sexta-feira, 18 de novembro de 2022

"Secos & Molhados": uma pequena revolução

Por Edmilson Siqueira 


Quem não era mais ou menos jovem naqueles anos de 1973 e 1974 talvez não consiga imaginar o que foi o surgimento e o sucesso do grupo "Secos & Molhados". O Brasil era bem careta, apesar de já ter passado pela explosão da Jovem Guarda, pelos festivais da Record e da Globo e, principalmente, pelo Tropicalismo. Aliás, foi esse último que abriu as portas para manifestações artísticas que fugiam de um nacionalismo arcaico que ainda pairava na cultura brasileira. A bossa nova já andava pelo mundo, quase desconhecida aqui. A Jovem Guarda era uma tentativa de fazer rock juvenil imitando conjuntos ingleses e americanos de sucesso (muitas músicas eram péssimas versões em português) e os festivais, bem os festivais expuseram uma geração com um talento gigantesco que até hoje está por aí e que teria acontecido com ou sem festivais. 


Sobrou a Tropicália que queria dizer que o Brasil poderia sim se abrir - ao contrário do que a feroz ditadura da época dizia e mandava - que bom gosto e novidades podiam andar juntos e não existiam necessariamente só por aqui.  


A ousadia do Secos & Molhados vem na esteira dessas novidades e invenções das artes brasileiras. Quatro rapazes (depois três) despiram-se de suas identidades, pintaram o rosto de maneira extravagante, se vestiram com roupas diferentes e criaram um conjunto que aliava tudo isso a uma ótima música. O primeiro disco deles estourou a ponto de, em uma semana já ser o mais vendido no eixo Rio -São Paulo que é o que valia para as gravadoras à época. A música "O Vira" (João Ricardo e Luli) uma mistura do ritmo português com baião, tocava a toda hora em todas as rádios.

O grupo, então formado por Ney Matogrosso, João Ricardo, Gerson Conrad e Marcelo Frias, assustado com o sucesso, saiu fazendo shows pelo Brasil. Eu assisti a um deles, no ginásio do Tênis Clube de Campinas. Eles entravam, cantavam todas as músicas exatamente como estavam no LP, faziam um bis de "O Vira" e, cerca de 35 minutos depois do início, não tinham mais nada para cantar. Recebiam os aplausos e de despediam. E a plateia delirava. Uma plateia que estava um tanto quanto alheia à música mais engajada politicamente que ainda se cantava por aí, oriunda dos festivais. E também não suportava o que havia restado da Jovem Guarda. Chico, Gil, Caetano e Milton, por seus talentos que iam muito além da média, continuavam na tal crista da onda. Mas havia um público enorme ávido por novidades boas como o Secos & Molhados. 


O segundo disco veio no ano seguinte, 1974 e, quando ele foi lançado, o grupo já estava separado. E sem Ney Matogrosso para cantar, não poderia haver outro grupo com o mesmo nome. Mas o repertório do segundo disco, também com 13 músicas, é tão bom - e há quem julgue até melhor - quanto o primeiro. João Ricardo e Gerson Conrad bem que tentaram, mas não conseguiram repetir o sucesso e acabaram se perdendo por aí.

 

Já Ney Matogrosso virou o que virou: um dos melhores intérpretes da MPB até hoje, aos 80 anos, fazendo shows e demonstrando ótima vitalidade. Sua ousadia, sua ambiguidade sexual, suas fantasias, sua ótima escolha de repertório e seus shows tecnicamente irrepreensíveis fizeram dele um grande artista que sempre será lembrado muito mais pelo que foi depois do furacão "Secos & Molhados". 


E para quem quiser conhecer o que foi esse furacão, a Continental/EastWest lançou, em 1999, um CD que reúne os dois LPs do grupo, numa série chamada "Dois Momentos". Ali está toda a obra dos "Secos & Molhados", tal qual foi gravada originalmente, "remixados diretamente das fitas originais por Charles Gavin (Titãs)" como diz um destaque na capa do CD.   

Dá para ouvir o CD completo em https://immub.org/album/serie-dois-momentos-apresenta-secos-molhados e ele ainda está à venda nos bons sites do ramo. 

quinta-feira, 17 de novembro de 2022

Tom Jobim ou a primeira depois dos 55

 Por Ronaldo Faria

Tom em tons de amarelo que se perdem pelo céu azul e invadem o escuro da redação em caixote branco. Tom de um Jobim carioca que se esgueira em cada nota acústica e reverbera no silêncio calado de ideias em profusão meteórica. No meio de tudo, a metamorfose em que nos transformamos de criadores em simples criaturas. Pequenas máquinas a pararem no tempo que corre lá fora num eufemismo lúdico. A poesia fica estática e fora de questão. Nas entrelinhas, saudade da vida, da areia quente, das ondas, do mais grato e incrédulo coração.

Do tempo de subúrbio entre as ruas do Méier e a métrica divisória de bairros entre as zonas Norte e Sul. Entre o cinza e o azul. Do tempo de ladeiras, eiras e beiras a beirarem os berros dados na noite, açoites de um corpo no outro, línguas entrecortadas de lábios, afagos ofegantes num Opala que corre no escuro de avenidas e vidas retintas de fim.

Tempo do Tom, de cubas libres e gins com tônica. E Cuba não era tão livre e nem o gim se fazia a tônica da cena. Para ambos, cacofonia de palavras repetidas e ditas, ceifadas de separações e dores latentes, odores de creolina no ar e telefonemas inauditos a tocar. Tudo com verso ou nota ao piano. Como gelo que derrete no copo e, translúcido, viaja ao cérebro para a brincadeira de mais Luizas e Marias, Gabrielas e Anas, curvas em carne e portos de pele. Lá fora, a aurora de uma Primavera se desfaz devagar. No céu, o Sol se prepara para vagar entre a escuridão e o desejo de ser apenas ensejo numa cama qualquer.

Afora o mundo, o aforismo repetitivo se deixa de luz e negror. A eterna transição entre o olhar disperso e a pressa da noite chegar. Num canto qualquer, homem e mulher se preparam para amar. Vestem-se de nudez e dão ao outro corpo algo muito além da cópula final. Haverá festa de copos, suores a escorrerem numa só gota, canções a saírem de um canto qualquer como canto único e uníssono a embalar a dança de dois em um.

Daqui, a ouvir Tom entoar versos e notas, anoto apenas que lá fora há vida a seguir sua transitória existência que roda no eixo mágico. Aqui, a criação que a nada leva e remói saudades e sons, gatos pardos numa lagoa de São Sebastião do Rio de Janeiro. E o tempo, onde há vida a fluir, fora deste caixote, passa único e igual, multiforme e desigual, passageiro e causal. E a dor no piano esbarra em cada tecla a esperar o tom derradeiro chegar. Lá, muito longe, ainda há o cheiro, o gosto e até a quentura de um mar.

quarta-feira, 16 de novembro de 2022

Os blues de Jonh Coltrane

Por Edmilson Siqueira 

Que John Coltrane é um dos gênios do jazz, disso não resta dúvida nenhuma. Boa parte da crítica o considera o maior sax tenor da história do jazz e um dos mais importantes jazzistas e compositores deste gênero de todos os tempos. Uma longa vida seria necessária para a maioria dos mortais chegar, digamos, próximo a esse patamar, mas para Coltrane bastaram 41 anos incompletos de vida, pois ele nasceu em 23 de setembro de 1926 e morreu em 17 de julho de 1967.  


Tenho vários discos de Coltrane e nem sei do qual gosto mais. Talvez seja "Coltrane For Lovers", uma compilação de baladas que se tornaram clássicas ao sopro do gênio. O CD saiu por aqui, mas o que tenho foi comprado em Londres, na única vez que estive por lá, em 2001. E comprei na Tower Records que, alguns anos depois, deixou de existir.  


Mas não é esse o disco que estou ouvindo e tema do artigo de hoje. É outra seleção, ou seja, um apanhado de músicas de outros discos que, por algum motivo, podem ser reunidas num só.  


Nesse caso são alguns dos blues que ele gravou entre 1957 e 1958. Diz o encarte que ele começou a carreira tocando blues e para eles voltava constantemente. Nos intervalos, aproveitava para compor clássicos do jazz, influenciar uma geração inteira e revolucionar a música instrumental.   

São apenas seis faixas, mas é uma aula não apenas de blues, mas do jazz mais puro e inovador daquela época e que, até hoje, agrada aos mais exigentes ouvidos.  

Com vários grupos diferentes, as gravações têm ainda uma raridade: numa das faixas Coltrane toca sax alto, que foi seu primeiro instrumento. Em todas as outras ele está com o tenor que o consagrou.  


A primeira faixa é "Slowtrane", do próprio John Coltrane acompanhado apenas de contrabaixo e bateria. Ou seja, toda a parte melódica, nos mais de sete minutos da música, cabe exclusivamente a Coltrane, com um belo improviso do baixo. 


A segunda também é dele, que gostava de usar corruptelas do seu sobrenome nas composições. Trata-se de "Traneing In", que já tem o acréscimo do piano de Arthur Taylor. Apesar de ter mais de 12 minutos, a faixa e apenas a terceira em tamanho na seleção. Depois de um solo de piano de quase 4 minutos, é que entra o sax de Coltrane. 


Um blues clássico de Charlie Parker - "Billie's Bounce" - é a terceira faixa. Aqui já há o acréscimo do trompete de David Bird e a faixa foi extraída do disco "Red Garland Quintet With Coltrane/Dig It!" 


"The Real McCoy", de Matt Waldron vem a seguir. É a faixa em que Coltrane toca sax alto, acompanhado de flauta, de um sax tenor e de um sax barítono, além de piano, baixo e bateria. Detalhe para o belo solo da flauta de Jerome Richardson. 


A quinta faixa é "Big Paul", de Tommy Flamagan, com o grupo voltando à formação de quinteto, com sax, piano, guitarra, baixo e bateria. Um solo incisivo de Coltrane marca faixa.  

A seleção se completa com "Sweet Sapphire Blues" de Robert Weinstock. Da formação anterior, sai a guitarra para entrar o trompete. A faixa, a mais longa do disco, com mais de 18 minutos, também se inicia com um longo solo de piano e Coltrane só dá as caras perto do sexto minuto. E entra com algo semelhante ao be bop do qual foi um dos criadores. Mas é muito bom também.  

O CD está à venda nos bons sites do ramo e eu não encontrei no YouTube para ouvir. 

terça-feira, 15 de novembro de 2022

Para carnavalizar

 Por Ronaldo Faria

Pierrô, esquece a tua colombina. Ela não combina mais a fantasia com a tua. Os olhos cansaram da purpurina do salão e os confetes deixaram de cair do alto do salto a gingar no vazio coração. A avenida está tardia e a bateria deixou seus instrumentos quietos num canto qualquer. A porta-bandeira há muito não vê seu estandarte tremular. O mestre-sala mora num quarto e cozinha longe do mar. O arlequim vende quinquilharias de Pequim. A passista passa longe dos prantos da arquibancada que agora aplaude um destaque sujo de nanquim. Baianas rodopiam a ouvirem o pio da ave que deita ao sol da mangueira, quente no calor. Compositores se decompõem ao samba de autores mil. No ritmo do ritmista solitário da dispersão, ainda foge da garganta dos aflitos a derradeira canção. Como recomeço de quatro dias à dor imortal do amor que, no samba-enredo, se fez campeão e fatal.

Por isso, Pierrô, esquece tua colombina. Para com teus passos em descompasso. Deixa de lado a fantasia escondida em tantos dias e sai nu pelas ruas a gritar que é preciso cantar para a dor ter fim. Que é preciso reaver o sorriso perdido nos dentes brancos daquela que passa entre as alas da escola a dançar e cantar como fosse o Carnaval de um despacho a qualquer santo imortal. É preciso olhar nos olhos que brilham, rebrilham e borbulham a saltarem da íris feito cor do mar. Assim, Pierrô, deixa o choro às cinzas de uma quarta-feira que, sobremaneira, far-se-á. Jogue todas tristezas e mazelas no esgoto e deixe que o suor a descer de ti seja eterno esquecer. Afinal, a árvore quase já morta ainda quer crescer. Dança e requebra, quebra e lança ao longe a tua ilusão. Deixe que se refaça a canção. Distante, no ditame do enfim, uma rosa, como diria o poeta, há de falar do perfume que rouba de ti.
 
(Ao mestre Cartola e o Carnaval)

segunda-feira, 14 de novembro de 2022

Rosa canta Jobim: perfeito

Por Edmilson Siqueira 

O disco "Rosa Passos Canta Antonio Carlos Jobim", gravado em setembro de 1998 e, desde seu lançamento, um clássico da bossa nova e da própria MPB, não foi assim pensado desde o início pelo seu idealizado e produtor Almir Chediak. A ideia inicial - ele mesmo conta no encarte - era fazer um disco comemorativo dos 40 anos da bossa nova. Depois de pensar que não seria novidade um disco com grandes nomes cantando bossa nova, nem uma compilação de gravações já existentes, ele chegou a Rosa Passos e acertou em cheio. Começou a selecionar músicas - os clássicos da bossa nova e, logo de cara, as oito primeiras eram de Tom Jobim. Com as seis seguintes que caberiam no CD, ele descobriu que muita gente ia focar de fora e, pra ser justo, teria de gravar vários CDs. Foi aí que ele acertou em cheio de novo: Rosa Passos cantando só músicas de Jobim que se tornaram clássicas, todas reunidas num só disco. Bingo! Isso nunca tinha sido feito antes.  


Assim, nossos ouvidos e mentes foram agraciados com 14 músicas de Jobim (cinco dele sozinho, quatro com Vinícius, quatro com Newton Mendonça e uma com Billy Blanco), cantadas por Rosa Passos num disco que tem ainda, espalhados pelas faixas, músicos do quilate de Cristóvão Bastos, Lula Galvão, Wilson das Neves, Jorge Helder, Erivelton Silva, Marco Brito, João Lyra, Carlos Malta, Idriss Boudrioua, Zé Nogueira e Wallace Mendonça. E ainda conta com uma aparição especial de João Donato que chegou no estúdio e, quinze minutos depois, já tinha ensaiado e gravado sua participação com Jorge Helder (contrabaixo) e Erivelton Silva (bateria) em "Garota de Ipanema" num casamento sonoro perfeito. Um recorde, como destaca o próprio Almir no encarte do disco.  

E Rosa Passos, como se sabe, é uma das melhores cantoras do Brasil. Com sua alma de compositora e voz única, afinadíssima e agradável, ela tem também o dom da divisão meio jazzística que só os grandes possuem. Tudo junto e misturado transforma essa baianinha num tesouro musical. 

E esse tesouro desfila soberano pelas quatorze faixas, escudada sempre por arranjos precisos de Cristóvão Bastos ou Lula Galvão. A começar por "Samba de Uma Nota Só" (Jobim e Newton) que abre o disco, seguida de "Corcovado" (Jobim), "Garota de Ipanema" (Jobim e Vinicius), "Vivo Sonhando" (Jobim), "Insensatez" (Jobim e Vinicius), "Desafinado" (Jobim e Newton), "Chega de Saudade" (Jobim e Vinicius), "Meditação" (Jobim e Newton), "Só Em Teus Braços") (Jobim), "Inútil Paisagem" (Jobim e Newton), "Outra Vez" (Jobim), "Esse Seu Olhar" (Jobim), "Esperança Perdida (Jobim e Vinicius) e "Brigas Nunca Mais" (Jobim e Vinicius). 

Não é um disco apenas para o apreciador de bossa nova e sim para quem gosta de música, no seu mais puro estado.  


O disco pode ser ouvido na íntegra no YouTube em https://www.youtube.com/playlist?list=PLjMk_448Pd1MJvhgHl0l8lwiLf6GnC30V e, claro, está à venda nos bons sites do ramo. 

Cavaleiro solitário

 Por Ronaldo Faria O bar está fechado. Parece há tempo. Mas Hermínio não se dá por vencido. Enquanto houver uma sede por beber, beber-se-á. ...