terça-feira, 28 de outubro de 2025

Tarde com Arthur Verocai

 Por Ronaldo Faria


 -- Blasfêmia!
“De algum modo o texto tinha que começar”, pensou Edgar. Afinal, a ideia inicial não surgia. Que venha ao menos uma palavra. Veio blasfêmia. E olha que lá estavam todos os ingredientes para delirar: vinho, música, solidão, tela branca e desejo de escrever. “Mas blasfêmia é o melhor modo de se começar um texto? Será que não há outro pretexto? Outro destrinchar de palavras, emoções e insolventes soluções?” Não tinha. Não teve. E se a coisa já tinha começado a rolar, que assim fosse o alarde daqui para frente.
A palavra inicial fora dita por Ana Rita ao ser indagada do atraso na chegada. Que mal havia em ser no ato quatro da madrugada? “Não posso ter ficado no ponto de ônibus a esperar o Circular?” Até podia, mas mesmo com o sistema complicado pela queima de veículos pelo tráfico, era meio difícil acreditar que entre as 18 horas e quatro da manhã não tenha passado nenhum ônibus. Ou um Uber sequer. “Pois é, Edgar, o Rio está uma bosta pra se morar! Vou dormir! Passar bem.”
-- Blasfêmia!
Bem que ele tinha pensado diversas vezes em se mudar para o Interior. Alguma cidade pequena, dessas em que todo mundo se conhece, fala mal uns dos outros, sabe-se de cada detalhe da vida alheia, se acorda com os galos e se dorme com as galinhas. Volta e meia, num ou noutro dia, a missa dominical, o almoço em família, quem sabe o enterro do velho que há muito vivia com um câncer que já tinha ganho até apelido – Amigão. “Certamente lá não tem guerra civil por domínio de território. Talvez, decerto, a família tradicional do lugar há muito já tenha matado os outros que pudessem lhes tomar o poder. Tudo findo com um famoso vão se foder.” Para Edgar, o importante era voltar a conquistar Ana Rita. E podia ser na Mongólia, Transilvânia ou Cochinchina. Até São Pedro do Mato Dentro, seja onde no mapa do planeta ela possa geograficamente estar, servia.
Na rua, que acordara com um tiroteio de balas traçantes, a radiopatrulha passa em velocidade com a sirene ligada. O batalhão sequer tinha dormido no baile de corpos alvejados, dilacerados ou caídos. Uns poucos heróis e heroínas que não podem sequer dizer ao patrão ou patroa que no bairro o bicho está pegando, sob a pena de não ter mais emprego, rezam aos santos para que nenhuma bala perdida consiga achá-los. O português da padaria, que baixa a porta para evitar saque, xinga o dia que pegou a barca para atravessar o Atlântico. “O puto do Cabral podia ter descoberto o Canadá. Agora eu estaria em Montreal, ô pá!” Mas, para Edgar, o importante é toda essa balburdia não acordar Ana Rita. Certamente, para o resto das horas que vem, um sono da amada é a melhor receita e solução.
-- Blasfêmia!
Aos poucos as horas sem ponteiros no relógio digital revoam no ar atemporal. E pombas voam e defecam, roupas nos varais empoeirados secam, repórteres de noticiários sanguinolentos tentam entrevistar quem resiste em morar na Faixa de Gaza nacional onde nem gaze dá conta de tantos feridos. Edgar agora vai na cozinha fazer o café para Ana Rita. Ela levanta recuperada e lívida, com seu corpo desnudo a rebrilhar na luz que entra pela janela do segundo andar. “Desculpa por antes. Eu estava estressada. Sabe lá o que é ficar horas num ponto de ônibus cheio de gente desesperada pra voltar?” Edgar sabia. “Seu café está pronto. Fiz do jeito que você gosta: forte.” Às onze da manhã o dia parece ter recuperado um pouco da sua etérea paz. Afinal, mesmo traficante, miliciano e PM têm que descansar. O bairro redescobre que pode sonhar e quem sabe até mudar de lugar. Virar Zona Sul e lumiar. Blasfêmia? Talvez. Ou essa também já não há. Edgar e Ana Rita enfim juntam as bocas, deitam na cama refeita de casal e descobrem que a vida é um mero segundo irreal. Entre pernas, afagos e louças na pia, são um final contundente e real a blasfemar.

Magos

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