segunda-feira, 15 de dezembro de 2025

Na viagem

Por Ronaldo Faria


Viajante de suas loucuras diuturnas, quase equidistante entre a vida e a morte, Januário persegue qualquer polis que vire lugar de chegar. Cama de se achegar e se largar cansado nos braços da amada. Já isso bastaria. Por aqui, nas remissões da vida, pouco basta. Um pé de serra, poço de onde se tira água de beber, candeeiro pra iluminar a vida quando o escuro chega no pretume do céu e no perfume do corpo cheirando amor. Januário, sentado na sela do cavalo alazão, toca a boiada pela estrada. Na saudade da doideira que a saudade dá, vem a lembrança de Eneida, mulher de aliança trocada e confirmada debaixo de um pé de flor. Logo, pensava, a casa de pau a pique iria chegar nas suas íris cercadas de pó e poeira que o gado levanta na estradeira sem eira e nem beira. Espora no cavalo pra tudo adiantar.

Viajante dos montes que se desmontam pelas bandas de qualquer lugar, Januário vai a marchar e murchar em caminhadas e passadas, cascos marcados no chão que pouca gente quer trilhar. Quem sabe aquele que busca o beijo saudoso que tem gosto de paixão encardida e lavada na solidão. Por toda a vida e na remissão. Para Januário, que amou sempre antes de ser amado, pé de ingazeiro é o mesmo que árvore de carvalho. No trote do seu cavalo, surgem na sua mente alhos e bugalhos. Tem ainda o alpendre que vê o sol desde o fim até o começo. E haverá ainda recomeço no tédio do solo seco e sem vida que o sertão por vezes faz em atropelo.
-- Eneida me espera na quimera que tiver de ser. Te prometo levar chita e o que for. E troco tudo por um beijo fugaz, desses que se dá rapidinho, mas se guarda para sempre.
Na lonjura que a lonjura do tempo e das horas nos dão, Januário se aconchega no lombo do cavalo que sua calor e sal. Tal e qual, transita na loucura e na penúria que apraz. Vai na volta que revolta e fica nos olhares da procissão que segue em promissão a vagar e perguntar pelo santo que os abandonou. Num cantinho ou outro de tanta solidão, no interno inferno de terno e eterno verão, Januário segue a seguir sua sina quase finda. Nela caminha e sente falta de ser feliz. E se pergunta: “O que eu me fiz?” O silêncio empedernido e ouvido no silêncio da alma que espera chegar e se acoitar nos seios da amada soa alto em cada respirar. A sede que mata o gado magro e prostrado no infortúnio da cerca de arame farpado que os resguarda da vida é o tom do lugar. Num largar de almas e penitência sofrida, o padre abençoa a procissão que se esmera a cortar caminhos abertos com mãos calejadas de enxadas e calos que nem mais sangram a cada servidão.
De repente, num rompante que só os animais sabem dar, o alazão foge da cobra que está prestes o bote perpetrar. Januário, disperso no pensar em seu amor, nem vê a cascavel que quase mata seu andar e andor. Por fim, no fim que sempre há, seus braços cansados abraçam Eneida na feira do povoado que está a se largar entre moscas na carne seca e ao Deus dará. E assim, no gosto dos lábios da amada, ressurge a vida como ária a se jogar. Então, no mundo fugidio de quem nunca esteve no seu mundo, a vida ressurge em léguas que o sertão soube eternizar. 

(Ao som de Dominguinhos)


Na viagem

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