quem conhece o velho "Satchmo" apenas de What a Wonderfull World – uma baladinha açucarada que ele gravou já no fim da vida - nem imagina o que esse negro de sorriso fácil e voz rouca fez com seu trompete para a música do mundo.  

Já Oscar Peterson só mereceu, em sua longa carreira até aqui, elogios os mais variados. Uma unanimidade ao piano, um clássico do jazz que, com seu talento e elegância, já se inscreveu definitivamente na galeria dos gênios musicais.


As 16 faixas do CD (no LP eram 12) nos dão 70 minutos e 21 segundos do mais puro prazer musical. À voz rouca e deliciosa de Armstrong se junta o piano exato, preciso, econômico de Peterson e a gente ainda ganha, de lambuja, vários solos de trompete, daquele modo de passear pelas notas das melodias como se elas fossem suas íntimas conhecidas (e eram mesmo), explorando todas as possibilidades de cada música, inventando caminhos e voltando ao rumo na hora exata.  


That Old Feeling, Let’s Fall in Love, What’s New, Sweet Lorraine, Let’s Do It, I’ll Never Be the Same e outros clássicos do jazz são visitados pelos dois, mais Herb Ellis na guitarra, Ray Brown no baixo e Louie Bellson na bateria. Uma aula cheia de prazer é o sentimento que fica após ouvir todo esse Louis Armstrong Meets Oscar Peterson. A produção do LP eu não conheço, mas a do CD é coisa de gente grande. Além de uma caixinha que se abre em três partes, com grandes fotografias dos dois, procurou-se mais espaço para manter o projeto original. O texto de Leonar Feather que saiu na contracapa do LP está lá, em letras miúdas. Mas, além disso, acompanha também um encarte de 10 páginas, com todas as informações possíveis sobre o trabalho, tanto o LP de 1957 quanto o CD de 1997, inclusive um longo texto de John Chilton, escrito especialmente para o CD em junho de 97.  

Cá entre nós, só a música dos dois já bastava, mas a Verve é dessas gravadoras onde o respeito pela obra de seus artistas está acima de tudo. 


O CD inteiro está disponível no YouTube neste endereço: https://www.youtube.com/watch?v=A5mZJ1Y9eLo

sábado, 2 de abril de 2022

Miúcha e seus compositores

 Por Edmilson Siqueira 

Ela era irmã de Chico Buarque, se casou com João Gilberto e teve uma filha, Bebel Gilberto. Só esses fatos já teriam colocado Heloísa Maria Buarque de Holanda na história musical do país. Mas ela também cantava e, como Miúcha, seu apelido caseiro que virou nome artístico, encantou a muitos, interpretando um repertório de alta qualidade com uma voz tranquila e bonita.  


Seu primeiro disco só foi gravado quando ela estava com 38 anos, mas já havia cantado antes em Paris, enquanto fazia o curso de História da Arte na École du Louvre. Numa viagem com amigos para Roma, na década de 1969, conheceu João Gilberto e se casou com ele. O casamento durou até 1971 e dele nasceu, nos Estados Unidos, Bebel Gilberto, consagrada como cantora de jazz em extensa carreira.  


Miúcha era uma espécie de unanimidade no meio musical, não só pela sua simpatia, mas pela qualidade que impunha a seus discos, pela excelente escolha de repertório e pela alegria contagiante que dela emanava.    


Viveu até os 81 anos, quando, em 2018, um câncer de pulmão a levou.  


Entre os 14 discos gravados - 11 de carreira e 3 coletâneas - vou destacar aqui um que é bem significativo da carreira de Miúcha. Gravado pela ótima Biscoito Fino, em 2002, o disco recebeu o nome de Compositores e nele Miúcha faz um passeio por um repertório não muito conhecido (com exceção de dois sucessos com outros intérpretes)

de grandes compositores brasileiros. 


No encarte do CD - um grande trabalho gráfico resultado de uma produção muito bem cuidada - há vários depoimentos de compositores que têm músicas no disco e todos eles têm algo em comum: a louvação da alegria da presença de Miúcha, seja no estúdio, seja na companhia deles em qualquer lugar que seja. 


"Miúcha é uma das pessoas mais joviais que conheço: o tempo passa e cada vez que nos encontramos confirmo essa primeira impressão. O astral é sempre alto, os grilos não sobrevivem perto dela." (Cristóvão Bastos) 


"Miúcha, além de ótima cantora e compositora, é uma das pessoas mais alegres que conheço." (João Donato) 


Assim, com alegria e muita qualidade, Miúcha passeia por 14 músicas de um disco que, quando termina, dá vontade de repetir muitas outras vezes e de tê-lo sempre por perto para ouvir sempre. 

Pode Ir, parceria de Carlos Lyra e Vinicius de Moraes; Quando a Lembrança me Vem (a única parceria entre Tom Jobim e João Donato);  Canção Inédita, de Edu Lobo e Chico Buarque; Fox Trote, de Guinga e Ney Lopes; Tomara, de Novely e Maurício Tapajós; Cor de Cinza, de Noel Rosa; E Daí?, de Miguel Gustavo; Solidão, de Tom Jobim e Alcides Fernandes; Tempo de Amar, de João Donato e Miúcha;  Lembre-se, de Moacir Santos e Vinícius de Moraes; Refém da Solidão, de Baden Powell e Paulo César Pinheiro; Vento Levou, de Cristóvão Bastos e Abel Silva; A Dor a Mais, de Francis Hime e Vinicius de Moraes e Você, Você, de Guinga e Chico Buarque são as 14 músicas muito bem gravadas, com ótimos arranjos e a voz marcante de Miúcha que fazem desse Compositores um disco obrigatório na coleção dos que curtem a boa MPB. 


No Youtube tem uma playlist com todas as músicas do disco: https://www.youtube.com/watch?v=nnVekrujmY0&list=PLrt7VbxNS8rfFpeByO4U-cpxbP2mDVoYy 

sexta-feira, 1 de abril de 2022

A Dominguinhos...

Por Ronaldo Faria

Terra ressecada cheia de pedras e pó. Que dó. Talvez um devaneio sem início, fim ou meio. Um acordeon a traçar sons e notas a denotar. Um pedaço de tempo efêmero, tardia saudade a desbragar. Velejar de portinholas que se fecham e se abrem sem parar. Feito a mulher no tempo, dependurada na janela a somente olhar. Na semente colhida logo longe, lumiar. Um pedaço de acaso, um regurgitar de saudades e passados, um afago sem dor. A sentença de passar um rio pequeno a poder matar e se desmilinguir. No que for, será. Talvez um derrear sem fim, lembrança volátil e efêmera. Talvez o cocô da filha canina recolhido a cada manhã e tarde. Um forró rodeado de chão e o que for. Afinal, há pouca divisória entre a felicidade e a dor. Talvez um pedacinho de tempo que a gente nem sabe o que é. E fica tudo assim: na fé. Um Nordeste sem sul ou leste. Sem centro ou oeste. Apenas Nordeste. Terra minha. Passado meu. Passagem minha. Artimanhas da vida. Caçamba a buscar água vinda da cacimba. Tudo a cheirar lenha e pasto calcinados de tanto brotar. Um descobrir na chuva finita, outro pouco a ver a água verter. Feito feira onde o açude se entrega às poucas folhas que dão saudade que brota igual a semente dormente na iniquidade que o tempo dá. Senão, somente eu, num cantinho onde cabe apenas uma urna diminuta e escondida detrás de uma sepultura que se cobre toda de vida. E haja acórdãos, dias perdidos entre um batucar de teclas e decisões, cisões de ser e estar. Do lado de fora, um Rio de Janeiro brota cheio de meses e reses que se deixaram morrer entre o tanto de pasto e o curral. No cheiro de bosta que permeia as lembranças e a reentrância, essência do odor de vida se aflora em dor. Há um tanto de pequenas capelas cagadas de morcegos e tantas hóstias. Inglórias certezas e desmedidas asperezas. Talvez um tempo esquecido, um frigir de emoções dirimidas. Quem sabe carolas de véus e vestes negras, vestígios de novas esperanças ou murtas entregues aos morcegos que cagam em anjos e santos benzedores. Nos alforjes do cavalo qualquer que segue as estradas sem matagal e fim. Talvez, quem sabe, meu último fim far-se-á simples e em si: o derradeiro suspiro sem encher o peito de ar e o chupim a cantar. Na sanfona, Dominguinhos solta o fole sem dizer que ele, no fundo, sou eu...

Cavaleiro solitário

 Por Ronaldo Faria O bar está fechado. Parece há tempo. Mas Hermínio não se dá por vencido. Enquanto houver uma sede por beber, beber-se-á. ...