quinta-feira, 11 de dezembro de 2025

Na marquise do tempo

 Por Ronaldo Faria


-- E aí, vamos?
-- Claro. Só se for agora...
Carlos e Kelé, amigos de infância, suburbanos desde os primeiros panos de vestir como fralda, pegaram o rumo da rua. O trem passaria logo, se a Rede Ferroviária Federal não tivesse tido algum problema nas conexões a partir de Japeri. Chegaria lotado de gente uniformizada de fome e pobreza, mas na esperança de ser feliz em 90 trôpegos minutos do tempo.
-- Hoje o Mengão ganha fácil. Quatro a zero, fora o baile.
-- Tomara que sim.
-- O Maraca vai estar lotado, mas qualquer coisa a gente foge pra marquise.
-- Porra, será que nem na geral vai ter lugar?
-- Nunca se sabe, mas não vamos nos apertar. Esse jogo a gente vai assistir.
Não deu o fim da frase, chega a composição no seu ritmo cansado de rodar centenas de trilhos quase enferrujados. As portas, que há muito não fecham, estão apinhadas de viajantes longe de cenário verdejante. As casas do subúrbio há tempos deixaram de ver flores florescer.
-- Ô caralho, vamos chegando pra trás que sempre cabe mais um torcedor!
Sorte de Carlos e Kelé é que ainda existe (à época) solidariedade. Empurra daqui, espreme dali e está resolvida a questão.
-- Agora é só segurar com força pra não cair, mermão...
E o trem transita trêmulo por outras estações. “Não cabe mais ninguém! Chega de parar, filho da puta de maquinista!” O grito, decerto maniqueísta de quem já está entalado na lata de sardinha, vira coro geral. Pedido feito, pedido aceito. “Não quero ver o trem de novo depredado”, diz o maquinista para si mesmo. A esmo, quem fica pra trás ainda tenta jogar pedras, mas erra a pontaria.
-- Tomara que o ataque do Vasco esteja hoje tão ruim quanto a mira desse povo.
Por fim, no enfim de todo fim de viagem, surge a Estação Maracanã. Em segundos, ela fica lotada de seres que correm às bilheterias para comprar o ingresso mais barato, na geral popular.
-- É agora. Estamos aqui e vamos lá garantir o lugar!
Depois de muita espera, fila, cavalaria da PM tentando organizar o que dá, Carlos e Kelé estão no templo do futebol. Como eles, outras dezenas de milhares de seres que irão virar estatística na história do clássico dos milhões.
-- Cacete, se a gente ficar na geral não vai ver nada. Está lotada. Nem formiga cabe mais.
-- Esquenta não. Marquise, vamos nós.
-- E se a porra da PM descer o cacete geral depois que a gente subir?
-- Do jeito que essa merda está cheia você acha que os caras vão encher nosso saco lá em cima? Olha o que já tem de gente lá!
Dito e feito e o feito de escalar pra sentar no concreto que cobre os sortudos da arquibancada e segura o refletores é completo.
-- Agora é só torcer!
Ao apito final do árbitro, três possibilidades:
1) Flamengo goleia o Vasco. O time, sem patrocínio na camisa (não havia nesse tempo), sai aplaudido e deixa a galera em delírio profundo. Carlos e Kelé voltam felizes para casa. Horas depois de rodarem outra vez espremidos os trilhos da vida, param na birosca do Seu Luiz para comemorar. “Luizão, mete duas das cervas mais baratas, uma pinga com limão espremido e pode pendurar. No final do mês a gente acerta, como de praxe.”
2) Flamengo empata. O Vasco marca nos minutos finais. Putos, Carlos e Kelé xingam o time e o esforço dispendido para ver o rubro-negro jogar. “Mas não foi de todo mau, ainda estamos na frente no campeonato.” Horas depois de rodarem outra vez espremidos, param na birosca do Seu Luiz para tentar esquecer o tempo perdido ou ganho na epopeia. “Luizão, mete duas das cervas mais baratas, uma pinga com limão espremido e pode pendurar. No final do mês a gente tenta acertar, como de praxe.”
3) O Flamengo perde de forma impiedosa. Revoltado, Carlos quase se joga da marquise. A sorte é que Kelé foi mais rápido e o segurou. “Calma irmão, outros jogos vão rolar. No próximo nós vamos golear!” Horas depois de rodarem outra vez espremidos, param na birosca do Seu Luiz para tentar esquecer o tempo jogado no lixo. “Luizão, mete duas das cervas mais baratas, uma pinga com limão espremido e pode pendurar. A gente acerta quando puder e se der.”
No Maracanã, gigante ainda e ressonando sob os olhares do Gigante Adormecido em pedra que se vê nos arredores do bairro, termina mais um capítulo de vidas que podem terminar em cafunés ou nos mais nefastos impropérios. No entorno, cambistas e vendedores ambulantes ou não de cerveja e cachorro-quente comemoram o placar que tenha sido. No final é tudo igual, só muda o final...

(Ao soim de uma torcida qualquer)

Magos

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