Por Ronaldo Faria
-- Pelo amor de Deus, canela
de pedreiro não!
O pedido de Gusmão fora tão sofrido
e verdadeiro que Cícero, garçom do lugar, atendeu o desejo.
-- Tudo bem. Peguei uma que
tinha acabado de colocar no freezer. Tá quase na temperatura ambiente.
-- Obrigado, meu irmão! De
coração!
Gusmão, parceiro de copo de
Felismino, que tinha faltado na retreta por estar gripado, pega a garrafa,
enche o copo e derruba tudo de uma talagada só. Feliz por tudo na vida ter
feito por amor, quer agora apenas um momento de torpor sem dor. Pede um podrão
onde tudo é pouco pra tanta fome, come em dentadas plenas e se propõe: “Amanhã
vou caminhar, com ou sem calor.”
-- Cícero, meu velho, fecha a
conta aqui!
-- É pra já, patrão!
Gusmão se levanta, aperta a mão
do comparsa de bebedeira, mesmo cada um do seu lado do balcão, e sai a sorrir
na madrugada escalafobética. No alfabeto que lhe repassa no cérebro que ainda
está e há, brinca de chutar uma lata perdida no asfalto. Do alto do prédio, um
ser enfronhado no seu próprio tédio diz que não é hora de cantar. Ele não liga.
Na verdade, religa o celular e chama o número de Felismino só pra dizer que a
gripe é uma merda e os goles perdidos nunca mais voltarão. Lembrou ao amigo que
seria bom tomar um Voltaren. “Ao menos a dor tem que parar”. Espera o sinal abrir
para os raros pedestres e, pé antes e depois do primeiro pé, caminha até sua casa,
aonde com a solidão irá se agasalhar e acasalar. Mas, ao menos, trêmulo de quase
hipotermia, sabe que conseguirá dormir. No frigir dos ovos, haverá mansidão. Na
devassidão que a solidão dá, sabe que meio metro de concreto vale mais do que quilômetros
de um dia que não mexe sequer o catavento.
(No final com o Chico Buarque)