Por Ronaldo Faria
Entre um acorde e outro, às
vezes lúcido e outras tantas louco, Malaquias – Quias para os íntimos –
caminhava à beira-mar. A tarde ainda não entardecia num inverno que nenhuma nuvem
queria pintar de branco ou solar nostalgia. O frio, nem gélido e nem longevo
dos casacos cheirando a guardados, brincava de passear nas ondas rasas e poucas
a cobrir de toucas as cabeças e moleiras das crianças que, deitadas nos
carrinhos de bebê, bebem suas primeiras emoções de paz. Os corpos jovens de
mulheres e rapazes correm no calçadão à espera de logo mais se juntarem desnudos
aos acúmulos do amar. No Morro Dois Irmãos, a pedra milenar é o próprio chão.
Quias, suburbano de nascença e
filho de Xangô, que brindou os santos e guias nos terreiros da vida, lembrava
de Sandra Lúcia, mistura de índia e sorriso que se espalha e se espraia agora
na praia que brinca de luzir o acordar e amanhecer no meio do dia. Na cândida
cadência que se apropria do dia, poder estar vivo é a própria orgia. Nela,
Quias redescobre os caminhos tardios a cruzar no Opala as estradas transversas
de mãos a cobrirem a paixão que se desenrola debaixo da toalha. “Cacete, gozei!
E agora?” Hoje, ele ri da cara da jararaca da quase sogra que no banco da frente
não tinha visto a cena que o asfalto traduz.
-- Por onde andará a sanha das
histórias que o poema não soube detalhar?
Nas sombras que as árvores
dão, naquilo que antes fora apenas a chácara de um francês, Quias caminha até a
subida da Niemayer. Logo ele chega ao mirante. Dele, vê-se a vista que
sobreavisa que o mundo é para poucos. “Mas qual, isso sempre não foi assim? Uns
matam o elefante, mas poucos podem usar seus dentes de marfim.” O início da
tarde, porém, ainda está lindo e lúcido. Não deixa lugar a divagações sem
noção. Talvez um chope, um pastel de carne, a foto de celular que vai minguar
na pouca memória do aparelho. Quias prefere não pensar muito. É hora de retomar
a estrada: caminhada, metrô, interligação, trem e novos passos sem dó. “Só
queria mesmo ter dado o último beijo além daquele cheio de lágrimas dos dois.”
Na descida, um moleque pede um troco para comer o que puder pagar. “Certo, mas não
vai gastar com bala, sorvete ou manjar.” A vida, sabe Quias, não foi feita para
se empanturrar de guloseimas. Na feira perto, o dono da barraca de peixes grita
que a sardinha é fresca, “quase um destaque de escola de samba ou dos bailes de
gala do Copa nos Anos 70”. Sem vontade de sorrir, Malaquias apenas relembra que
gostaria viver e estar de novo nesses anos nos braços e lábios da amada a desfilar.
Para ele, o subúrbio era o cadafalso e o paraíso num mesmo lugar.
(Ainda com Arthur Verocai)
